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Horizonte da Cena

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O naufrágio do convívio e o apocalipse do capitalismo por Rafael Spregelburd

por Luciana Romagnolli ::

Spam.

Ator, diretor e drama­turgo argentino de projeção internacional, Rafael Spregelburd traz ao Festival de Curitiba um ópera falada apocalíptica, Spam, sobre a virtualidade do mundo atual. Abaixo, ele fala criticamente da apatia social e dos efeitos da crise econômica e política sobre o teatro argentino.

O mundo virtual e o teatral não poderiam ser mais distintos por suas características ontológicas e dinâmicas. O crítico argentino Jorge Dubatti opõe dois conceitos: o convívio (próprio do teatro) e o tecnovívio. Como eles se aproximam em Spam?
Efetivamente, o teatro parece ser a única expressão artística que nunca será virtual. Vimos algumas tentativas de estender a virtualidade ao teatro. Há pouco tempo, Matias Umpierrez montou uma obra muito singular, “Distância”, na qual as atrizes transmitem online a partir de suas casas em Hamburgo, Nova York, Paris e Buenos Aires. Mas o público é real e está reunido em uma mesma sala ao mesmo tempo, e decide de que maneira convivial isso resulta legível, o que é irrelevante e o que é conotado de cada espetáculo. Creio que não se deveria preocupar-se grandemente com o assunto: quanto mais virtual se torna o mundo ao redor, maior é a magia do “efeito de realidade” que proporciona o humilde, mas poderoso, teatro.
Em Spam, a virtualidade é o tema, não necessariamente a forma. Nossa tecnologia é sempre low-fi e parece arrancada de um velho pós-industrial da era de ouro do punk. Os instrumentos musicais de Zypce (ainda que sejam processados à maneira de um DJ em tempo real) são construídos com fragmentos de coisas, motores, cordas, ferramentas que parecem resgatadas de algum tipo de naufrágio. É provável que estejamos querendo narrar o naufrágio do “homo-convivius”, o apocalipse do real. Mas, na realidade, não creio que estejamos indo muito além de expressar com zombaria a ilusão generalizada do “apocalipse do capitalismo”, o cuco com que o mundo pretende transformar muito poucas coisas para que nada mude na realidade. Virtualidade e realidade poderiam aparecer como elementos opostos, incompatíveis e em guerra. Mas talvez sejam só duas ferramentas, dois modos de representação da verdadeira batalha, que segue sendo a do uso dos recursos e a irregularidade na distribuição da riqueza.

Somos nostálgicos de uma ordem desinflada, que parece estar sendo abandonada, mas pessimistas sarcásticos de uma ordem por vir, prenha de ameaça e desumanização.

Li que no seu teatro costuma haver mais situações do que retórica, mas Spam seria uma exceção. Você a define como uma “ópera falada”. Por que esse é um formato interessante para a experiência teatral?
A Sprechopern (ópera falada) é um gênero muito comum nos países saxões e muito pouco explorado no universo latino. Se trata de uma ópera convencional no sentido de que a música é constante e propõe o leitmotiv emocional, anímico e rítmico da peça, mas o texto não é cantado, senão dito, o que a faz se parecer em alguma medida com uma obra de teatro com muita música. Suponho que o ponto de fusão entre teatro e ópera está na qualidade sonora do espetáculo: Zypce é um cuidadoso e desobediente designer de surpresas musicais, de entornos acústicos pelos quais conseguimos filtrar um texto complicadíssimo e divertido. Na ópera tradicional acontecem muito pouca coisas e o texto ocupa uma posição “lírica”: se lamenta ou se deleita com as emoções dos personagens. Neste caso, ao contrário, o texto é profusamente narrativo. A história que se conta se bifurca em muitos ramos e constrói um labirinto de episódios um pouco afastados da retórica operística e muito mais próximo da escritura de catástrofe e peripécia (que caracteriza quase todo meu teatro recente). Ainda que algumas Sprechopern sejam elaboradas como”teatro radial” (para ser escutado), nosso Spam é fortemente visual e a cenografia contém o mesmo grau de surpresa que o resto dos materiais da montagem (música, palavra, atuação, vídeos, acaso).

Em nossos dois últios trabalhos conjuntos (“Apátrida” y “Spam”), Zypce e eu temos tratado de construi sensivelmente um teatro que nos interesse. Não somos puristas das categorias de ópera nem de teatro puro. O importante é sempre gerar uma convivência interessante e dinâmica com o público real.

Quais aspectos do mundo contemporâneo são evidenciados no espetáculo?

Suponho que o primeiro grande problema é o mesmo de toda a filosofia atual: o que é o contemporâneo? A prematura pós-modernidade nos acostumou mansamente à ideia de que o novo não ocorrerá nunca mais. É uma ideia perigosa e paralisante, e supõe uma desativação tácita das lutas sociais que caracterizaram o século passado, já que entranha no fundo a suposição de que as coisas não mudarão. Creio intuir que esse é um dos elementos sobre os quais ironiza a história. Nela, um professor de línguas extintas se mete em uma confusão tremenda ao responder a um spam vindo da Malásia. Uma enorme e perigosa soma de dinheiro é depositada em sua conta bancária: a eterna promessa dos spams – que ninguém considera certos mas que pululam como moscas – se ttorna verdadeira, Trata-se de um homem novo, que deve aprender a viver na virtualidade do dinheiro. Sua grande aventura, talvez, consiste em sobreviver sem tocar em dinheiro vivo. O caráter líquido do dinheiro (sobre o qual se organiza todo o sistema de valores do Ocidente) é outro dos eixos temáticos. E, finalmente, suponho que uma ideia de apocalipse. Um apocalipse tênue, sombrio e cinza, que não se parece muito com o final monumental prometido pelas sagradas escrituras, mas com uma inércia na estupidez e no desânimo. O território da Itália – com sua crise institucional e econômica – é apenas uma desculpa para falar de uma crise mais geral. Não são tempos para heróis. Nosso pobre protagonista sabe disso e, por isso, a doce melancolia das tarefas quixotescas atravessa o espetáculo como um fantasma com uma mensagem inquietante: talvez esta sociedade em agonia não tenha nascido janais na realidade.
Há um tom de absurdo? O sorteio das 31 cenas antes de cada apresentação faz lembrar algo como o Jogo da Amarelinha, do Julio Cortázar. Como acontece? 
Não sei muito bem o que é absurdo. Entendo, claro, que há um teatro que a Europa chamou de “absurdo” e que pertenceu a uma vanguarda privilegiada que soube suspeitar da linguagem e de seus truques de poder. Mas o absurdo de Ionesco não é o mesmo de Pinter ou Beckett. Todos eles – que já estão mortos há mais de 100 anos – tentaram o mesmo que nossos contemporâneos: expandir o campo do real, para achar soluções que o senso comum se empenha em manter ocultas. Por outro lado, somos latino-americanos, algumas categorias europe­ias não se adaptam bem a nós. O que os europeus chamaram “realismo mágico”, em algumas culturas (como na Argentina) é apenas “realismo”. Nossas realidades políticas são muito intensas, muito absurdas, e se infiltram em todas as frestas da nossa precária vida civil.
O sorteio é uma artimanha vil e escandalosa. Nosso personagem – como o Ocidente – perdeu a memória. Assim, nos pareceu justo e realista que a história fosse contada em absoluta desordem, servindo às regras profundas do acaso. Seu capricho é tão verdadeiro como qualquer outro. A obra apresenta 31 cenas muito breves na vida de nosso personagem, um mês inteiro de sua desventura virtual. Mas as apresentamos em uma ordem que não é cronológica e estamos certos de que o público agradecerá por isso. A ordem que dita o tempo não é mais clara nem muito menos mais interessante. É o peso da razão que está sendo julgado nesse experimento controlado, a autoridade do paradigma causa-efeito, que é o método da ciência, mas não necessariamente da imaginação. E a imaginação – porque não tem também muito a dizer sobre o mundo em que vivemos.

Como a crise política e econômica da Argentina está afetando o teatro do país?
Não há crise econômica que pareça poder derrubar o teatro na Argentina. A maior de que me recordo (a de 2001) propulsionou um enorme movimento de criadores e público: salas, museus, centros culturais nunca estiveram tão cheios, tão ativos, tão povoados de espectadores necessitados de convivência dentro dos parâmetros da arte. Mas penso que às vezes acontece o contrário: as sociedade muito estáveis que conheci, muito assentadas sobre sua razoável estabilidade sociopolítica, às vezes carecem de teatro e isso não parece representar um problema para ninguém. Me impressiona muito o caso da Suécia – um país que me parece magnífico em muitíssimos sentidos, onde eu gostaria de viver minha velhice e criar meus netos, mas onde o teatro contemporâneo praticamente não é feito. O teatro das sociedades ordenadas vive de exprimir os eternos modelos de seus exíguos clássicos. O de países em crise ferve o tempo todo e trata de gerar respostas imediatas, torpes às vezes, balbuciantes, mas definitivamente muito coloridas.

A crise política, ao contrário, pode ter deixado vestígios mais profundos na nossa sociedade. Ainda é cedo para analisar o caos dos últimos anos. Mas poderia arriscar-me a dizer que, pela primeira vez na história do país, um grande número de artistas se tornou oficialista. Isso não teria nada de mal em si. Sobretudo se houvesse ocorrido uma verdadeira revolução. Mas não creio que seja o caso. Os artistas do meu país sempre se caracterizaram por sua condição de “opositores”: sempre padeceram o estado das coisas, sempre havia algo que estava ruim e se deveria denunciar a viva voz e com criatividade. Não estou dizendo com isto que agora a maioria faça uso de sua criatividade para render reverência aos poderes em turno, mas creio ver uma atitude de precavida mesura: certas batalhas sociais foram ganhas (os militares da ditadura pagaram com a prisão, por exemplo; e muitas crianças subtraídas por esse regime de horror reencontraram sua origem), mas as mudanças profundas não apareceram. O que apareceu foram setores rançosos do velhíssimo poder, que antes operavam seus assuntos da comodidade das sombras, agora se fazem visíveis, descaradamente públicos. Os inimigos do que é justo e razoável passam livremente como discursos de oposição e, por isso, muitos artistas inquietos às vezes preferem calar, sobretudo porque qualquer tentativa de crítica política parece alimentar de rebote os interesses de setores inimigos. É uma situação muito paradoxal, muito crítica, que não se define com clareza. Em épocas de crises anteriores, os artistas eram os primeiros a hastear as bandeiras da insurreição, do desacato, da razão, da urgência, enfim, da imaginação. Mas em paisagens como a que descrevi, me dá a sensação de que reinam a indiferença e o mero entretenimento. Coisas que não parecem coincidir com o ideal de um artista livre, que dispara em todas as direções para desfazer a letargia dos espíritos de sua época.
30/03/2014 TAGS: Argentina, Festival de Curitiba, Rafael Spregelburd 1 COMMENT
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