• Início
  • Categorias

    Hot Categories

    • conversações

    • podcast

    • críticas

    • coberturas

    • entrevistas

    • dossiês

    • ensaios

  • Quem somos
  • Contato
  • Ações
  • Parceiros

Horizonte da Cena

Horizonte da Cena

críticas

o humano extrapolado – festival de Curitiba

por Luiz Felipe Leprevost

Nena Inoue em “Haikai”. Fotos de Daniel Sorrentino.

o ato não cerebral que surge não da cultura, mas do estranho do mistério. o terceiro verso do haikai: o finalmente aparecido que desaparece no momento em que é posto. não é mais o que nunca está, mas o que se faz numa presença. que presença? aquela nunca capturável. o que é e não está e não é fantasma. o que sempre esteve mas não se permitiu ainda dar-se como experiência. o terceiro verso do haikai: o transporte que nos joga mundos outros e não nos devolve o nosso, senão mudado.


na platéia, diante da peça de Roberto Alvim, cuja primeira parte nos dá que crimes e que vítimas não sei, senão que, como narrativa não podemos exatamente os conceber. fazemos (porque a peça faz) evocações de signos que, se nalguma medida podemos apreender, logo nos são tirados. daí, vai que a escuridão mais que a escuridão proposta também, e não só, pela luz que é pouca. piscamos, é já a segunda, talvez, estação e seu algo do império das trevas, dos seres do medo com rostos sem traços confundindo-se, mais que em dicotomias, em fusões focadadesfocadas, massudaesfareladas, acesapagadas… nenhum de nós, plateia (penso por todos?), sabe como imaginar o que imagina estar imaginando. pode que conjecturemos, associemos. em vão, será? o escuro é abismo físico. o que aqui a testemunhar? o sobrenatural? o reino dos anjos também o nosso? fosso do tempo, destino talvez emancipado, fronteiras do sem-fronteira. pode que. tomara que.

tendo precisado da primeira e da segunda partes, é na terceira, todavia, que Haikai vai, como tenho insistindo, longe demais. nela há, enfim, a presentificação de algo que se invoca e, aparecido de outros mundos, segura-se neste. quem volta do inferno traz o inferno. os versos do haikai tradicional são três. são três os atores no palco. três as pontas afiadas do garfo do demônio. mas de que reino estes talvez demônios que vemos na peça? da mente, da linguagem, nem do dentro, nem do fora, nem do eu, nem do outro, nem do ator (este eu-outro-eu-mesmo) que faz o impacto agora em nossas mentes.


autistautista. há ao menos dois caminhos interpretativos para se pensar o que Alvim, nesta peça, chamou autismo. o primeiro: alguém que não sei quem sou nem nunca saberei diante de um o quê, segundo o próprio, autista. e se, então, o autismo verticalizado, eu estar ali é eu estar ali sem poder com a peça fazer a relação afetiva, por mais que a chame para mim, por mais que me disponha ao compartilhado. não nos fazemos um ao outro. sem querer dar conta de análises psicanalíticas, apenas utilizando o conceito apropriado por Alvim, resumidamente, estou diante de forma de vida cuja linguagem se dá na diferença radical. eu, o outro, não terei como me identificar, não penetrarei, ao menos não pelas vias do afeto, para as quais é impermeável, mesmo blindada, quem sabe, a obra.

a segunda interpretação (ao meu ver mais ambiciosa), seria a capacidade de disjungir o uso da linguagem para além de um ponto em que ela poderia dar conta de qualquer escritura e sentido. assim, a experiência se faria como colapso, ou, ainda mais, não se faria experiência, pois estaríamos nós estruturados qual autistas. isto, no caso do que a peça pode, seria, por óbvio, o impossível. tal experiência (infelizmente ou felizmente) não teria como ser. de todo modo, se quero ler o autismo a que Alvim se refere mais como abertura poética que conceito da psicanálise, posso crer que, mesmo lidando com a impossível realização do impossível, Haikai dribla-a e, lançando mão, com a sintaxe comprometida dos sentidos e a invenção de outra lógica gramatical na cena de tais poderes invocatórios, faz com que um transporte de dentros e foras simultâneos e velozes se dê em elementos carnal e mágico, o que um paradoxo rico para a problematização e ampliação do que se entende por limites do espaço teatral.

este ao mesmo tempo elemento magicarnal da ação invocatória, pode tudo o que quiser e fizer poder. é quando o impossível no corpo. o corpo mistério tanto quanto o que imaginamos fora de nós, fora do mundo, fora do alcance humano, senão com misticismos, paranormalidades, viagens da ciência interestelar contra a, pretensão bem aventurada, do fazer teatral de Alvim. daí que Haikai vem até nós, não sabemos como, mas ele se faz, de algum modo, em nosso inconsciente quando só depois volta a aparecer, marca feita (caso contrário, eu nem mesmo estaria escrevendo este texto, do efeito da peça em mim). o corpo, coisa estranhada por acidentes, atuado por complexas forças da instabilidade, mais que identificado, marcado, o corpo, o anjo que não sabemos se caído ou aparecido, torna-se em nós. este anjo nosso que Alvim nos nega dar (e assim dá) com Haikai, é o anjo da não aceitação da impotência humana e, por conseguinte, na lógica filosófica do diretor, da habitação transumana, ou extra-humana (o humano extrapolado), que o é por meio da recodificação da língua, como proposto, qual possibilidade estética, nestes versos de Herbelto Helder: “ouvir algum do pouco do júbilo do mundo, / e saber de uma arte repentina de passar para um espaço / estilístico terrível / através de uma porta que a frase encontra em si própria”.


o ator ir longe demais é ele como viajator, aparentemente imóvel, deslocando-se em múltiplos devires (dança, mulher, criança, anjo, demônio) no tempo nem agora, nem eternidade, no tempo construído na instância da fala, que é ritmo e acasalamentos, junções, ora interrupções, fraturas, resultados em metamorfose semântica que, para se ver realizada, o ator vai executar radicalmente dentro da palavra. da palavra como tempo, mas não no entendimento da língua como ideia histórica, porém como construção de um tempo outro no espaço que o ato teatral experiencia.

daí que na terceira parte da peça, faz o viajator como que mediação de mundos e vidas. e a mutação invade o ar. vem dar em nossa pele, corrente elétrica, luz-lâmina. e então a cena se organisma: Nena Inoue não mais é Nena Inoue, é Nena Inoue mais a força invocada. e o mesmo, porém com menos intensidade, com Paulo Alves e Martina Gallarza. demônios e assunção, uma voz engendra a outra. deste modo, Haikai se dá no viajar não até outro lugar, mas também, e igualmente ao contrário, mediado pela urdidura de um invento gramatical, cuja língua se faz no fluxo e borramento de bordas do cognicível para o incognicível, empurrando limites próximos de uma linguagem exaurida, quando as fronteiras não são a primeira, nem última, nem, suspeita-se, fronteiras.

para complexificar, e não finalizar, um tanto mais este exercício dialógico com a peça Haikai, ao qual me lanço a convite das críticas Luciana Romagnolli e Soraya Belusi, para o blog Horizonte da Cena, faço-me, no inesgotável, mais uma pergunta, embora a questão já tenha se dado acima. na especificidade desta obra, o que é isso o escuro em cena? em recente entrevista as duas críticas, Alvim fala da sensibilização do homem contemporâneo com a obliteração da visão. não o mergulho na cegueira, mas num modo de obliterar a visão com a criação de outra instância de visão, que tenha a ver com o crepúsculo, o lusco fusco, a luta entre o que se vê e o que não se vê, o nebuloso, onde os atravessamentos do imaginário. pode que seja da impotência do figurativo, fracassado como tal, que ele fale, daí a luz tão pouca e de sutilíssimo bruxulear, perseguindo a tentativa do apagamento do sujeito. pareceu-me, no entanto, que desta vez Alvim deu um passo a mais. neste desapareçapareça, ele foi resvalar o apagamento da matéria, ele foi próximo da descorporificação dos atores. se a face é máscara do vivido, do vivente e do ainda a se viver, não haver face é não haver vida, ou ao menos não haver vida tal qual a pensamos reconhecer. em Haikai, nem mais demônios e assunção no eterno jogo de uma imagem apaga a outra, que apaga outra, que apaga outra diante da percepção de nossos olhos e ouvidos e, mais, de nossa pele e alma profundamente inconscientes, com o que veremos e escutaremos para além dos sentidos.

07/04/2013 TAGS: Curitiba, Festival de Curitiba, Roberto Alvim 0 COMMENT
SHARE
Leia mais

Comente Cancel Reply

Ruffles, Locomia, Almodóvar e Magiluth - Fringe

Densidade política à poética surreal

  • categorias

    • capa
    • coberturas
    • Conversações
    • críticas
    • dossiês
    • ensaios
    • entrevistas
    • podcast
    • Sem categoria

Relacionados

entrevistas O naufrágio do convívio e o apocalipse do capitalismo por Rafael Spregelburd

críticas “Spam” leva a vida virtual à saturação

entrevistas Cia. dos Atores aborda a moda e o “ser” contemporâneo

capa coberturas críticas Molduras para a violência e o tabu | Festival de Curitiba (1)

capa coberturas críticas Indomáveis e amadoras | Festival de Curitiba 2017 – parte 2

críticas A construção ou a dissolução da dúvida

Quem Somos

O Horizonte da Cena é um site de crítica de teatro criado em setembro de 2012 pelas críticas Luciana Romagnolli e Soraya Belusi, em Belo Horizonte. Atualmente, são editores Clóvis Domingos, Guilherme Diniz e Julia Guimarães. Também atuam como críticos Ana Luísa Santos, Diogo Horta, Felipe Cordeiro, Marcos Alexandre, Soraya Martins e Victor Guimarães. Julia Guimarães e Diogo Horta criaram, em 2020, o podcast do site. Saiba mais

Cadastre seu email

Mantemos os seus dados privados e os compartilhamos apenas com terceiros que tornam este serviço possível. Leia nossa política de privacidade.

Verifique sua caixa de entrada ou a pasta de spam para confirmar sua assinatura.

Siga-nos nas redes

Horizontedacena

Horizontedacena

Horizonte da Cena
Direitos Reservados © 2017 - 2019 Horizonte da Cena