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Horizonte da Cena

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A ambição da originalidade – Entrevista com Roberto Alvim

por Soraya Belusi e Luciana Romagnolli
Roberto Alvim. Foto de Ernesto Vasconcelos.

Roberto Alvim parece ter o paradoxo como companheiro. Carioca de origem, nunca se identificou com a tríade praia-samba-futebol de sua cidade natal e foi encontrar em São Paulo o ambiente favorável para investigar a alteridade radical em seu trabalho. Um dos encenadores mais provocativos da cena atual, afirma que há quase 20 anos não vai ao cinema e evita ir ao teatro, encontrando nas artes plásticas e na literatura diálogos mais inspiradores para ampliar os limites da arte que executa. Defende a singularidade acima de qualquer coisa, mas já vê elementos de sua linguagem sendo replicados de maneira muitas vezes caricatural. Nunca escondeu que quer entrar para a História, embora admita a impossibilidade da realização plena de seu projeto artístico. Durante as quase três horas de entrevista ao Horizonte da Cena durante o Festival de Curitiba, onde estreou “Haikai”, foi do discurso febril à introspecção total, em uma conversa na qual deixa claro seu potencial de rejeição e fascínio.

Você vai ao teatro, Alvim?
Não.
Teoricamente, um diretor de teatro consome teatro. Como é essa relação para você?
Eu não vou ao teatro há muitos anos. Se é que isso serve de defesa, eu não vejo tampouco minhas próprias peças. Não assisto às minhas sessões no Club Noir há cinco anos, assisto só ao ensaio geral, nem estreia vejo. Eu não vou ao cinema também há 25 anos, o ultimo filme que vi foi “ET”. [Diante do olhar de descrédito das jornalistas:] Juro por Deus! “Goonies”… [Depois, Alvim citou ter visto “Sinédoque, Nova York”, de 2008, em DVD].
Por que esse desinteresse?
As artes que consumo são pintura – costumo ir às exposições e escrevo para Bravo! de tanto que vou – e literatura. Nenhuma arte se alimenta de si mesma. Não é pelo fato de fazer teatro… Não atribuo isso a desinteresse… A arte que mais amo dentro das artes plásticas é a pintura e é com que mais gosto de me relacionar.
Você gosta de teatro, Alvim?
Talvez não. Talvez seja alguma coisa que eu tenho que fazer: manipular tempo e espaço dentro de uma sala biofisicamente. É uma questão de dever, não de busca.
Se a literatura e as artes plásticas te alimentam, que tipo de questões trazem ao seu trabalho?
As questões que vejo dentro da pintura acabam fazendo com que eu trace analogias entre procedimentos pictóricos e possíveis procedimentos técnicos no trabalho do ator e que catapultam o teatro que faço em direções muito distintas do que se eu estivesse estudando Grotowski ou Brecht. O teatro é uma arte muito ensimesmada, as pessoas ficam revolvendo determinados criadores e gerando viúvas desses criadores indefinidamente. Isso é muito chato. Quando olho para William De Kooning e para a ideia de planos pictóricos que ele constrói no abstracionismo dele, traço uma analogia entre esses planos pictóricos e a possibilidade de construção de planos vocais e de linguagem que se escavam dentro um do outro criando transparências que fazem suspeitar de subjetividades por trás e criam bloqueios que expulsam essa subjetividade para fora do palco, se ampliando a possibilidade de exploração do campo estético do teatro em direções outras. Ou quando se vê dentro do Lacan sobre o nó borromeano e essa ideia de lugares distintos a partir dos quais nós falamos, se traçam procedimentos dentro da construção dramatúrgica que de algum modo traduzem ou expandem o nó borromeano e levam o teatro a outros lugares aonde o teatro não o levaria.
Há uma tendência na arte contemporânea de que cada obra carrega em si uma teoria. Seu teatro se encaixa nessa ideia?
Tem uma definição de obra de arte que é: um sistema complexo de relações formais, construído no mais amplo diálogo com os sistemas anteriores e que proporcione uma experienciação estética que até então não havia sido proporcionada. Há crítica imanente no sentido de que está em diálogo com todos os sistemas estéticos anteriores na história da arte, o que não impede olhares críticos outros e variados sobre aquilo ali. Estou tentando evitar falar do meu próprio trabalho de um ponto de vista crítico nos últimos tempos e tentando dizer que [a minha] é só uma leitura possível. Nem sempre a leitura do artista é a mais consistente. Se você pegar o livro do Mondrian ou escritos do Kandinski no gênero místico de ambos, talvez desista de ver as obras. O sentido que a obra tem para quem a faz, seja o sentido místico, mítico, teórico, definitivamente não é a verdade sobre aquilo ali ou a única verdade e muitas vezes nem é uma boa porta de entrada.
Isso parece mais uma contradição, pois você produz teoria e dá aulas de teatro.
É só contradição, só paradoxos. Durante muitos anos fiquei pensando que, como havia um diálogo crítico muito ralo, se eu não conceituasse o que eu próprio fazia talvez isso passasse (teatro é arte que se perde) e não encontrasse uma crítica que realmente denotasse os procedimentos técnicos complexos que estão ali dentro.
Encontrou esse diálogo?
Sim. Tem o Luiz Fernando Ramos, dentro da crítica feita não só dentro do jornal, na Folha de São Paulo. No livro dele, que não saiu ainda, tem um capítulo sobre o Romeo Castellucci, o Bob Wilson e o Club Noir. Tem também textos críticos escritos pelo Rogério Toscano na Sala Preta [revista da USP]. Do Stephan Baumgartel, da Silvia Fernandes… Mudou muito depois que fui para São Paulo. No Rio de Janeiro era difícil.
O que mudou?
O Rio de Janeiro é foda. Era outra época, eu era mais jovem, comecei aos 18 anos…
…quando você diz que faz teatro porque tem que fazer, o que significava isso naquela época?
As pessoas falam: “se eu não fizer teatro, eu morro”. Eu adoraria nunca mais entrar em uma sala de ensaio na vida nem fazer teatro se eu pudesse não fazer teatro, é um dever que eu tenho.
Com o quê?
Não sei.
Então voltemos ao Rio…
Eu entrei no teatro para ser ator, mas me via como um ator medíocre. Fazia universidade de cinema e curso de atuação, e comecei a dirigir os exercícios que eu fazia dentro da CAL [Casa de Artes das Laranjeiras] e automaticamente os professores começaram a elogiar muito as cenas dizendo que eu tinha uma direção, diferente das cenas de outras pessoas. Percebi que, embora quisesse ser ator, escritor, pintor, embora eu quisesse ser padre, eu tinha um talento, uma inclinação para uma coisa específica e aceitei esse fato. Comecei com Strindberg, por obra do acaso total. Não conseguia escolher nenhuma peça que me interessasse fazer, por isso estendi o braço para dento da biblioteca da Unirio e o que eu pegasse faria. Graças a Deus peguei Strindberg e não “A Partilha”. Aí comecei a dirigir. Me lembro vagamente dessa peça. Meus pais levaram 40 amigos do trabalho e minha estreia profissional terminava com uma das filhas se masturbando dentro de um berço gigante que havia dentro da cena, não houve aplausos. Na primeira peça minha que estreou, quando a luz acendeu ninguém aplaudiu e houve constrangimento generalizado.
Inclusive seu?
O produtor ficava gritando que aquilo era genial e as pessoas idiotas não tinham entendido. Eu me escondi debaixo de uma mesa do camarim e só saí depois que todo mundo tinha saído. Talvez por isso hoje eu evite o aplauso.
E como se deu a mudança para São Paulo?
Tive uma crise aos 21 anos, fiquei um ano longe do teatro, um ano sem falar. Voltei para o teatro por um telefonema me chamando para dirigir uma coisa, e comecei a escrever, indo e saindo do teatro várias vezes, sendo demitido de onde dei aula… Só voltei para a CAL com a condição de me pagarem psicoterapia.
Era lacaniana?
Era lacaniana. Heloisa Adler. E aí no Rio de Janeiro estava muito difícil. Não posso reclamar nunca de imprensa, porque tudo que eu fazia saía na capa do Segundo Caderno do O Globo ou no JB. Os jornais da corte carioca precisam de um verniz de cultura nem que seja para três dias depois ser destruído pela Bárbara Heliodora, é um jogo de destruição muito curioso. Fui nomeado diretor do teatro Carlos Gomes aos 27 anos, o mais jovem, depois transferido para o teatro Ziembinski, não posso reclamar de mídia nem de condições estruturais para montagem de minhas peças porque sempre tive. Foi nessa época o movimento da nova dramaturgia carioca, que eu criei. Todos os diretores que entravam no teatro usavam a verba em uma companhia lá dentro. Eu falei não. Ia ser um projeto chamado nova dramaturgia brasileira, que virou carioca, de montagens de novos dramaturgos. O teatro ficou quatro anos desse jeito, e publiciamos a revista Cadernos de Dramaturgia. Dali surgiram Pedro Brìcio, Daniela Pereira de Carvalho, Jô Bilac, todo mundo. Eu dava workshops e convidava dramaturgos para darem workshops curtos, era um estúdio de criação dramatúrgica permanente.
“Haikai”. Foto de Daniel Sorrentino.
Se lá era bom, por que São Paulo?
Porque saía na capa num dia e mesmo assim eu tinha que olhar para ver se tinha 15 pessoas na plateia naquela noite. Parecia que a cidade não tinha nenhum interesse no que eu fazia. Eu era um bode preto no ethos carioca do chinelo, da despretensão, desses ritos culturais do futebol, samba, praia e tevê. E qualquer coisa com algum tipo de ambição é muito mal vista lá. O Enrique Diaz, seguindo esse ethos, conseguiu criar um trabalho artístico interessante porque também se harmoniza à natureza dele, à minha não harmonizava em nada. E o diálogo com a crítica era muito problemático. Tive 17 críticas destruidoras daquela pessoa de quem não vou citar o nome.
Bárbara? Você já falou o nome dela hoje…
Falei? Ela mesma. Eu não falo… Ao contrário de fazer como com outras pessoas, de não ir, ela fazia questão de estar em todas as estreias para publicar na contracapa de domingo coisas extremamente agressivas. No final, questionava como os mecanismos de patrocínio da prefeitura ainda davam dinheiro para eu fazer o que fazia.
Como se o seu teatro não pudesse existir?
Não pudesse existir. Embora eu desprezasse aquilo e soubesse como funciona, ela tinha poder do que era bem falado criar filas na porta e o que era destruído se esvaziar a ponto de não poder continuar uma temporada. Fora o ridículo da classe, que embora sempre fale mal dela, aguarda as críticas para rir do alvo da vez. Era motivo, no começo, de risadas da minha parte, foda-se. Até o ponto que passou a ter uma recorrência muito incomodativa pela falta total de diálogo crítico em relação ao que eu fazia. Fui tentando me adaptar ao gosto da cidade, o que era impossível, contra minha natureza. Comecei a fazer peças com autores célebres de tevê e a fazer incursão pelo realismo, tentando de alguma forma ser aceito, mas não adiantava nada porque eram híbridos frankesteins. Já tinha comprado uma arma com numeração raspada na Rocinha para dar um tiro na minha cabeça, estava nas últimas. Aí a Juliana [Galdino] foi fazer turnê com “Antígona”, “Foi Carmem” e “Os Cantos de Gregório”, do Antunes. Ela encenando “Foi Carmem” foi incrível. Vi uma utopia no palco com que eu sempre tinha sonhado: a atuação da Juliana. Comecei a persegui-la e ela achou que eu era louco. De onde as pessoas tiram isso? [Alvim ri em autodeboche]. Ela começou a ficar com medo, porque eu ficava esperando no final da peça e ligava para o Sesc para saber onde ela estava, ao ponto de a produtora dizer que ia chamar a policia. Ela foi para Espanha e eu fui para a porta do hotel em Madrid, aí ela não teve como… Quando voltamos para o Brasil, eu me separei e ela se separou. Larguei a vida no Rio, larguei a CAL onde era professor de teatro e de direção, e a obriguei a sair do Antunes, porque eu tinha largado a minha vida inteira. Motivo pelo qual Antunes me adora [ri]. A gente criou o Clube Noir e veio “Anátema” e “Homem sem Rumo”, até “O Quarto”, na qual considero que esse sistema cênico do Club Noir se instaurou. Foi um ano no qual a gente destruiu dentro da sala de ensaio todo o teatro, refugando todos os mecanismos que já tínhamos usado ou outrem tinha usado e que estivéssemos replicando até chegar a alguma coisa que a gente não sabia o que era e nunca tinha visto. Veio um amigo meu e disse que eu nunca teria sequer concebido a possibilidade de fazer essa peça no Rio. Há um entorno tão opressivo, avesso à alteridade e à obra de arte, que te constrange tanto a fazer parte de uma determinada cultura, enquanto em São Paulo a gente encontrou uma cidade afeita à alteridade e à obra de arte, ao desconhecido. A tal ponto que, no Club Noir, se a cada peça a gente não forçar mais, é achincalhado. Se houver concessão ao senso comum, nosso público, que frequenta há alguns anos, pergunta: “o que aconteceu?”. Isso dá força.
Você fundamenta sua teoria em filósofos, psicanalistas e artistas visuais, não no teatro. Por outro lado, já ouvimos de sua viagem à Bélgica, que teria sido decisiva para a construção do olhar que lança hoje sobre o teatro. O que viu por lá que o afetou? 
Não. A Bélgica foi em 2011. A primeira peça minha que estreou fora do Brasil foi em 2004, em Paris.
Numa entrevista antes disso, em 2010, você citava um diretor francês…
Tem um diretor de teatro que eu admiro muito, ainda vivo, que é o Claude Régy. Tem dois diretores de teatro sem os quais eu não faria o que faço, o Régy e o [Bob] Wilson. Também o Antunes de alguma maneira, claro. Mas o fato é que hoje eu localizo o que a gente faz num lugar muito distinto. Naquela época eu talvez falasse num sentido bom, mas hoje já me irrito com comparações dessa natureza porque se você vir os trabalhos de Régy e Wilson sem perceber a diferença… Vi uma matéria na Veja SP de duas páginas dizendo que é cópia do Bob Wilson. É obvio que eu não faria o que eu faço se não fosse o Bob Wilson. Ou vem o Estadão dizer que sou herdeiro estético do Claude Régy…  
Você deseja ser original.
É a coisa mais relevante que existe! Todo meu ponto é em cima da singularidade, para mim é o tema perpétuo da criação em arte. Eu lutei contra um nível de ansiedade absoluto oriundo do fato de que tentei tirar do meu trabalho tudo o que parecia com o de outras pessoas para ter singularidade. Recebi convites internacionais, ainda não fechados, que vieram assim: “não é que gostemos do seu teatro ou não, é que não há ninguém fazendo isso hoje no mundo”. Na minha história inteira, o que era bonito mas Bob Wilson ou Kantor já fizeram antes, eu jogava fora.
Como ter essa pretensão de domínio de tudo que já foi feito no mundo e a convicção de algo tão inaugural?
Eu não sei; eu sei. Quando eu vejo alguma coisa que acho boa, mas alguma coisa apita que já houve muito semelhante, seja em termos de imagem… Quando escrevi o “Pinókio”, tinha escrito 20 peças antes, várias montadas fora do país, publicadas na coleção de dramaturgia contemporânea, então podia acreditar que eram relevantes, mas sabia que não tinham relevância histórica na medida em que eram meio Pinter, meio uma série de coisas. Com “Pinókio”… Gostem ou não, ninguém nunca escreveu essa peça antes. Há procedimentos inventados nunca feitos por Beckett ou Pinter.
Por exemplo? De qual procedimento você diz: “esse eu criei”?
[Silêncio]. Posso responder essa depois? Entra em aspectos técnicos…
Claro.
Nessa ideia de transumanidade, vem a problematização do sujeito. Se toda técnica carrega uma visão de mundo e toda questão estética é existencial, percebi que tudo se apoiava em cima de um desenho de sujeito que, se eu problematizasse brutalmente, estaria dentro dum campo novo na história do teatro. Fui à Bélgica em 2011 e sabia que o mesmo ineditismo que esses conceitos tinham aqui, eles teriam fora. O texto foi dado a 14 autores europeus e foi a mesma coisa. A ideia do fim de teatro como espelho do mundo, mas como invenção de outros mundos habitados por outras formas de vida; a ideia do sujeito como linguagem e de inventar outras formas de vida por arquiteturas linguísticas não tinha entrado no teatro ainda. Fui ver [Jöel] Pommerat ou Falk Richter e me irritam, é mais do mesmo, não vejo singularidade nisso.
 

“Haikai”. Foto de Daniel Sorrentino.

Se pensarmos numa comparação ridícula: eu gosto de haute cousine, mas tem dias que só quero um nhoque à bolonhesa tradicional. Como é isso para você?
Me interessa a haute cousine, o El Bulli, a cozinha molecular em que os talheres tem de ser inventados também. Óbvio que tem dia em que você quer comer bolonhesa ou Big ac, isso é o senso comum, a culinária que tem de existir e que transita em sensações conhecidas e nos acalenta. O reconhecível e familiar nos apazigua porque nos harmoniza e confere identidade, mas tem dia em que você é tomado por um tédio em relação a todo campo do conhecido, dias raros em que esse tédio se instala e é imprescindível que haja o El Bulli. Eu poderia assistir à peça do Enrique [Diaz] com toda natureza profunda sobre vida, morte, compaixão e dignificação do ser humano que existe ali, ou a peça da Renata Sorrah sempre, mas tem algum dia em que isso vai te entediar. Para isso, existem os 25 minutos daquela porra autista que está fora de tudo isso [referência a “Haikai”], fechada para toda uma ideia de sujeito e de afetos. Seria um inferno se só existissem as peças que faço no mundo, soam muito duras e difíceis para 99% dos estados de espírito em que estamos cotidianamente, mas, ao mesmo tempo, seria lamentável se não existisse aquela porra para uma vez por ano. Nunca quis ser Picasso, seria muito pesado ser um artista universal que alimenta todos os gostos exteriores, sempre quis ser Modigliani, um pequeno artista obscuro mas absolutamente singular.
A duração dos seus espetáculos é pensada para ser curta? Por quê?
Foi uma coisa natural, mas como tudo, começa do texto. Nesses lugares de escritura há essa ideia de síntese e amplidão. Quer dizer, o empilhamento do inventário barroco é sempre o sujeito cultural, o cachorro correndo atrás do rabo tentando encontrar uma forma de dizer e nunca vai encontrar. Por outro lado, esse mínimo que de alguma forma toca na natureza profunda das coisas e tem a ver com amplidão é o que é próprio de Deus. Como não tem nada a ver com sujeito cultural e neurose, tenta-se chegar num lugar em que já não haja possibilidade de dizer nada, então aquilo acaba. Não há mais como se dizer nada depois, chega-se num limite do que é possível fazer com a linguagem. E é insuportável ficar naquele lugar por mais de 20 ou 25 minutos. A exigência é de intensidade tanta que a percepção humana, nossa sensibilidade, não tem como ficar.
Qual é o espectador possível para esse teatro? Por vezes, a sensação é de que se passa um longo tempo do espetáculo descobrindo como fruí-lo.
A grande vez de ver essas peças é a segunda. Em pintura isso é muito bom porque você olha para um quadro e fica tentando encontrar a distância daquilo, que nem no boxe: sai, toma café, senta um tempo, aí volta e encontra o foco. No teatro, é possível voltar no outro dia e, relaxado de qualquer coisa, encontrar a distância vocal. Na primeira vez é difícil, você gasta muito tempo e perde a experiência. Por isso a segunda vez é melhor, como sexo: na primeira você está nervoso com a pessoa ali, na segunda, conhece o corpo do outro.
Seus trabalhos demandam a mesma chave ou cada espetáculo demanda do espectador uma nova relação?
São obras completamente distintas. Se você vê o “Peep Show” e o “Haikai”, são completamente distintas dentro de um sistema restrito. Todo quadro do Pollock é igual, mas para cada um deles existe uma fruição possível, embora o ponto de apoio seja parecido, mas você entra neles por lugares diferentes.
Como o espectador não tem mais o mesmo referencial que está habituado a ver, é possível que sua experiência seja plena ou em geral falta referência?
Acho que não é questão de referência. É uma experimentação que fura o real, os afetos, mas não é dependente de um repertório porque ela não fala com um sujeito cultural, fala com o inconsciente das pessoas. E os estragos e reverberações que provoca no inconsciente de cada um são imprevisíveis. Sim, há um dialogo com a história da arte e do teatro, não só pelo que se faz, mas o que se recusa a fazer. Isso pode ser fruído e pensado em vários níveis, mas a maneira como aquilo ecoa no inconsciente das pessoas é mais importante pra mim. Muita gente diz que não é teatro. O que incomoda as pessoas é que essas peças tiram delas o direito de dizer o que é teatro.
Como isso age no inconsciente?
São procedimentos que visam criar disrupturas de sinapse. Começo a gostar de algo quando de algum modo, por procedimentos empíricos – porque há de se descobrir de que modo tecnicamente se bordeja o abstrato – ligados a uso de voz, luz e de arquiteturas linguísticas outras, começa a acontecer algum tipo de perda de foco e disruptura de sinapse. Quando isso acontece, quando meu olho não consegue focar exatamente, fica indo e voltando, acho que o sistema está em pé. Quando o sistema me afeta de uma maneira perturbadora. O primeiro teste é que eu não me reconheça como sujeito na escritura, que seja estranho a mim mesmo, a ponto de a Juliana [Galdino], ao ver “Haikai”, perguntar: “De onde você tirou essa porra dessa história?”. Não tenho ideia.
Gostaria de entender sua relação com a fábula. Você não recusa completamente a história. Em “Haikai”, há a sensação de uma fábula de fundo, mesmo que não a reconheçamos.
Fábula é aquela história do cadáver do pai que jaz no fundo do oceano: não se trata de uma recusa narrativa porque isso seria muito fácil. Como há uma problematização do sujeito, o ponto não é a narrativa. Ela só é um norte estrutural para obra na medida em que o sujeito é estável. Se há instabilidade, a narrativa desaba. Mas é um paradoxo de que modo se tensiona mímesis incognoscíveis e cognoscíveis; e de que modo é preciso que todos nós intuamos que existe sim uma narrativa que jaz debaixo daquele oceano vertiginoso e que, na próxima frase, talvez essa narrativa se mostre. Isso é fundamental para que se estabeleça uma conexão com a obra, porque se houver a suspeita de que não há uma narrativa que sustente isso, eu me desconecto. Em um quadro do Pollock foi descoberta uma figura humanoide que só pode ser entrevista debaixo. Para mim isso foi a chave: a narrativa é essa figura humanoide e que só pode ser entrevista debaixo de operações formais, mas é importante que esteja ali.
Você fala em construir um sistema formal fechado dentro do qual criar variações. Neste momento, considera que o sistema que você criou está em que momento do seu desenvolvimento? Caminha para o esgotamento ou ainda não atingiu sua potencialidade?
Uma revolução, como a da culinária molecular, vai durar os próximos 200 a 400 anos, na medida em que não é uma coisa, só o fim de uma coisa e a abertura de milhões de possibilidades. Significa a liberdade de se desenhar outras habitações da existência através de outras arquiteturas linguísticas. Isso nunca foi efetivado 100% em cena porque a gente ainda é vinculado ao sujeito, aos afetos, de uma forma muito forte. São gradações, é uma utopia, uma impossibilidade. Dizer não para o objeto ausente, para essa falta em torno da qual todo objeto gira, para assumir a presentificação do impossível, da alteridade radical em cena. Não como espelho do reconhecível, mas lugar do outro radical. Na mostra de São Paulo [realizada pelo Club Noir], foram oito peças. Uma faz 30%, outra 45%, 50%, 60%, mas os lastros de mímesis cognoscível ainda são muito expressivos. “Fatia de Guerra” [de Andrew Knoll] problematiza tempo e espaço, mas não sujeito. “Grimorium” [de Alexandre França] problematiza o sujeito, mas não tempo e espaço. O “Pinokio” era um anúncio, terminava com “o que é isso?”, essa coisa diante de nós agora e que seria a hibridação de corpos e máquinas sem cabeça; e que também era um anúncio desse outro teatro da obra de arte como alteridade radical em relação a todo campo do conhecido. Aí eu cairia de joelhos e diria: “meu amor!”. Mas talvez seja a morte. A tentativa de um encontro face a face com a morte, que é Deus em vida, com essa alteridade radical. E se aproxima mais disso a cada obra.
O seu teatro seria possível sem o encontro com a Juliana Galdino?
Não. É totalmente fundamental. Não separo trabalho de amor; para mim é uma coisa só. O trabalho é meu ato de amor pelo outro; é o retorno que dou de testemunho existencial e um testamento, porque não sei se será a última, então seria impossível fazer o que faço se não fosse ela e, atualmente, sem os dez atores do Club Noir. Quando venho para Curitiba fazer essa peça [“Haikai”], só trabalho com os atores daqui pelo que aprendi trabalhando com dez atores do Club Noir.
Por um lado, você fala do seu gosto pelas artes visuais; contudo, defende a cessação da produção de imagens. Como é a sua relação com a imagem afinal?
Quando eu falo de pintura, as pessoas confundem muito. A pintura de que eu gosto é a que não produz imagens, a pintura abstrata toda, que opera por uma linguagem desconhecida. Então a coisa de refugar a imagem é porque a gente vive… Tenho brigas grandes com o Luiz Fernando Ramos sobre isso… [Alvim prolonga o silêncio, com o olhar para dentro, mexendo nos dedos]. Acho muito difícil. A única possibilidade de sensibilização do homem contemporâneo é através da obliteração da visão. Não o mergulho na cegueira, que é muito fácil. Mas de que modo pode obliterar essa visão através de uma criação de outra instância de visão, que tenha a ver sim com o crepúsculo, o lusco fusco, a luta entre o que se vê e o que não se vê, esse lugar nebuloso, da luz da lua, onde você pode ter atravessamentos do imaginário ou transbordamentos linguísticos de outra natureza. Quando você está com seu namorado, entra a luz da lua pela janela e você se permite transbordamentos linguísticos e imaginários de outra natureza, se alguém acende a luz, as coisas se quebram completamente porque o véu de Maia se impõe, o grotesco das coisas e da imposição fotônica, uma concretude falsa. Porque concretude é essa penumbra, o lugar de atravessamentos de imaginário. Não vejo diferença entre a cena de Rafaello Sanzio e um comercial de moto. Acho a lógica a mesma. É muito difícil atacar a imagem dentro da imagem. O ponto é atacar a linguagem, não existe sujeito, é só linguagem.
Foto de Ernesto Vasconcelos.
E isso aqui [apertando um dos braços], o corpo?
Só opera por condicionamentos e determinações linguísticas. Tudo o que o corpo faz, a dinâmica de afetos, foi determinado linguisticamente. Existe uma restruturação linguística introjetada na tenra infância que determina o modo como estruturamos o mundo, o outro e a nós mesmos. Os limites dessa estruturação são os do nosso mundo. Existe a linguagem e o corpo que é a letra. A letra é anterior à linguagem e tem a ver com o mistério da encarnação. Se essa percepção não existir… A gente é só o apito da panela de pressão; o fogo e a água são a linguagem, a gente é só resultado, efeito.
Quando você fala na letra como encarnação, tem relação com o momento de invocação em “Haikai”?
Existe uma arquitetura linguística hegemônica global. O fato de eu me comunicar com mexicanos e belgas me diz que há uma estruturação linguística comum, não há mais quase nada lost in translation. Cada linguagem deveria ser uma forma de vida inteira, intraduzível para outra língua. É importante que haja sensações que você desconheça. Uma linguagem sendo formas de vidas inteiras. E, hoje, em 90% dos países há uma mesma forma de vida em que a linguagem é só questão fonética, não de forma de vida. É preciso criar outras arquiteturas linguísticas que comecem a embaralhar isso e possibilitar pontos de fuga para nossa forma de vida fundamentada na nossa arquitetura hegemônica. Até o ponto em que se possa chegar talvez nessa linguagem como instância de invocação de algo que ainda não existe. O problema é que, para que isso aconteça, é uma questão de atuação também. Essa linguagem precisa se tornar corpo. E aí nós não estamos prontos para isso, os atores vivos em 2013.
A Juliana está mais perto disso?
Talvez. Eu j á vi. Acho tudo perfeito. Por que não estamos mortos ainda? Porque ainda resta algo a ser instaurado. Talvez se tivesse sido instaurado, fosse o momento de terminar. Não evito essa instauração, mas lido com a impossibilidade dela nesse momento e com a perfeição possível desse momento. Talvez haja um dia em que isso se instaure e talvez seja nossa própria morte.
O que você pensa sobre a contradição entre sua postura como teórico de expandir as possibilidades do teatro e da compreensão/experiência humana e sua postura como artista que acaba por delimitar um escopo de regras, de procedimentos que são replicados por discípulos?
Naquele texto que você [Luciana] escreve no Questão de Crítica existia um título: “Um campo de invenção sob risco de réplica”. É obvio que isso é pensado e discutido o tempo todo. O tempo todo se fala sobre singularidade e que as pessoas não repliquem procedimentos meus. Quantas vezes eu vi acenderem lâmpada fluorescente atrás e nego parado em cena falando, uma caricatura bizarra, e falei: “O que está fazendo?” Da Mostra [de dramaturgia do Sesi Paraná, realizada em dezembro de 2012], eu expurguei 15 mil repetições grotescas, porque é tendência das pessoas seguir o pai, o mestre. Tenho um discurso e um procedimento de quebrar a posição de pai e de mestre comigo, não me sinto confortável, e tento me colocar de maneira escrota e direta para que não fique o velho sábio.
Sua postura não leva a essa replicação?
Não posso evitar. Se você for olhar para o “Fractal” [de Patrícia Kamis] ou “Parido” [de Don Correa] ou para “Melhor Ir mais Cedo Pular da Janela” [de Léo Moita] – que é o que mais se parece pelo trabalho com a voz do menino, o que de fato eu inventei desde a dramaturgia… Às vezes é importante para os caras, é a primeira peça de muita gente ali. Quantas vezes eu imitei o Gerald Thomas enquanto estava dirigindo ou o próprio Antunes ou o Bob Wilson deliberadamente, sabendo que estava imitando, exercitando meus músculos e percebendo como é o gesto criativo para perceber algumas coisas, mas sempre tendo em mente que o tema é a conquista de uma contribuição singular, de um testemunho original para ampliação do working space do teatro e da experiência estética da humanidade. Isso é batido e rebatido. Na mostra, eram oito peças. Se for olhar a diferença entre cada uma delas é muito grande. Agora, claro que há. A pior coisa para mim é quando vejo alguma coisa de alguém que é parecida. Atrapalha a fruição do meu trabalho. A peça do Diego [Fortes] com texto da Ana Johann é mais parecida com o que eu faço, embora seja uma caracterização ruim porque são três estanques trabalhados grotescamente na voz. O ponto mais chato é que atrapalha a fruição da minha peça ter visto uma caricatura grotesca do meu trabalho antes. Mas falei isso: a última coisa que eu quero é seguidor, formar seita em um lugar que prima pela singularidade . Tento evitar o procedimento derivativo… Agora, tem o “Fatia de Guerra”, o “Aqui” [da Martina Fischer] e o “Gremorium”, três peças completamente distintas e umas 15 peças derivativas. Em São Paulo, por conta da critica do Luiz Fernando Ramos e da matéria de página inteira, fui dar uma oficina no Clube Noir para 85 pessoas e apareceram uns 25 “Aquis”, usando os mesmos signos: dentes, unhas que caem, corpo, mar, gaivota, coiote.
As pessoas costumam ler como arrogância sua postura de querer ser original e ser eternizado de alguma maneira na história.
Sempre fui arrogante. Sem arrogância não se faz obra de arte. Etimologicamente falando, é trazer para si a responsabilidade pelas coisas. Acho covardia e mediocridade espiritual se colocar fora disso se estou no campo da arte, não da criação de produtos culturais que historicamente não têm peso nenhum. Eu me coloco no campo da arte por amor a Ibsen e a Shakespeare. Alguém achou que Shakespeare fez isso despretensiosamente? Matou o [Christopher] Marlowe e entregou o filho dele forças do mal. Pessoas antes de nós deram tanto a essa arte e é por amor e para honrá-las que eu faço o que faço. A única postura que dignifica essa arte é essa. O que fazemos é um ato de amor ao teatro e ao outro. Beckett inventou um bolsão de experiência estática como não havia nem sinal antes. Strindberg também. Alguém acha que alguma dessas pessoas fez o que fez sem pretensão de mudar a história do teatro e do ser humano? São as pessoas covardes que não admitem quebrar o pacto de inferioridade que há entre elas e ao redor delas. A grandeza de nossa contribuição tem a ver com a gratidão pela vida.

05/04/2013 TAGS: Festival de Curitiba, Roberto Alvim, São Paulo 0 COMMENT
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O Horizonte da Cena é um site de crítica de teatro criado em setembro de 2012 pelas críticas Luciana Romagnolli e Soraya Belusi, em Belo Horizonte. Atualmente, são editores Clóvis Domingos, Guilherme Diniz e Julia Guimarães. Também atuam como críticos Ana Luísa Santos, Diogo Horta, Felipe Cordeiro, Marcos Alexandre, Soraya Martins e Victor Guimarães. Julia Guimarães e Diogo Horta criaram, em 2020, o podcast do site. Saiba mais

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