• Início
  • Categorias

    Hot Categories

    • conversações

    • podcast

    • críticas

    • coberturas

    • entrevistas

    • dossiês

    • ensaios

  • Quem somos
  • Contato
  • Ações
  • Parceiros

Horizonte da Cena

Horizonte da Cena

críticas

A ousadia da baixeza no “Circo Negro”; da CiaSenhas

“Circo Negro”. Fotos de Ester Gehlen.

por Luciana Romagnolli

No “Poema em Linha Reta”, Fernando Pessoa (1888-1935) vê um mundo repleto de semideuses onde seu eu lírico parece ser o único vil, “no sentido mesquinho e infame da vileza”. A ironia se lança contra a negação/o ocultamento dos comportamentos e instintos mais baixos. Aqueles mesmos que o homem viveria sem vergonha no passado, mas que teriam se transformado em má consciência na modernidade segundo a genealogia da moral traçada por Friedrich Nietzsche (1844-1900). Um material humano desprezado ao qual se abre espaço para existir, ser visto e pensado em “Circo Negro”, espetáculo da CiaSenhas.

Nietzsche considera a má consciência um mal adquirido pelo ser humano ao se encerrar na “paz” da sociedade. Com ela, “foi introduzida a maior e mais sinistra doença, da qual até hoje não se curou a humanidade, o sofrimento do homem com o homem, consigo: como resultado de uma violenta separação do seu passado animal, (…) resultado de uma declaração de guerra aos velhos instintos nos quais até então se baseava sua força, seu prazer e o temor que inspirava”. Para o alemão, contudo, o prazer na crueldade não se extinguiu completamente no mundo de hoje; em vez disso, foi transposto ao plano imaginativo e psíquico, conformando sentimentos como a compaixão trágica.

“Circo Negro” coloca esses instintos em evidência numa encenação que joga com a condição do ator dentro de uma atmosfera circense estetizada, na qual os procedimentos e rituais tradicionais das grandes lonas e das feiras artísticas – portanto, da arte “baixa” em comparação à erudição dos salões de teatro literato – são citados com cinismo. Ao mesmo tempo, a crueldade humana, assim como a sujeição, a manipulação e a humilhação tornam-se objeto do humor negro.

O espetáculo exige do espectador uma disposição inusual de seus afetos para o reconhecimento de suas baixezas. E para, contra a má consciência adquirida, recobrar a experiência do prazer que o cruel pode lhe inspirar. O roteiro de ações concretizadas em cena demanda uma fruição distanciada, diante da qual o público pode adotar também uma postura cínica, caso aceite o pacto apresentado.

A direção de Sueli Araújo orquestra um estranhamento a pairar sobre a encenação, que contamina ritmos e humores do jogo entre os atores; e é reforçado pela música e pelos elementos cênicos, sobretudo os quadros vivos que espreitam ao fundo do cenário desenhado por Paulo Vinícius, à semelhança dos video portraits de Bob Wilson.

Minuciosa na comunicação visual tanto entre os próprios atores quanto entre eles e o público, a diretora refina as trocas de olhares e uma gestualidade expressiva, de modo a criar uma cumplicidade dentro da cena. Esse será um dos fundamentos da dramaturgia, inclusive para ser desconstruído quando necessário. Em paralelo, a relação que o elenco estabelece com o espectador é de tensão e incômodo, erguendo a base para que se reflita a condição de exposição inerente ao trabalho do ator.

A manipulação e a sujeição são reveladas nesse contexto metateatral dentro de cenas que reeditam a gramática de artes cênicas menos valoradas socialmente, como o show de hipnose; e de outras que evidenciam o contraste entre a presença do ator e a do boneco. Este, que era o mote do texto de Daniel Veronese quando escrito (em 1997) para seu então grupo Periférico de Objetos, torna-se mais sutil na opção da CiaSenhas por se concentrar no aspecto humano reduzindo os bonecos a um.

Pelo modo como faz a sério o escracho e se sustenta no estranhamento também como elemento organizador da dramaturgia, negando ao espectador uma história à qual se apegar, personagens empáticos ou respostas emocionais relativas a afetos elevados, que poderiam ser facilitadores da fruição, “Circo Negro” representa uma ousadia de linguagem e de conteúdo com a qual a CiaSenhas avança em sua trajetória, mantendo a coerência com sua história.      

Em tempo, há de se dizer que o espetáculo perde nuances em um teatro maior, como o do HSBC, no qual se apresenta no Fringe, em comparação ao espaço intimista da Cia. dos Palhaços onde estreou. O jogo dos atores em relação ao espectador ressente de uma copresença mais próxima, embora isso não impeça a obra de transcender a condição cruel do artista para tangenciar a crueldade do humano.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
    Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

(…)


Fernando Pessoa
03/04/2013 TAGS: CiaSenhas de Teatro, Curitiba, Festival de Curitiba, Fringe 2 COMMENTS
SHARE
Leia mais

Comente Cancel Reply

"O Espelho" evidencia a dificuldade de quebrar a hierarquia no convívio teatral - Mostra Oficial do Festival de Curitiba

O reconhecimento do outro e a metamorfose como estrutura – observações sobre "Recusa" e entrevista com Maria Thaís

  • categorias

    • capa
    • coberturas
    • Conversações
    • críticas
    • dossiês
    • ensaios
    • entrevistas
    • podcast
    • Sem categoria

Relacionados

capa coberturas críticas Pela liberdade e pela alegria | Festival de Curitiba 2017 – parte I

críticas Desventuras do olhar

entrevistas O naufrágio do convívio e o apocalipse do capitalismo por Rafael Spregelburd

capa coberturas críticas Um canto pela vida além das normas | Festival de Curitiba (2)

capa críticas Nós estávamos tentando nos levantar

críticas O santo, o bar e uma grande dose de lágrimas

Quem Somos

O Horizonte da Cena é um site de crítica de teatro criado em setembro de 2012 pelas críticas Luciana Romagnolli e Soraya Belusi, em Belo Horizonte. Atualmente, são editores Clóvis Domingos, Guilherme Diniz e Julia Guimarães. Também atuam como críticos Ana Luísa Santos, Diogo Horta, Felipe Cordeiro, Marcos Alexandre, Soraya Martins e Victor Guimarães. Julia Guimarães e Diogo Horta criaram, em 2020, o podcast do site. Saiba mais

Cadastre seu email

Mantemos os seus dados privados e os compartilhamos apenas com terceiros que tornam este serviço possível. Leia nossa política de privacidade.

Verifique sua caixa de entrada ou a pasta de spam para confirmar sua assinatura.

Siga-nos nas redes

Horizontedacena

Horizontedacena

Horizonte da Cena
Direitos Reservados © 2017 - 2019 Horizonte da Cena