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Horizonte da Cena

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críticas

A manipulação da verdade e a instabilidade do sentir

por Soraya Belusi ::
Mãe. Pai. Namorado. Melhor amiga. Traços culturalmente reconhecidos, cujas noções compartilhadas acerca dos laços afetivos que os une atingem certo consenso, ainda que em um plano idealizado do que deveriam ser essas relações quase arquetípicas e o grau de verdade estabelecida nelas. Há ainda um carteiro, aquele que, invisível, ronda a intimidade dos lares. Mas a verdade, normalmente tão certa e inabalável, alerta a Cia. Senhas em seu “Obscura fuga da menina apertando sobre o peito um lenço de renda”, é facilmente manipulável sob os olhos do outro e de nós mesmos, dependendo dos pontos de vista pelos quais esta se constrói.

Luiz Bertazzo e Greice Barros trabalham com estados emocionais limítrofes (Fotos de Emi Hoshi – Clix Divulgação)
Em linhas gerais, “Obscura fuga da menina…”, espetáculo apresentado no Festival de Curitiba, expõe a busca de explicação dos personagens para o desaparecimento da jovem Martina. As recordações e acusações entre pai e mãe diante de tal fato trazem à tona questionamentos sobre a maneira como enxergavam a relação com sua filha. As dúvidas acerca das motivações da fuga da menina ganham ainda mais potência com a chegada do namorado e da melhor amiga da jovem. As convicções que todos esses personagens tinham acerca dos afetos que os unia à Martina é relativizada a partir de então.

A Cia. Senhas potencializa o jogo de instabilização da realidade já presente na construção textual do diretor e dramaturgo Daniel Veronese, fazendo evidenciar, como já acontecia de certa maneira em “Circo Negro”, o que Freud categorizou como relativo ao sinistro, “o assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar”, justamente para desestabilizar o senso comum. Em sua construção, o espetáculo elabora uma série de procedimentos que possibilitam ao espectador ter sua fruição impregnada por impressões sinistras. Esses elementos já estão em Veronese – como a sensação de que algo está oculto na narrativa e que imaginação e realidade não são distinguíveis – e ganham ainda mais potência na elaboração da companhia curitibana.

A ideia de dominação presente em “Circo Negro” aparece aqui reelaborada sob a égide da manipulação das certezas, em que os dados apresentados são posteriormente questionados, em que os papeis são embaralhados e indefinidos, em que os sentimentos se reconfiguram permanentemente, em que as lembranças assumem facetas diversas de acordo com a necessidade, em que se é possível mentir para salvar aquilo que nos acalenta enquanto verdade.


A atuação, principalmente no registro que Greice Barros e Luiz Bertazzo atingem nos papéis de pai-mãe, é construída a partir de estados emocionais contraditórios e simultâneos, friccionados entre a contenção e o transbordamento, como se seus corpos pudessem ser divididos em dois:  uma metade que se protege, cujos gestos são extremamente comedidos, e outra que não é mais capaz de reter a emoção que insiste em vazar pelos olhos, como se algo que quisessem esconder escapasse mesmo que contra a vontade. Estados emocionais levados ao limite, mantidos à beira do insuportável e prestes a serem detonados.

Os arquétipos de pai e mãe, consequentemente de figura materna e paterna, cujas noções culturais são amplamente demarcadas ainda nos dias de hoje, aparecem problematizados já na caracterização dos personagens, seres marcados pela androginia ou travestimento, cuja face feminina recebe traços masculinos e vice-versa, misturando essas noções de gênero e função familiar e afetiva.  Não é apenas o figurino que provoca esse embaralhamento dos papéis. Ele está também, entre outros sinais, na fala generosa e abdicadora do pai em contraponto à paixão quase edipiana da mãe pela filha, no rigor que a figura feminina traz para si em contraponto à flexibilidade presente na construção da presença masculina.
O espaço também é relativizado e instabilizado o tempo inteiro. Não há uma separação entre o que está dentro e o que está fora – tanto do espaço da cena teatral em si quanto do espaço da ficção. A presença de um pequeno número de espectadores no centro do espaço de representação entrelaça os mundos da vida real (do espectador) e da ficcional (dos personagens), percepção que se acentua com procedimentos dramatúrgicos simples, mas de efeitos potentes, como a aproximação da personagem defendida pela atriz Ciliane Vendruscolo do público com o questionamento “alguém sabe o que está se passando nessa casa?”.
Esse jogo entre o que se passa de fato e aquilo que se (quer) vê ganha leituras múltiplas na concepção da cenografia, em que tudo parece se mover, sair do lugar, enquanto aqueles personagens insistem em acreditar que nada pode mudar. A rigidez dos comportamentos contrasta com a ausência das paredes, permitindo que dentro e fora se misturem, que se saia da casa sem com isso tornar-se de fato ausente. Enquanto tudo se desloca, aqueles personagens parecem não sair do ponto em que começaram. Como se insistissem em não acreditar que a crença que sustentavam não era nada mais que apenas uma possibilidade do real, sempre manipulável e instável.  Como que avisa: “ninguém mais pode estar seguro de nada”.

O Horizonte da Cena viajou a convite do festival.

04/04/2014 TAGS: CiaSenhas de Teatro, Curitiba, Daniel Veronese, festival, Festival de Curitiba, Fringe 1 COMMENT
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O Horizonte da Cena é um site de crítica de teatro criado em setembro de 2012 pelas críticas Luciana Romagnolli e Soraya Belusi, em Belo Horizonte. Atualmente, são editores Clóvis Domingos, Guilherme Diniz e Julia Guimarães. Também atuam como críticos Ana Luísa Santos, Diogo Horta, Felipe Cordeiro, Marcos Alexandre, Soraya Martins e Victor Guimarães. Julia Guimarães e Diogo Horta criaram, em 2020, o podcast do site. Saiba mais

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