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Horizonte da Cena

Horizonte da Cena

críticas

por uma performance queer da contradição ou há vida depois da morte

Texto a partir da leitura dos manifestos de Paloma Amorim e da Academia Transliterária, apresentados na nova edição do Janela de Dramaturgia.

Originalmente publicado na https://janeladedramaturgia.com/edicao-2019/

– por ana luisa santos-

janela 2019- 04

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janela 2019 - 05

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Fotos: Athos Souza 

prefácio

para começar, um exercício. na verdade, dois. tentar escrever na primeira pessoa do plural, nós. não será fácil. não é fácil conjugar nós, os nós. depois, tentar pensar este espaço, da crítica, neste site, na internet. dois exercícios, entre outros, para nós, entre nós, para testar os limites e/ou nossa capacidade de expansão.

ainda começando, uma sensação de fracasso. a abertura para a possibilidade de perder, não alcançar, ficar aquém, falhar. não dar conta, com essa linguagem, com esse suporte, de expandir, de expandir o tanto que seria necessário. esta é uma tentativa de crítica, uma tentativa de escrever, de compartilhar. não será fácil. este texto será difícil. difícil de ler, de escrever, de alguém ler, de se fazer voz, de ter vez, sem lugar. experimentar esse abismo entre as frases, entre a escritura e a leitura. entre o motivo e a motivação, entre eu e o outro. consolar a solidão

o motivo

na última terça-feira, 17 de setembro de 2019, estivemos eu e mais umas 60 pessoas, juntas, reunidas, presentes em mais um encontro da janela de dramaturgia, projeto de belo horizonte, no espaço d´a central, no edifício 104, na praça da estação. era noite.

a ocasião teve duração de duas horas e contou com a apresentação de duas peças-manifesto. a primeira, da academia transliterária, de belo horizonte. a segunda, de paloma amorim, do belém do pará. na sequência das leituras, aconteceu um debate, com xs autorxs dos textos e letícia andrade, professora da ufop, com mediação do crítico clóvis domingos.

este texto é uma proposta do projeto, que convida críticxs para escrever após cada realização mensal da janela. este texto é então publicado no site do projeto, na internet, até uma semana após o acontecimento.

a motivação

esta escrita pode ser um comentário dos textos que foram apresentados, mas é importante adiantar que essa edição da janela de dramaturgia prevê a publicação das peças-manifesto no final do projeto, em dezembro de 2019. então, haverá possibilidade de acesso integral aos textos posteriormente, para quem tiver interesse.

mas esta escrita pode ser também outra coisa, pode tentar ser. mas para abraçar os comentários, seguem algumas observações sobre as peças, sobre os manifestos, para que possamos seguir por outros desafios.

a peça-manifesto da academia transliterária pode ser lida como uma colagem de fragmentos. fragmentos feitos ou constituídos de depoimentos, testemunhos, comentários, poemas, provocações a respeito ou a despeito do desejo e da violência. as partes do texto parecem calcadas na experiência dxs autorxs, em sua observação, em sua percepção da vida, da morte, dos acontecimentos, do corpo, das sensações, dos sentimentos. são múltiplos, diversos em sua estratégia narrativa, temática e relação. revelam diferentes vozes, diferentes momentos e diferentes propósitos de relação com o texto, com a audiência, com a vida, com a morte. caminham por várias direções, funcionam em pedaços. são retalhos de vivências, dialetos, desejos, desabafos, tristezas, denúncias e alegrias diante de uma pluralidade de olhares e expressões que compõem as pessoas e os encontros do coletivo.[1]

o texto de paloma amorim é uma peça no sentido, digamos, mais convencional de dramaturgia. implica uma voz, uma memória, partes numeradas que se acumulam, que se referem. personagens que atravessam as partes, na trajetória do texto e na voz da autora. articula um espaço mais definido, na infância, na amazônia, no lugar de uma comunidade, na casa de uma pessoa, um avô, uma família, um grupo de teatro. a estratégia da memória em sua elaboração do passado configura a linha narrativa com tons líricos, musicais, afetivos.[2]

o acontecimento (quem sabe, tomara ou o primeiro de muitos)

a academia transliterária começou a apresentação da peça-manifesto com um vídeo. um vídeo de registro em que o coletivo entrava em um espaço, em fila, e se postava diante da audiência, diante da câmera. enquanto se posicionam, estendem uma bandeira do movimento trans em um sofá ou algo parecido. há o início da entrada de um áudio que anuncia a execução do hino nacional.

corte

na tela, começam a aparecer xs integrantes do coletivo, sucessivamente, mas de maneira pontual. elxs parecem realizar a leitura de um texto, provavelmente da peça, em cenários que podem ser identificados no espaço d´a central, no 104, com exceção de marta neves, que aparece em um espaço doméstico, talvez uma cozinha. vemos essas imagens, mas o vídeo não tem som.

simultaneamente, começamos a ouvir vozes amplificadas pelo microfone que realizam a leitura ao vivo da peça. vozes do coletivo que lêem o texto no agora.

percebemos então que a leitura vem de uma mesa, no fundo, na direção contrária do “palco”, do telão, da porta, da rua, próxima ao bar d´a central. há uma iluminação discreta, mas que ainda evidencia a presença dxs artistas que compõem o coletivo e que estão sentadxs à mesa, lendo, cada umx, um trecho da peça.

progressivamente, as pessoas da audiência realizam a torção. a torção da coluna que permite que elas possam olhar para “trás”, para acompanhar a leitura, enquanto seus quadris, suas pernas ainda estejam viradas para “frente”, para o telão. essa escolha – para onde olhar, o que eu quero acompanhar, quanto tempo eu sustento essa inversão sem levantar do lugar – pode dizer muitas coisas junto com o texto.[3]

intervalo

paloma amorim ocupa o “palco”, o tablado onde está posicionado um microfone com pedestal. ela começa dizendo que é da amazônia, que é do lugar onde o rio está em chamas – esta imagem impossível de tão difícil. na sequência lê o texto. seu ritmo é fluido, como a água. progressivamente, o espaço se transforma. houve uma mudança de luz ou foi um efeito de percepção? de qualquer forma, há mais penumbra, na medida em que ela lê os papéis que segura nas mãos. ela atua a leitura, torna-se uma de suas personagens, em presença. o tempo recua diante da comoção da audiência, percebida através de um silêncio mais denso, uma expectativa, uma entrega. embarcamos na narrativa. afundamos e emergimos junto com sua respiração. submersos em suas frases, em suas perdas, em sua poética em processo, nadamos, mergulhamos, tentamos enxergar um porto seguro, um farol, uma bóia. habitamos esse rio durante vários instantes, vislumbramos margens, barragens, assoreamentos, desastres. mas há brisa também. e a pele que sente o molhado da lágrima, do suor, da saliva de quem bebeu do fundo.[4]

debate

aqui podemos perceber outro corte. precisamos debater ou, pelo menos, essa é a proposta do projeto para o encontro desse dia. a conversa começa tentando tatear os processos de criação, de escritura das peças-manifesto que acabaram de ser apresentadas.

aqui encontramos outros limites, outras relações, outros tipos de vozes e enunciações. os microfones são ocupados por explicações, justificativas, posicionamentos, denúncias, outras denúncias. tem início outra rodada de manifestos. a dinâmica das palavras é diferente. somos confrontadxs com o que precisamos dizer ou ouvir. ou com o que não queremos mais precisar dizer ou ouvir. ou com o que queremos ouvir de nós mesmos. ou com o que achamos que o outro precisa ouvir de nós.

somos confrontadxs com outros limites.

depois

conversamos após o evento na porta d´a central. dizemos que foi bom mas foi difícil também. escuto alguém dizer que sente que não há expansão. permanecemos nas bolhas. precisamos fazer. fazer do jeito que dá para fazer. mas que jeito é esse?

podemos começar com este texto, para refletir. este texto será publicado no site do projeto janela de dramaturgia. é um texto longo, de algumas páginas, confuso também. quem vai ler este texto? quem é você que está lendo agora? talvez umas 20 pessoas, talvez um pouco mais, contando as pessoas imediatamente interessadas, neste texto, nessa tarefa de ler. a equipe do projeto, idealizadores, curadores, produtores, todxs ou algumxs artistas que se apresentaram no dia, outrxs criticxs interessadxs em dramaturgia, outrxs dramaturgxs interessadxs em críticas. talvez algumxs amigxs dessas pessoas, para quem elxs possam compartilhar o texto.

mas aqui começam outras perguntas. quem vai lembrar ou vai procurar o nome do site onde o texto está publicado? quem vai conseguir achar o texto no site? quem vai ter internet em casa ou no celular? quem tem computador? quem consegue ler no celular? quem consegue ler um texto impresso? quem consegue ler?

antes ou ainda

os eventos artísticos estão esvaziados em vários sentidos. reflexo do contexto político-econômico, os ânimos parecem diferentes, talvez aflitos. há nitidamente a percepção de limites. limites de memória, de interesse, de compreensão, de compartilhamento. eventos artísticos estão murchos. murchos de público, de libido, de espaço para expansão. não sabemos o que fazer. estamos perdidxs.

perdidxs, contemplamos, tentamos contemplar algumas ruínas. cumprimos, tentamos cumprir os protocolos, divulgamos, estamos presentes, mas os códigos parecem insuficientes. sabemos, sentimos que são insuficientes. precisamos reinventar. não sabemos como (ainda).

estamos diante de contradições profundas, contradições de presença. operamos, tentamos operar no cronograma conhecido, reconhecido de práticas artísticas. ainda vamos assistir a peças de teatro (são bem poucas em cartaz, atualmente, na cidade). ainda, talvez, raramente vamos ao cinema. exposições, talvez, durante e só na abertura. livros, publicações, somente para os profundamente interessadxs, praticamente, pesquisadores. vamos a shows, talvez, se há algum interesse particular pelo aplauso. insistimos nesses lugares tradicionais de experiência estética (ou do que imaginamos ser uma experiência estética).

nessas situações, lembramos, talvez, de algumas perguntas, de outras perguntas, de se fazer perguntas. por que viemos, quem está conosco, como nos relacionamos com o que estamos diante de testemunhar (ou com o que está acontecendo apesar de nós). como serão nossas expectativas, nossa preparação, nosso investimento para estar ali, juntxs ou sozinhxs, perto ou separadxs.

o circuito artístico parece não dar conta das demandas de acordo. ritualizamos, tentamos ritualizar, por enquanto, nossos limites, nossas limitações. é pouco, é para poucos, é pífio diante do que sentimos, do que intuímos que precisa ser feito.

há um mal-estar, um tipo de “climão” por trás dos sorrisos, dos cumprimentos, dos brindes. ouvimos, tentamos ouvir algumas verdades, sacar que ali, que aqui, que agora mesmo é muito mínimo. perdemos. perdemos a ilusão. mas ainda sentimos o ímpeto do encontro, da tentativa, da intenção da conversa, do compartilhamento. por vezes sacrificamos o encontro por meio das vidas, dos formatos. habituados que estamos, quando estamos, aos ritos conhecidos, contentamo-nos em sentar e esperar. esperar que algo aconteça, que algo aconteça diante de nós e que, de preferência, possamos aplaudir, dizer que acabou e que gostamos.

podemos estar diante de uma nova gramática, uma nova dramática da manifestação artística. mas é difícil perceber. há muita palavra de ordem, muita película de bolha, muita dor para se romper. há pouco espaço de escuta. onde há interesse por novas e diferentes manifestações? onde há interesse pelo mínimo de encontro?

do lado dos artistas está o desafio. do lado da audiência também. não há uma relação dicotômica aqui. geralmente falamos o que os outros querem ouvir (ou ler). somos educadxs. ou tentamos operar por constrangimento, essa pedagogia[5]. então dizemos acusações genéricas ou generalizantes, porque não há umx únicx responsável. operamos na denúncia da cultura através de seus instrumentos, dos instrumentos dessa mesma cultura que precisamos criticar.

paradoxo

somos inflacionados como artistas e audiências com uma responsabilidade intensa. precisamos, simultaneamente, acolher, denunciar, divulgar, exorcizar privilégios, criar poéticas, debochar, emocionar, ser representativxs, ser proporcionais, ser acessíveis, experimentar e trabalhar a linguagem. simples, simples assim.

então ficamos dentro e fora da matrix, no trânsito. operamos avatares, vários avatares. somos artistas, mas também militantes. somos audiências, mas também somos ativistas. não temos um só lugar. os espaços estão sentido esse fluxo, quando ele existe. há também muita apatia, tipo quando preferimos não nos mover.

os eventos, os projetos nos espaços também estão diante desses fluxos que demandam, talvez, outras temporalidades, outros suportes. este texto mesmo, em seu alcance ínfimo, poderá suscitar em alguém o desejo de encontro? uma movência?

as obras, os trabalhos, as críticas, as práticas artísticas encontram-se despedaçadas ou trancadas em um tipo de museu. buscamos por compreensão ou buscamos compreender. buscamos espaço e reparação, em vários sentidos. buscamos reconhecer e ser reconhecidxs. e saímos frustradxs, um pouco mais frustradxs que de costume. não encontramos mais, não nos encontramos mais (n)a arte. ou, talvez, vamos até ela, até seu encontro, para afirmar o fora, o não pertencimento. estamos fora de lugar, como as ideias[6].

podemos sentir saudade, nostalgia de como era antes, de como era antes para algumxs de nós, ou não. podemos simplesmente não ter que pensar em como era antes, o antes nem existia, o antes nem existe mais. podemos ficar melancólicxs e desistir do futuro. ou podemos fazer o luto. isso quer dizer, talvez, que não podemos representar do mesmo jeito de antes.

morte ou outro pedaço

nesta última janela, ouvimos muitas vezes a palavra morte. o verbo morrer. ouvimos também vida. mas ouvimos mais morte, em sua conjugações.

como elaboramos a perda? como deixamos algo morrer para continuar vivendo? o que isso tem a ver com arte ou com dramaturgia? e também, com quantos dilemas precisamos lidar? qual é a relação com os textos que foram apresentados?

talvez devemos não nos concentrar tanto nos textos. talvez mesmo este texto aqui seja muito pequeno diante de outras vozes, outras experiências. talvez possamos tentar considerar o encontro, a situação e não somente os textos. talvez possamos perceber não só o que dizemos, mas como tentamos nos colocar perto, como convivemos, como tentamos conviver, como podemos estar juntxs.

nessa edição, a janela de dramaturgia enfoca peças-manifesto. manifestos, como já deve ser de conhecimento de muitas pessoas, são proposições, são convites inflamados a determinada atitude, postura, pensamento. são talvez extremamente interessantes quando nos sentimos perdidxs, insegurxs, sem saber o que fazer. podem ser úteis quando precisamos performar ideias ou sentimentos difíceis, como vergonha, humilhação, desprezo. manifestos podem ser rituais de convocação, podem ser formas de tirar a roupa, podem configurar testemunhos mais ou menos conhecidos. manifestos mexem com a voz, com enunciação, com o tempo dos verbos.

nesse momento, nessa conjuntura, conseguimos enxergar poucas manifestações presenciais. não há articulação para manifestações de rua. há muito barulho nas redes sociais, há muito “textão” de facebook, muita “legenda” de instagram. são manifestações também, com as quais podemos interagir com um click ou uma digital ou que podemos simplesmente ignorar, rolar a barra, baixar o “feed”.

no encontro do teatro não. no teatro é mais difícil ignorar se você estiver lá. claro, você pode simplesmente não ir e alegar o cansaço de sempre. ou você pode ir e mesmo assim não filtrar. simplesmente consumir. não deixar se atravessar. nada é garantido. com quantos dilemas precisamos lidar? se não vamos, podemos nos arriscar, podemos nos frustrar, podemos talvez mover. se não formos, somos, talvez, menos cúmplices, menos cúmplices de contradições, limites, tentativas frustradas, pequenos lampejos e a continua pista por trilhar, espaço para acontecer.

talvez, então, devemos não nos concentrar nos textos, nas obras, mas em como formalizamos os protestos, os pretextos, os motivos de encontro. vamos tentar conversar sobre o que? como? vamos conhecer trabalhos novos? vamos consumir? vamos aplaudir? vamos trabalhar? vamos fazer o luto? vamos nos ajudar nesse processo? ou vamos agir como se nada tivesse mudado? será uma nova curadoria, um novo pensamento curatorial necessário e urgente?

vamos reconhecer a radicalidade ética que algumas de nossas constatações implicam? se não há número suficiente de trans, negrxs, indígenas, mulheres, periféricxs nos espaços artísticos, nem no público, nem na criação e consideramos esse dado uma referência importante na agenda de produção artística contemporânea, o que vamos fazer com 90% dos espaços, projetos, e iniciativas culturais que não contemplam essa dimensão? vamos “dialogar” com essas instâncias? precisamos do “dinheiro” dessas instâncias? por que vamos a esses espaços? como podemos ir a esses espaços para dizer que eles não são mais suficientes? voltamos a eles depois de dizer isso? abrimos ou fechamos portas e janelas com esse tipo de afirmação? será que podemos e queremos transformar esses espaços? por que não vamos a outros espaços? por que não procuramos as pessoas com que, supostamente, desejamos dialogar? por que não estamos atuando nas comunidades, nas ocupações, nas salas de aula, nos movimentos sociais? por que ainda precisamos de museus, editais, palcos, galerias? por que precisamos do dinheiro que estão nesses lugares?

talvez. e daí nós precisaremos remanejar. este texto mesmo, talvez, deva sair da internet. talvez. talvez deva ser impresso e colado no muro perto d´a central. ou talvez não. talvez este texto tenha a pretensão de chegar para as 20, talvez 30 pessoas mesmo, que ele vai alcançar. e quem sabe, talvez, com essas pessoas possa tentar criar um diálogo profundo, sincero, expansivo.

talvez desse jeito, com este texto, nesse site, seja o que é possível. é pouco, sem dúvida. mas é alguma coisa. tem todas as suas limitações, seus limites, uma autora e seus limites. mas pode ser uma tentativa de contribuir para a conversa, para abrir a conversa.

tentar contribuir para a conversa não dizendo de antemão que essa estética é livre ou presa. arriscar. expor. não no sentido da aparição, da cena, do selfie ou da foto coletiva do momento. deixar a ver a fragilidade, e, às vezes, a força que pode vir daí. assumir a impotência e quem sabe, coletivamente, poder elaborar isso. acolher-se de forma genuína. parar de nos enxergar como alvo, como público-alvo, mas ressaltar a possibilidade de audiência. valorizar isso e, quem sabe, criar.

talvez os eventos sejam menores, no sentido numérico ou de programação. talvez possamos trocar apresentações, espetáculos ou resultados por pesquisas, processos, dúvidas, consultas, experimentos. talvez possamos experimentar confiar novamente na linguagem, depois de tanto trauma, de tanto vício. talvez possamos performar a memória articulando vozes e documentos, dados e invenções. somos despreparadxs para lidar com a interseccionalidade de nossos problemas, de nossas feridas. precisamos discutir isso. podemos, precisamos estudar, estudar juntxs, quem sabe. e voltar a imaginar outros e novos exercícios diante da escassez de sentido.

p.s.

abrindo uma exceção neste texto, escrevo que o encontro na última janela foi especial, memorável. depois de 15 anos consegui abraçar, receber um abraço de uma ex-namorada. obrigada.

em outra exceção, anuncio aqui para esse conjunto talvez restrito de leituras a possibilidade, quem sabe, de iniciar, dar continuidade ou integrar grupos de estudos, como o núcleo de estudos sobre o cansaço e outras heresias afetivas. quem tiver interesse ou convite pode entrar em contato pelo e-mail anasantosnovo@hotmail.com ou pelo telefone (31) 99471-7099.

p.s. 2

como habitar uma contradição?

(a linguagem da crítica tradicional não dá conta)

seguem algumas dúvidas, sugestões, experimentações, autoexperimentos, exercícios de preparação para performar contradições:

 

duvide sempre de sua percepção

perceba a sua percepção

duvide sempre de sua percepção

anote

atenção

notas sempre provisórias

procure se lembrar

procure se esquecer

acolha a confusão de não saber

permita-se a dúvida

reconheça sua limitação (para você e para o outro)

peça ajuda

na medida do poético, seja sincerx

principalmente com você

veja o tempo

escute o tempo

toque o tempo

faça ele se sentar com você sem pressa

ame os livros e a incoerência das ideias mais interessantes

habite o estranho, sofra a solidão disso, suporte o exílio e sonhe com seus amigxs

reconheça a dor (nos outros e em você)

tente perceber sentimentos

duvide sempre de sua percepção

mude

experimente a vulnerabilidade da indecisão, do trânsito, da travessia

desconfie da mudança

tente se lembrar de alguém ou de alguma coisa pelo menos uma vez por dia

use celular com moderação

pague suas contas com dinheiro sujo

devolva para o sistema suas notas infectadas do vírus da discórdia

admita a ambivalência da violência (nos outros e em você)

arrisque não ser reconhecido

troque de identidade

não saiba mais como responder velhas perguntas

recuse-se a usar, escrever ou responder a palavra ok

mantenha viva a chama da curiosidade (com os outros e com você)

cuide-se

faça o luto

respire

 

[1]   segue trecho da peça-manifesto da academia transliterária:

 “Inhaí, disse aquela capeta, era treta, era seca, triste, vil, nua e preta, expectativa invadida de vida, libere minha sertralina, divina, surreal, feminina, travesti, feiticeira, cinza, menina! Meu nariz e órgãos genitais estuprados, meu colo descendente. Meu reto depois é sangue, às vezes, as costas por associação. Os pés, os artelhos, pulmões e intestino eu como sozinha. Na verdade só sei drenar o fluido estéril de mim.”

[2]   segue trecho da peça-manifesto de paloma amorim:

     “José chegou ele tinha já três anos

     Apareceu pelos braços de um outro menino que a gente criava em casa

     o Davi

     o Davi havia encontrado José nas mãos de uma moça na rua

     que pediu pra ele levar o menino embora

     Davi nos contou que a moça parecia estar pra fora dela mesma

     como se lhe houvessem apagado as entranhas

     o Davi era menino de perguntas cheias, logo o José aprendeu também

     Os dois perguntavam fraternais

     Por dentro a gente é tudo escuro?

     O lado de trás do chão tem fundo?

     A árvore quando pisa pra andar leva a terra junto?

     A água quando molha seca nela mesma?

     E riam-se dois, embalados meninos na barriga da rede

     aquela nossa rede que ficava de frente pro Marahu

     No Marahu a gente morava desde sempre”

[3]   mais um trecho da peça-manifesto da academia transliterária:

 “- Como é que você quer? Querer é uma coisa. Pode ser inesperado, poder querer algo, alguém. Queria ir ao cinema, ou comer um bolo de chocolate cheio de glacê, comer igual cachorro e ficar com a cara de chocolate. Mas também tem como. Como você. Ando faminta, deu pra notar, eu acho. Poderia comer você, ela, os vizinhos, as plantas, os bichos, comeria tudo. Devoraria o mundo. Comeria cada pedaço sem limpar os dentes. Mesmo se o hálito fosse de alho. Alho, alecrim, cominho, coentro, pirulito-que-bate-bate, hélices, helicóptero e uma pitada de pimenta calabresa. Protege a porta de casa, a janela, toma refrigerante e come bolo, mas também come melão! Melão que me verbera viver de uma forma na qual eu decidir viver, mostrar a este mundo a mulher maravilhosa que eu sou, radiar este mundo com ao brilho e a força da minha resistência. Embora este mundo tente me matar, mas eu sou muito mais forte e sobrevivo… com esta força e luz que me ilumina!!! Luz que sai do meu edy e ilumina as minhas e os meus, luz potente que derruba e destrói o CISTEMA. Toda forma de amor e válida, todo afeto é válido, desde que seja pelas corpas e pelos corpos não normativos, estranhos e sem lugar. Vejo brilho nos olhos de minhas irmãs e dos meus irmãos, vejo um universo prestes a ser descoberto, olhos que deságuam poesia e cheiro de churrasco em dia de terça.”

[4]   mais um trecho da peça-manifesto de paloma amorim:

     “Eu fiquei acordada a noite toda

     como se tivessem esburacado o meu peito e metido lá dentro

     um despertador

     um farol

     um alarme de rádio relógio

     um telefone analógico

     um grito mudo

     um berro de incêndio no dia em que está seca a caixa d’água

     meus olhos clarearam secos

     pisquei pouco

     fiquei admirando o teto

     pensei que se deus quisesse ele podia me levar no lugar do José

     mas eu nem acreditava em deus

     fazia tempo

     que não

     um filho da puta lá isso ele era

     sempre foi

     não acreditava não

     nunca mais

     não existe e fica nessa insistência

     não não”

[5]   segue link de palestra da artista elisa lucinda em que ela fala sobre isso: https://www.youtube.com/watch?v=fiYeNyIRM1U

[6]   para uma reflexão sobre as ideias fora do lugar, segue link para acesso do texto de roberto schwarz: https://books.google.com.br/books?id=guPUBQAAQBAJ&printsec=frontcover&dq=roberto+schwarz+ideias+fora+de+lugar&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwiDy_rAjd3kAhVvHLkGHaZNAVkQ6AEIKTAA#v=onepage&q=roberto%20schwarz%20ideias%20fora%20de%20lugar&f=false

 

09/10/2019 TAGS: Academia Transliterária, Belo Horizonte, Cena queer, Janela de Dramaturgia, Performance, teatro brasileiro 0 COMMENT
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    Ana Luisa Santos

    Ana Luísa Santos é performer e escritora. Mestre em Comunicação Social (UFMG) e pós-graduada em Arte da Performance (FAV). www.anasantosnovo.com

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O Horizonte da Cena é um site de crítica de teatro criado em setembro de 2012 pelas críticas Luciana Romagnolli e Soraya Belusi, em Belo Horizonte. Atualmente, são editores Clóvis Domingos, Guilherme Diniz e Julia Guimarães. Também atuam como críticos Ana Luísa Santos, Diogo Horta, Felipe Cordeiro, Marcos Alexandre, Soraya Martins e Victor Guimarães. Julia Guimarães e Diogo Horta criaram, em 2020, o podcast do site. Saiba mais

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