Soraya Belusi
– por Daniel Toledo –
“De planos emergindo, mas não planejada; movida por propósitos, mas sem finalidade”: se tais palavras compõem, aos olhos do sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990), um justo retrato da civilização que construímos juntos, visão semelhante parece ser compartilhada pelo diretor e dramaturgo Carlos Rocha quando consideramos sua mais recente criação, o espetáculo “O Urro”. Realizada em parceria com o músico Gil Amâncio (também codiretor da montagem) e o ator André Senna, a obra estreou em agosto de 2014, em Belo Horizonte.
Tendo a grande cidade como universo de experiência, observação e constante estranhamento, o espetáculo apresenta ao público a emergência de uma epidemia que leva habitantes de grandes metrópoles a emitirem urros cada vez mais intensos. Se no clássico “O Rinoceronte”, de Eugene Ionesco (1909-1994), a metamorfose significa a rendição violenta dos personagens a um sistema social de opressão e anulamento, o que se verifica, em “O Urro”, é o processo inverso: aqui, a sonora epidemia surge, em certo sentido, como uma espécie de recusa civilizatória e afirmação da animalidade humana.
Logo nas primeiras falas de Dilermando, único personagem em cena, já se percebe um discurso claramente crítico em relação à grande cidade e às condições de vida que nela se mostram possíveis. “Coisa curiosa de se notar era que nenhum deles parecia irritado com o que os oprimia – como se já considerassem o peso que carregavam, parte de si mesmo”, diz o personagem, em referência aos habitantes da fictícia Urbanus, metrópole onde parece ter chegado há pouco tempo. É sob o ponto de vista desse personagem, portanto, que acompanhamos o alastramento de uma inusitada epidemia entre os habitantes de Urbanus.
Habitante de um pequeno quarto de pensão, à qual vez ou outra se refere como “espelunca”, Dilermando escreve à maquina suas impressões sobre a recém-descoberta metrópole e os urros que, dela, começam a fazer parte. A partir de um gestual minuciosamente elaborado e executado, mais interessado na sucessão de imagens típicas e marcantes do que em algum tipo de progressão realista, o personagem narra ao público os sintomas de uma cidade – e uma sociedade – `a beira de um colapso.
Em cena, tais impressões são desdobradas em sucessivos letterings, peças de áudio previamente gravadas pelo mesmo ator e, principalmente, expressivas ilustrações que traduzem à linguagem dos quadrinhos a detalhada narrativa apresentada pelo personagem. Projetados em uma grande tela, letterings e ilustrações muitas vezes assumem o protagonismo da cena, conferindo ao personagem a função de reforçá-los ou comentá-los, sempre a uma certa distância e, recorrentemente, com certo humor, como se, em certo sentido, tanto ele quanto aquele quarto de pensão estivessem imunes à tal epidemia.
Essa característica narrativa do texto – e da montagem, como um todo – permite construir uma análise ao mesmo tempo sofisticada e poética da problemática urbana, destacando aspectos como a violência das relações interpessoais e institucionais (“cada um desses homens parecia carregar a mochila de um soldado quando vai para o front de guerra”) e a própria aceleração da vida (“possuídos pela incontida necessidade de andar sem parar”).
Por outro lado, a aparente separação entre a narrativa e os acontecimentos da cena por vezes dá impressão de que se trata de uma história já encerrada e plenamente conhecida pelo personagem, que não se vê em perigo e muito pouco se afeta pelos fatos narrados. Enquanto a cidade apresentada no telão e no texto do espetáculo parece estar em plena revolução, o quarto de pensão que vemos no palco permanece quase inalterado ao longo do espetáculo, tal qual os estados de ânimo do personagem, quase sempre imerso na escrita e na leitura de seus relatos.
Breves situações dramáticas são inseridas em cena a partir de telefonemas da mãe do personagem, que por duas vezes atravessa a encenação, criando um produtivo contraste entre os grandes acontecimentos da cidade e as pequenas preocupações domésticas e familiares que, alheias à grande narrativa, reivindicam sua importância. O desenvolvimento dessa dimensão íntima do personagem, no entanto, acaba perdendo destaque ao longo do espetáculo, progressivamente ofuscada pelas funções de narrar e comentar os últimos acontecimentos de Urbanus.
Espetáculo aberto a múltiplas leituras, “O Urro” é fruto de um projeto antigo de Carlos Rocha. A montagem, entretanto, estreou há pouco mais de um ano após as manifestações de junho de 2013, em meio a uma clara crise civilizatória que persiste até os dias atuais. Ainda que não esteja em sua raiz, o contexto presente certamente atualiza o sentido da obra, dentro da qual se defende, de modo poético e contundente, uma urgente necessidade de reorientação da atividade humana. “Diante a uma iminente catástrofe da raça, estamos de alguma forma apertando o imaginário botão genético interno… e dando início ao processo de reiniciar a espécie!”, sentencia Dilermando.
Mesmo que vislumbrada à certa distância pelo público, que, tal qual o personagem, assiste à revolução como se dela não fizesse parte, a experiência da fictícia Urbanus estabelece claros diálogos com o momento presente, reunindo em si reflexões construídas desde o surgimento das primeiras metrópoles por sociólogos como Georg Simmel (1858-1918) e Walter Benjamin (1892-1940), assim como pelo pioneiro Charles Baudelaire (1821-1867), não por acaso apontado pelo personagem central de “O Urro” como seu poeta predileto.
A Prefeitura de Belo Horizonte apresentou hoje pela manhã, em entrevista coletiva, o novo trio de curadores do Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de Belo Horizonte. Eduardo Moreira, Diego Bagagal e Walmir José compõem a nova curadoria, substituindo Geraldo Peninha e Jefferson da Fonseca à frente do evento.
O ator e diretor Eduardo Moreira é fundador do Grupo Galpão, coletivo que concebeu as primeiras edições do FIT, ainda nos anos 90. Natural do Rio de Janeiro, Eduardo mudou-se para Belo Horizonte em 1974. Fez suas primeiras incursões no teatro no final da década de 1970, desenvolveu uma trajetória premiada e, em 1982, fundou o Grupo Galpão, tendo participado de todas as suas montagens como ator, diretor (“Um Molière Imaginário”) e assistente de direção. Desde a fundação do grupo, tem sido responsável pela sua direção artística. Fora do Galpão, dirigiu trabalhos de grupos como o Clowns de Shakespeare, de Natal, e o Maria Cutia, de Belo Horizonte.
Diego Bagagal tornou-se recorrente colaborador do Grupo Galpão. É ator, diretor e dramaturgo, cofundador do grupo MADAME TEATRO. Especializou-se em ‘Criação Teatral e Performance’ pela London International School of Performing Arts (LISPA), assinou a direção e dramaturgia de espetáculos como ‘BATA-ME! (Popwitch)’ e ‘POP LOVE’ (2010), além do infanto-juvenil ‘Lilimão’ (2006). Em 2011, integrou a equipe do espetáculo ‘Eclipse’ do Grupo Galpão (BH), como assistente de direção do pedagogo russo e diretor Jurij Alschitz. Como ator, soma trabalhos em importantes centros de pesquisa, entre eles o Grotowiski Institute (Polônia) e a Compagnia Instabili Vaganti (Itália).
Walmir José é ator, diretor, dramaturgo e professor de teatro, tendo longa e sólida atuação no teatro mineiro. Natural de Belo Monte (MG), inicia a atividade artística no teatro estudantil, na Escola Técnica Federal, nos anos 1960. Até 1973, integra o grupo Gruta, dirigido por Alcione Araújo e, posteriormente, ingressa no primeiro grupo profissional de Minas Gerais, o José Mayer Produções. Em 1974, Walmir José funda, com outros artistas de Belo Horizonte e em parceria com a Associação Mineira de Imprensa (AMI), o Grupo de Teatro AMI, que atuou até 1979. Desde então, tornou-se nome importante na produção teatral mineira, seja como ator ou diretor, assumindo papel referencial na formação de cursos profissionalizantes e escolas de teatro.
– Por Soraya Belusi –
Ao comentar sobre o texto “O Declínio do Egoísta Johann Fatzer”, o pesquisador, dramaturgo e diretor da Companhia do Latão, Sérgio de Carvalho, destaca seu caráter declaradamente experimental e inacabado, sendo a obra muitas vezes chamada por “Fragmento Fatzer” e/ou “Material Fatzer” – do qual Brecht só publicou um núcleo, constituído de três partes e um coro, em 1931.
“Nunca completado, o ‘Fragmento Fatzer’ se tornou uma espécie de referência necessária quando o dramaturgo Heiner Müller apontou ali um sentido modelar, não só para sua obra pessoal, como para toda a dramaturgia política do século 20”, analisa Carvalho. Tal afirmação sobre o caráter laboratorial e referencial dos esboços-textos escritos por Brecht vai ao encontro da abordagem pela qual o grupo Teatro Máquina se relacionou com o próprio material textual que deu origem a “Máquina Fatzer – Diga que você está de acordo!”.
O coletivo cearense, em atividade continuada desde 2003, propõe, assim como sugere o título do espetáculo – que faz dupla referência ao nome do próprio grupo e, talvez, também ao Hamlet-Machine de Heiner Müller –, sua própria versão da situação e dos temas escritos por Brecht, tornando-os pré-textos, linguagem a ser devorada, decifrada e desconstruída, e sintetizada em repetições e padrões de movimentação gestual e vocal, em que se evidenciam a dimensão laboratorial que vai da gênese à cena.
Essa evidenciação se faz presente na aceitação do inacabado como forma, como poética, como dramaturgia, em que os esboços de personagem constroem e destroem aos olhos do espectador a certeza do sentido, através de uma língua inventada e sem sentido, este sim presente nos corpos, nos estilhaços de humano que se desenham em cena, na fragmentação permanente das relações e do sentido, como se a linguagem, a fala, o texto, já não dessem mais conta de dizer alguma coisa, de significar algo em um contexto de guerra.
A “fábula” da situação proposta por Brecht – em que quatro soldados desertores se veem confinados sob a “liderança” de um deles – é transformada em plataforma para a construção de desenhos no espaço; para a criação de jogos entre os corpos que se submetem, violentam e subjugam; para a dissolução da linguagem como veículo de sentido. Os elementos do texto original permanecem lá – o confinamento, a busca pelo alimento, as “tentativas” de consenso, a figura feminina –, mas são apresentados de maneira tão sintética e instável que funcionam apenas como sugestões, e delegam ao espectador o exercício de também aceitar as lacunas.
É justamente dos vazios que parece nos falar o espetáculo. A língua se apresenta em cacos, em que o sentido se faz presente mais na sonoridade do que nas palavras, estas inventadas e reinventadas aos olhos e ouvidos do espectador. As pequenas dimensões criadas pela concepção cenográfica, em contraposição com o espaço vazio ao redor no palco, recriam o paradoxo de liberdade x confinamento, assim como a repetição e a tensão dos fragmentos proporcionam a percepção do tempo circular e indefinido.
A dimensão laboratorial que se manifesta na criação do espetáculo – em que o “Material Fatzer” foi recriado e relido pelos criadores sem um modelo a ser atingido e assumidamente inacabado – transborda também para a dramaturgia da cena, esta também com formulações instáveis, que se desconstroem, que se assumem incompletas.
::: Por Soraya Belusi :::
Ao relacionar os pontos axiológicos para a análise crítica, o pesquisador argentino Jorge Dubatti enfatiza entre as questões a serem abordadas a proposição ideológica que carrega o espetáculo. Segundo ele, este é o único dos recortes no qual o crítico pode se posicionar, clara e subjetivamente, contra ou a favor do pensamento impregnado na obra. É evidente, e notável, em “A Onça e o Bode de Guarda-Chuva, Guarda-Sol e Sombrinha”, a intenção de propagar entre os espectadores o prazer e a importância da leitura, assim como refletir sobre valores como a diferença, o convívio, a colaboração e a amizade. Mas, nesse intuito louvável, acaba tropeçando num excesso de didatismo e ilustração, que pode interferir no seu poder de convencimento junto ao público infantil.
O espetáculo parte da fábula conhecida no folclore brasileiro na qual uma onça e um bode, sem terem conhecimento, acabam construindo juntos uma moradia na floresta e se veem obrigados a conviver no mesmo espaço. Porém, o texto de Aristides Junho para o espetáculo, em que também assina a direção, cria uma outra camada na dramaturgia ao apresentar três outros personagens – Guarda-Chuva, Guarda-Sol e Sombrinha – que não conseguem se entender na hora das brincadeiras e que, assim como na fábula, aprendem a colaborar entre si.
Este outro plano da dramaturgia agrega conflitos entre os personagens que são espelhados dos dilemas que os animais vivem na fábula. Ou seja, os dois planos da dramaturgia – a fábula da Onça e o Bode e a relação entre os três personagens – sublinham as mesmas coisas. Tal procedimento, ao mesmo tempo que tem a força de problematizar as questões que estão no conto popular, acaba materializando a “mensagem final” que a própria fábula já carrega, correndo o risco de, em alguns momentos, soar redundante.
Voltando ao ponto “ideológico”, por vezes é incômodo a construção dos personagens e a relação que estabelecem entre si – no entanto, na cena final, esse sentimento é amenizado pela fala dos personagens. Porém, alguns pequenos detalhes passam despercebidos e, sem querer ser a “patrulha do politicamente correto”, carregam mensagens que reforçam o estereótipo – por exemplo, na cena em que é inaceitável ser chamado de palito de algodão doce, mas ouve-se cabelo de Bombril sem maiores incômodos.
“A Onça e o Bonde de Guarda-Chuva, Guarda-Sol e Sombrinha”, da Teatraria Espalha Fato, é não apenas um espetáculo feito para crianças, mas também feito por crianças. Talvez “semi-adolescentes”, me corrigiria o jovem elenco. O que se vê é um trabalho em que notavelmente há dedicação e seriedade, algo que merece ser louvado na relação artística com jovens criadores. Há uma certa ousadia na construção dos personagens, não só pela caracterização dos figurinos e maquiagem – que misturam referências de futebol, boneca de pano e pierrôs –, mas pela artificialidade nos gestos e no ritmo da fala dos atores. Isso, porém, pode ser ainda mais aprofundado pelos atores, criando maior domínio dos seus recursos vocais e corporais – as ferramentas para isso só se conquistam mesmo com tempo e trabalho, comprometimento que Juliana Evangelista, Wellington Evangelista e Eteylson Yuri já demonstram ter.
A encenação de Aristides Junho é cuidadosa e inventiva, preenchendo o espaço de cores, texturas e materiais, utilizando os três elementos que dão nome aos personagens – guarda-chuva, guarda-sol e sombrinha – como suporte para toda a criação do cenário. A proposta funciona esteticamente muito bem e ainda apoia a passagem de espaços e tempos dentro do espetáculo. Somente a manipulação desses objetos é que precisa ser ainda mais apropriada pelos atores, principalmente nos momentos que são usados como bichos. Mas isso em nada compromete a beleza visual e o cuidado no acabamento que a direção consegue alcançar.
:::Por Soraya Belusi:::
Tornar-se palhaço é uma arte. E, como toda arte, consiste em construir poéticas, instaurar novas possibilidades de percepção do mundo. O palhaço, neste sentido, cumpre a função de revelar outra faceta do humano, na qual o humor é uma chave de interlocução com o espectador. Um humor que não só leva ao riso, mas, quando realizado de maneira eficiente, leva também à reflexão, o que não se dá, por uma série de questões, na relação que o público estabelece com “Escola de Palhaços”, espetáculo da Cia. Argumento, apresentado na programação do X Festival de Teatro de Fortaleza.
Um público formado por alunos de escolas públicas parecia ser ideal para uma obra que intitula-se “Escola de Palhaços”. De alguma maneira, os alunos poderiam se ver refletidos, mas não reproduzidos, nos quatro palhaços que, diante da ausência da professora em um dia normal de aula, decidem assumir a condução dos exercícios. Esse “espelhamento” entre palco e plateia é, porém, quase ignorado na encenação, a não ser pela participação pontual de um ou outro espectador durante o espetáculo.
A partir dessa premissa dramatúrgica, os quatro palhaços ensinam a tocar instrumentos musicais, dar cambalhotas, brincar de bambolê. Tarefas banais que eles mal conseguem executar e é daí que surge a graça, diante da imperfeição daqueles seres. Porém, o jogo que se estabelece é rapidamente decifrado pelo espectador, tirando da dramaturgia a surpresa que tanto faz parte dos números clownescos à medida que o público já sabe que, a cada momento, um palhaço irá conduzir a aula. E, como as tarefas também não surpreendem, a dramaturgia vai raleando ao longo da obra, fazendo com que o público perca um pouco a conexão com o que se passa.
A própria construção das características de cada palhaço poderia potencializar esse jogo, evidenciando as habilidades e deficiências de cada um deles, que poderiam ser exploradas. Voltando à questão da arte do palhaço, cada poética pede uma técnica que lhe corresponda. O espetáculo se utiliza de uma série de elementos que compõem a poética do clown, com procedimentos como a câmera lenta, a mímica, o gromelô, as gagues tradicionais. Porém, como a técnica não parece completamente dominada pelo elenco, os números soam frágeis, já que também não se sustentam na dramaturgia.
O “texto” do espetáculo tange questões como bullying, porém, só reproduz em cena o que se passa na realidade, exibindo o “preconceito” com a palhaça-menina gordinha, de cabelos encaracolados e com a voz esganiçada. Assim como reforça, em uma das cenas, que a trapaça é que está certa, levando o público formado por crianças a apoiar como vencedora a palhaça que insiste em trapacear. Obviamente, essas percepções estão implícitas na obra e não estão livres da subjetividade da relação que cada um estabelece com o espetáculo. Porém, é inegável o potencial que o elenco, incluindo uma menina de 12 anos, tem para mergulhar com ainda mais verticalidade na arte do clown e tornar o espetáculo também sua própria escola.
:::Por Soraya Belusi:::
O Grupo Bagaceira é reconhecidamente um coletivo que se dedica à pesquisa e à experimentação em suas criações teatrais. Um dos grupos referenciais da cena cearense, notabiliza-se pela dificuldade de ter sua produção enquadrada em uma única linguagem, transitando por diferentes poéticas e temáticas em seus trabalhos. “Interior”, espetáculo apresentado na programação do X Festival de Teatro de Fortaleza, é mais uma obra que ressalta essa inquietude investigativa do grupo.
Durante dois anos, nos intervalos de suas apresentações, o grupo dedicou-se a viagens constantes para o interior do Ceará, em busca de histórias, personagens e situações. O resultado dessa imersão tem caráter estético, mas também afetivo, rendendo uma bela homenagem aos artistas e à população do interior cearense, levando o espectador ao tempo da delicadeza.
É como uma conversa ao pé do ouvido. Em que o ato de ouvir histórias, vivenciado pelos atores-criadores durante as viagens, é revivido em cena pelo público, que é apresentado a duas velhinhas cujo peso do tempo se equilibra com a leveza da sabedoria. A sensação de familiar é o que potencializa o convívio: o ladrilho hidráulico no chão, a proximidade física dos espectadores, as canções de Dalva de Oliveira a tocar, o pedaço de bolo de banana; tudo remete a um outro espaço, ao lugar da memória, do antigo e ao mesmo tempo atemporal.
Mas o familiar abre também suas fissuras para o estranhamento, marcadamente presente na combinação dos figurinos propostos por Yuri Yamamoto – que também assina a direção do espetáculo –, assim como na utilização das máscaras expressivas, confeccionadas tendo camisetas como matéria-prima, remetendo não apenas a tradições teatrais, como a commedia dell’arte, quanto culturais, como as máscaras do reisado local.
A dramaturgia de Rafael Martins também propõe em seu jogo cênico o familiar e o estranho, partindo de uma situação fantástica para um universo cotidiano, numa linha que oscila entre o real e o grotesco. O encontro entre duas velhas centenárias, avó e neta, que insistem em não morrer, é o ponto de partida para surgir divagações sobre a velhice, a vida, a morte, o afeto e o tempo.
O caráter de artifício, de invenção, é ressaltado ao longo do espetáculo tanto por procedimentos da direção, como a retirada da máscara expressiva, quanto pelo texto dramatúrgico, que assume a sua impossibilidade de imitar, retratar, reproduzir o interior do qual se fala.
Um dos pontos altos da encenação, a capacidade de envolver o espectador e com ele construir um outro espaço de percepção, só se realiza efetivamente pela realização das atrizes Samya de Lavor e Tatiana Amorim, que demonstram controle e inventividade na construção e desconstrução das personagens, assim como nas improvisações que se fazem necessária na relação que criam com o público. O espectador, envolvido pela atmosfera de intimidade e familiaridade, compartilha suas mais afetivas memórias, tornando-se também ele elemento criador do espetáculo.
:::Por Soraya Belusi:::
Pensar a performatividade como uma das marcas que a teatralidade contemporânea apresenta é algo que acontece naturalmente na fruição de “Hamlet: Solo”, espetáculo do Coletivo Soul, apresentado na programação do X Festival de Teatro de Fortaleza. O trabalho integra uma trilogia que se debruça a investigar, a partir de fontes textuais e recortes distintos, o personagem shakespeariano que, nesta montagem, torna-se não só o protagonista, mas o filtro pelo qual a história é contada, assumindo a faceta de narrador de sua própria tragédia e de espectador de sua própria solidão.
Hamlet é apresentado, desde o início, como um ser em embate com sua própria mente e emoções, nu em uma banheira de água, jorrando o texto de Shakespeare como um fluxo de consciência, um movimento interior do personagem. Os outros personagens surgem em cena como fruto de seus pensamentos, “fantasmas” a lhe rodear, como se não fizessem parte daquela realidade narrada. São sombras, rostos cobertos com véus. O desequilíbrio com o qual Hamlet se apresenta na fala assume uma materialidade espacial com os corpos dos outros performers, em uma dança frenética com os figurinos que cortam o ar. É como se tudo saísse de Hamlet e para ele confluísse, tornando notável a percepção de solo que o título sugere: o embate de Hamlet é com ele mesmo, com sua solidão e sua tristeza crescente.
Embora mantenha grande parte do texto do bardo inglês, o Coletivo Soul opta por escrever-narrar-apresentar sua própria versão da obra, com fortes tintas de performatividade. A noção dramática que carrega o texto original abre espaço à simultaneidade de cenas, espaços e tempos, assim como a noção de personagem é substituída pela do performer, que não representa seu personagem e, sim, o apresenta. Essa opção ganha ainda mais potência à medida que Hamlet apresenta-se de forma mais dramática, enquanto os outros performers brincam com os outros entes da obra, fazendo cada um deles mais de dois ou três personagens diferentes. Espaços e tempos se cruzam em cena, criando um jogo no qual Hamlet narra, reflete e observa os fatos que se desenrolam à sua frente.
A palavra cede espaço ao corpo. Muitas vezes, a fala dos personagens, os diálogos originais, assumem uma faceta corporal, tornando-se ação, como acontece, por exemplo, no embate do fantasma do pai de Hamlet que se duela com o chão, em que se evidencia o conflito entre o mundo dos vivos e dos mortos e seu incômodo espiritual. O que estava expresso no texto, agora expressa-se no corpo. Outro elemento que é explorado no espetáculo é a música como narrativa e comentário, tendo cenas inteiras da obra do bardo inglês transformadas em espécies de canções-síntese.
A performatividade da obra parece estar ligada ainda à sua própria gênese, no sentido de que a coletividade é ressaltada em detrimento da unidade. Uma miscelânea de referências e jogos se estabelecem de forma a criar uma obra heterogênea, composta, ao menos no que aparenta seu resultado, pela justaposição das partes e não da harmonia.
A interrupção permanente da fábula é outro princípio retomado no espetáculo, de modo a enfatizar o caráter artificial e teatral da realidade criada diante do público, o que se reforça ainda mais ao se deixar à mostra do espectador a técnica do espetáculo e também com as intervenções do diretor. O elemento metateatral, aliás, é parte da própria obra de Shakespeare, mas é aqui ressaltado, em alguns momentos, em excesso, perdendo sua própria força ao longo das intervenções.
“Hamlet: Solo” é composto como uma colagem, em que partes disformes se juntam a outras criando um corpo singular. O desejo da autoralidade na criação de uma obra teatral se evidencia neste trabalho como uma potência, à medida que reúne uma série de boas ideias e soluções cênicas, mas também, às vezes, como redundância, à medida que estas mesmas boas ideias são utilizadas até a exaustão.
Tornar suas as palavras, insiste o diretor Thiago Arrais em um dos momentos que intervém na cena. É este movimento que parece nortear a investigação do Coletivo Soul neste mergulho sobre Hamlet, construindo um solo formado por muitas vozes.
:: Por Soraya Belusi ::
“O exercício nós resolvamos fazer com tudo, ne? Exercício….”. Esta fala pertence ao diretor Marco Antonio Rodrigues, ao referir-se sobre o espetáculo Histórias do Sr. Ninguém, projeto que nasceu sob sua orientação em sala de aula do Teatro-Escola Célia Helena. Fiz questão de reproduzir tal afirmação, por considerar que ela sintetiza o valor pedagógico e o apuro estético contidos no trabalho apresentado na edição 2014 do Festival Estudantil de Teatro (Feto).
A montagem guarda sua origem e seu valor como exercício – que pode ser notada, por exemplo, pela simplicidade nas soluções cênicas e nos acabamentos dos materiais ou pela justaposição às vezes até superficial de uma série de procedimentos e de referências distintas sobre filosofia, arte e comportamento orientais sem realizar um aprofundamento de fato em uma determinada técnica –, mas também se realiza efetivamente como obra artística à medida que não só se baseia como se apropria do texto de Brecht e de seu Sr. Keuner para construir um jogo cênico que se alimenta também das premissas teatrais do artista alemão – sem com isso constituir-se como uma “montagem brechtiana” ou, pior ainda, um tratado frio e metodológico sobre seus procedimentos cênicos e dramatúrgicos.
Após cerca de um ano morando na Suíça – para onde havia se mudado em novembro de 1947, após escapar dos Estados Unidos –, Brecht partiu para Berlim oriental, onde passaria seus últimos anos. Para trás, havia deixado, em meio a um vasto material, uma pasta com 58 textos relacionados à personagem do sr. Keuner, que se somaram a outros 87 já conhecidos. Escritos ao longo de trinta anos, esses textos podem ter duas páginas ou uma só linha, e trazem em comum esse misto de filósofo e professor – considerado por muitos uma espécie de alter ego do autor. São esses “pensamentos” que são transformados pelo espetáculo em uma espécie de haicais teatrais, cuja poética é marcada pelo humor e pela dialética, elementos considerados por Brecht como fundamentais para levar à reflexão do espectador. No caso desses textos especificamente, por sua capacidade de síntese e por seu caráter de enigma, geram verdadeiros micros curtos-circuitos na lógica linear dos hábitos mentais.
A operação de renomear sr. Keuner de ninguém borra qualquer resquício de identidade, permitindo com que ele represente todo mundo e qualquer um. Esse apagamento dos rastros de uma possível representação de personagem também é reforçado pela caracterização (figurino, maquiagem, posturas corporais e estados físicos) e pelo procedimento de coletivização da narração e da “interpretação” do protagonista dessas micro-fábulas-filosóficas.
A inspiração cênica de Histórias do Sr. Ninguém se dá no teatro oriental, que serviu como fonte de pesquisa para a construção do próprio pensamento brechtiano, no qual se incluem procedimentos que visam à evidenciação do artifício e do caráter de jogo teatral, de rompimento com a representação, do distanciamento no trabalho do ator, o rompimento da “quarta parede”, etc. Essas referências são explícitas no espetáculo e, mais do que exemplificar os princípios teatrais de Brecht, elas se transformam no alimento do próprio jogo. A inspiração oriental – e o jogo a ser realizado com ela – se apresenta ao espectador já no prólogo do espetáculo, em que o palco é tomado por figuras de faces e corpos brancos – assim como no teatrão tradicional japonês e no butoh; e remete também a algumas formas de mímica corporal – e se comunicam em uma língua irreconhecível, porém de fortes traços orientais – certo acento japonês, que bem poderia ser chinês! – assim como suas posturas corporais ou o ato de retirar os sapatos. À medida que as cenas se desenvolvem, percebemos palavras em indiano, em japonês, em chinês, ampliando essa noção de oriental e embaralhando as referências.
A trilha sonora também atua no sentido de inserir múltiplas referências sonoras que nos remetem a distintos países do que entendemos como Oriente; assim como também acontece com o uso do figurino ao longo da apresentação. Outro elemento que dialoga com essa inspiração é a própria androginia na construção corporal dos atores, em que estados físicos de flutuantes entre as noções de feminino e masculino ampliam ainda mais as leituras acerca desse sr. Ninguém que pode ser todo mundo.
O oriental de Brecht – as técnicas tradicionais – não é a única noção de oriental com que trabalham os criadores de Histórias do Sr. Ninguém . O que afirmo com isso é que as referências trazidas para a cena do espetáculo vão desde as manifestações cênicas tradicionais até os clichês que o mundo ocidental construiu sobre o outro lado mundo do mundo, assim como os produtos culturais típicos de nosso tempo – dos clipes e coreografias do cinema de Bollywood até os desenhos animados japoneses e suas canções.
Histórias do sr. Ninguém, além de todo o estofo conceitual que possui e da grande comunicabilidade que alcança com o público, parece ter sido feito visando à construção e ampliação do repertório dos alunos-atores, que conseguem lidar efetivamente com uma série de referências teatrais, em uma criação que, sem diminuir ou hierarquizar nenhum elemento construtivo da cena, culmina com o foco da luz sobre os atores e sobre os espectadores.
:: Por Soraya Belusi ::
O espetáculo Cama, Mesa e Banho foi criado como um exercício dos alunos da etapa final dos Cursos Livres do Galpão Cine Horto, sob orientação dos professores Camila Morena e Fábio Furtado e em parceria com o Núcleo de Pesquisa em Cenografia e Figurino. Concebida dentro desses parâmetros, a montagem traz todos os requisitos que um trabalho de formação pode proporcionar, como o contato com diversas técnicas de interpretação e de procedimentos criativos, a possibilidade de todos os alunos-atores de experimentação na cena, além do trabalho textual com o universo de um dos autores mais importantes da dramaturgia nacional.
Todos esses ingredientes estão combinados em Cama, Mesa e Banho, atingindo maior ou menor mérito em sua. Três contos de Nelson Rodrigues servem de base para a dramaturgia do espetáculo: Casal de Três e Marido Sanguinário, ambos publicados em “A Vida Como Ela É”, e O Abismo. Destes, mantém-se os temas, situações, diálogos e reviravoltas. Mantém-se, ainda, certa atmosfera, principalmente no corte dos figurinos, da época a que tais relatos se referem no texto de Nelson, a Rio de Janeiro dos conservadores anos 50.
Nesta transposição para o palco, porém, a métrica da palavra escrita não cede lugar à naturalidade ou mesmo à artificialidade que pode ganhar a palavra em cena. O tom, ainda literário, formal em certa medida, tende a atrapalhar no ritmo, na condução do espetáculo, tornando-se, em alguns momentos, um obstáculo para o ator e também para o espectador. Ainda nesse sentido, a dramaturgia não se define – embora às vezes se insinue – como uma paródia crítica dos clichês de Nelson – como se dá em obras recentes de grupos como Magiluth, Viúva Porém Honesta, ou XIX, Nada Aconteceu, Tudo Acontece, Tudo Está Acontecendo –, o que talvez poderia gerar certa unidade na atuação.
O que se faz presente na fala também reverbera no corpo dos atores. A busca por uma expressividade extracotidiana – cujo trabalho em sala de aula, segundo informações do grupo na internet, foi pautado na vivência de dinâmicas de Viewpoints, Mímica Corporal, Biomecânica, Dinâmicas de Movimento e Mímeses Corpórea – atinge resultados mais evidentes em alguns criadores mas, na relação de conjunto, se dá de maneira desigual nos corpos em cena, com alguns artistas conseguindo assimilar e retrabalhar as técnicas experimentadas mais que outros.
A dramaturgia costura as três narrativas criando outro plano ficcional, que as entremeia, nas quais seres com rostos tampados com máscaras brancas e utilizando luvas plásticas são vistos repetindo sequências de ações físicas – numa dimensão mais mítica ou inconsciente dos personagens que, nestes momentos, perdem suas identidades ao terem a face mascarada. Esse elemento aparece com extrema potência na cena inicial do espetáculo, mas, ao repetir-se sem agregar novos elementos à sua composição, torna-se apenas acessório de ligação entre as histórias rodrigueanas ou convenções usadas para a mudança de personagens.
Cama, Mesa e Banho, a despeito dessas pontuações, tem os ingredientes fundamentais de um trabalho nascido no âmbito da formação teatral, que agrega pesquisa, estudo e disponibilidade para experimentação por parte dos alunos que se colocam e se expõem também na posição de criadores da obra.