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Horizonte da Cena

Horizonte da Cena

Daniel Toledo

coberturas

Anunciada a programação do FIT-BH 2016

Anunciada a programação do FIT-BH 2016

Foi divulgada hoje, durante um encontro no Teatro Francisco Nunes, a programação completa do 13º Festival Internacional de Teatro de Palco e Rua de Belo Horizonte (FIT-BH 2016), que acontece entre 20 e 29 de maio. Ao todo, a mostra oficial do festival inclui 25 espetáculos, sendo seis de Belo Horizonte, seis de outros estados brasileiros e 13 estrangeiros (veja abaixo a lista completa).

Ocupando as principais casas teatrais da cidade e também o clube noturno Sayonara, a programação internacional reúne espetáculos de Portugal, Escócia, França, Itália, Ucrânia, Argentina e Chile. Na programação nacional, por sua vez, figuram montagens de São Paulo, Natal, Florianópolis e, é claro, Belo Horizonte. Os ingressos, com preço de R$20 (inteira) e R$10 (meia), serão vendidos a partir do dia 09 de maio (segunda-feira) por meio do site fitbh.com.br.

De volta à rua. Entre os destaques da edição deste ano, está a delimitação de um tema curatorial, “resiliência”, assim como uma clara valorização do teatro de rua, característica que marca a trajetória do festival e andava um pouco desprestigiada nas edições mais recentes. Além de “À Tardinha no Ocidente”, do grupo mineiro Primeira Campainha, outros cinco espetáculos de rua integram a grade, incluindo o trabalho escolhido para abrir a mostra, o francês “Les Girafes, Opérette Animaliére”, que deve levar muita gente até a Praça da Estação no próximo dia 20.

Além da mostra de espetáculos profissionais, a programação do FIT-BH 2016 inclui seminários e lançamentos de livros, que acontecem no Centro de Referência da Moda, além de uma série de oficinas e workshops com integrantes dos grupos que participam do festival. Também foram incluídos na grade de projetos especiais alguns trabalhos oriundos das principais escolas de teatro de Belo Horizonte.

Confira abaixo a programação de espetáculos do FIT-BH 2016:


Espetáculos estrangeiros

Clake (Circo Amarillo – Argentina/Brasil)
Clake é um espetáculo cômico que acentua o trabalho da dupla Marcelo Juan e Pablo Nordio como palhaços excêntricos musicais. Sequências de gags clássicas são combinadas com a linguagem contemporânea da dupla e resultam num espetáculo de palhaçaria cômica física e musical. Uma interessante experiência de sonoridades e circo que diverte o público de todas as idades. Dias 28/05, às 16h, no Teatro Raul Belém Machado; 29/05, às 10h, na Praça JK, e às 16h, embaixo do Viaduto Santa Tereza.

Compleanno (Compagnia Teatrale Enzo Moscato – Itália)
Dedicado à memória de Annibale Ruccello, jovem dramaturgo italiano tragicamente falecido em 1986, o texto desenvolve a dupla temática da ausência e do delírio, interpretada como produções fantasmáticas que se materializam nas palavras, nos sons e nos gestos, e focada em preencher a vacuidade da existência. Ou do teatro.
Dias 24/05, às 20h, e 25/05, às 19h, no Teatro Marília.

Con Su Permiso (Tuga Intervenciones – Chile)
Tuga é um personagem atípico. Vive em outro planeta, onde a luz vermelha do semáforo e a polícia não são autoridade. Ignorando o tráfego, sobe em veículos, some com uma passageira, aparece sobre o capô de um caminhão… Não é um perturbador, é um curioso, um ser estranho e mágico. Tuga, o agitador da rua, é todo um mundo! Dias 21/05 e 22/05, às 11h, na Pça Duque de Caxias, e às 16h, na Praça da Liberdade; 24/05, às 15h, na Av. Augusto de Lima (em frente ao Mercado Central); 26/05, às 15h, na Praça da Liberdade.

Dakh Daughters Band – Freak Cabaret (Dakh Theatre – Ucrânia)
O espetáculo promete uma viagem incrível, cheia de emoção, beleza e raiva; um concerto punk em forma de poema. A trupe se permite diversas fantasias, como a mistura de rap francês com melodias tradicionais ucranianas e ritmos orientais como darbuka. Não há tabus com as Dakh Daughters, nada é sagrado, tudo é permitido. Parecem ter o objetivo comum de exaltar a arte por meio da política — ou seria o contrário? Dias 26 e 27/05, às 22h, e 28/05, às 19h, no Teatro Bradesco.

Le Cabaret des Acrostiches (Les Acrostiches – França)
Por serem artesãos, eles criam espetáculos cheios de poesia e ousadia, nos quais seus corpos e palavras se entrelaçam em pura harmonia. Números de técnicas de alta precisão são realizadas em um contexto de inconstância e o público tem a impressão de que algo não está bem. Uma vasta gama de habilidades circenses inclui acrobacia e malabarismos, juntamente com canto, comédia, palhaços e música ao vivo. Dias 25/05, às 15h, na Praça Sete; 26/05, às 11h e às 15h, no Parque das Mangabeiras (Teatro de Arena); 27/05, às 15h, na Barragem Santa Lúcia.

Les Girafes, Opérette Animalière (Compagnie Off – França)
Um comboio de girafas passa graciosamente movimentando seus pescoços flexíveis. O diretor do circo toca o tambor, bate os pratos e imagina suas girafas pulando chamas de fogo em círculos. Sua jovem esposa, uma Diva, segue cantando e se integra ao comboio, resultando em uma harmonia lírica perfeita. Com um tom de circo e teatro, o comboio segue radiante, contemplando a cidade. Dias 20/05, às 21h, na Praça da Estação, e 22/05, às 16h30, na Praça Geralda Damata Pimentel (Nova Praça da Pampulha).

Mary’s Baby – Frankenstein 2018 (Théatre Diagonale – França)
É uma viagem ao labirinto do espírito de uma Mary Shelley moderna à procura do Monstro. Uma performance solo onde corpo, imagens, som e texto são os ingredientes de uma escrita dramatúrgica plural. Atualmente, a fabricação do ser humano imaginada por Mary Shelley é uma realidade científica. O que ela poderia sonhar hoje, em uma sociedade na qual o corpo se tornou a terra de fantasias e manipulações sem limites? Dias 27/05, às 20h, 28/05, às 22h, e 29/05, às 17h, no Cine Theatro Brasil Vallourec.

Mi Hijo Sólo Camina Un Poco Más Lento (Colectivo de Investigación Teatral Apacheta – Argentina)
Branko sofre uma doença que o faz perder a mobilidade a cada dia. Como viver essa situação no âmbito familiar? O que ele pode fazer? O que podem fazer aqueles que o rodeiam? No meio dessa realidade, aparecem frestas que trazem um novo ar. Dia 24/05, às 21h, no Galpão Cine Horto.

O Meu País é o Que o Mar Não Quer (Casa da Esquina – Portugal)
Este espetáculo documental nasceu da estadia do ator Ricardo Correia em Londres, e foi construído a partir dos testemunhos da nova onda de emigrantes portugueses qualificados que tiveram de sair de Portugal em função das medidas de austeridade adotadas pelo governo daquele país. Trata-se da história de uma geração dividida entre partir ou ficar. Dias 21 e 22/05, às 20h, no CCBB-BH.

Os Mercadores das Nações (Opera Theatre Company – Grécia)
Baseado num romance do século 19, “Os Mercadores das Nações” tem lugar em 1199, quando os mercadores venezianos e os piratas genoveses lutam pela conquista das ilhas Cyclades, dirigidos por arbitrariedade e egoísmo – esse é o cenário onde se desenvolve a paixão de Augusta. Ela abandona seu marido para seguir um conde veneziano, criando assim seu próprio caminho até a morte. A narração no palco se dá através da fala, música, canto, movimento, gestos e tecnologia multimídia. Dias 27/05, às 19h, e 28/05, às 17h e 20h, no Teatro Alterosa.

The Gospel According to Jesus, Queen of Heaven (Queen Jesus Plays – Escócia)
Escrito e representado pela lendária dramaturga, atriz e poetisa trans Jo Clifford e dirigido por Susan Worsfold, este espetáculo único e extraordinário combina teatro com contação de histórias, palavra falada e ritual. Um espetáculo humano, sagaz e amoroso em que o pão é compartilhado, o vinho é bebido e as histórias familiares são reinventadas por um Jesus transgênero. Dias 21, 22 e 23/05, às 21h, no Museu Mineiro.

Toledo Suite (Compagnia Teatral Ana e Enzo Moscato – Itália)
Enzo Moscato, ator, cantor, diretor e dramaturgo italiano interpreta, acompanhado por músicos ao vivo, letras e trechos de própria autoria com citações de Brecht, Duras, Viviani, Weill, Taranto, Gill, Reed, num percurso musical culto, popular e refinadíssimo criado pelo musicólogo Pasquale Scialò. “Toledo Suite” é um recital caracterizado por intensas e sugestivas emoções obtidas graças também às imagens cênicas de Mimmo Paladino. Dias 27/05, às 20h, e 28/05, às 19h, no CCBB-BH

Uma Maria, Um José (Compagnie di Théâtre K – França)
A “Colônia”. De 1930 a 1985, mais de 60 mil pessoas morreram ali… No meio deste desastre humano, dois sobreviventes, por algum milagre. Maria Aparecida, cega, surda e muda, e José Marcelino se apaixonaram. Espetáculo criado na França, baseado em história real ocorrida em Barbacena/MG. Dias 21/05, às 21h, e 22/05, às 19h, no Teatro de Bolso Sesc Palladium.

 

Espetáculos de outros estados brasileiros

Abrazo (Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare – Natal/RN)
“Abrazo” é uma obra voltada para o público infantojuvenil, mas que pode ser assistida por crianças e adultos de todas as idades. Num lugar em que não é permitido abraçar, personagens atravessam um quadrado contando histórias de encontros, despedidas, opressão, exílio e, por que não, de afeto e liberdade. O espetáculo não verbal conta com a música especialmente composta para a cena e com vídeo de animação para narrar essa aventura inspirada em “O Livro dos Abraços”, de Eduardo Galeano. Dias 27/05, às 19h, 28/05, às 17h, e 29/05, às 19h, no Teatro Francisco Nunes.

Cinco Semanas em um Balão (Sabre de Luz Teatro – São Paulo/SP)
Dr. Fergusson, um cientista aventureiro, seu amigo Dr. Kennedy, um explorador nada corajoso, e seu fiel criado, Joe, partem em uma aventura pela África em busca de três tesouros perdidos, a bordo de um balão. A travessia dura cinco semanas. Estes incansáveis exploradores inventam mil e uma traquinagens para superar os desafios da viagem e aprendem, durante o percurso, que nem todo tesouro do mundo é mais valioso do que uma grande aventura! Dias 21 e 22/05, às 16h, e 23/05, às 15h, no CCBB-BH.

Kassandra (La Vaca Cia de Artes Cênicas – Florianópolis/SC)
Versão atualizada e transgressora do mito grego de Kassandra, princesa de Troia, que transformou seu corpo e se tornou uma guerreira do sexo. O texto do dramaturgo franco-uruguaio Sergio Blanco foi criado para ser encenado em espaços não convencionais e em um inglês rudimentar. Na montagem brasileira, a peça se passa em uma casa de shows e a personagem é uma performer. Dias 24, 25 e 26/05, às 21h, na Sayonara Night Club.

Mundomudo (Cia Azul Celeste – São José do Rio Preto/SP)
“Mundomundo” investiga a relação cultural entre o velho e o novo por meio dos valores difundidos na sociedade contemporânea. Um mergulho que fala de homens pequenos aprisionados em um espaço enorme, motivados por um jogo no qual a necessidade é a regra. Significa o fim deste jogo, que se mantém como remedo do teatro passado, e vislumbra, na devastação que lhe circunda, formas fantasmagóricas para um teatro futuro. Dias 23/05, às 21h, 24/05, às 20h, e 25/05, às 18h, no Teatro Alterosa.

Tropa (Grupo Laje – São Paulo/SP)
O espetáculo conta a história da vida do Capitão Nascimento, antes e depois de sua saída do BOPE. A peça é inspirada nos filmes “Tropa de Elite 1” e “Tropa de Elite 2”. Três atores encenam a história em uma plataforma de um metro de largura por 90 cm de profundidade. Os corpos dos atores são os maiores meios de comunicação dessa história, já que não há uso de música, cenário, adereços e iluminação. Dias 23/05, às 16h, embaixo do Viaduto Santa Tereza; 24/05, às 16h, na Praça da Savassi (rua Pernambuco entre Getúlio Vargas e Tomé de Souza); 25/05, às 15h, no Parque Municipal (em frente ao Teatro Francisco Nunes).

Uz (La Vaca Cia de Artes Cênicas – Florianópolis/SC)
Os habitantes de Uz vivem em paz, guiados pelos ensinamentos da Igreja. Até que um dia, Grace, a mais virtuosa entre as mulheres, escuta a voz de Deus. Ele ordena que ela mate um de seus filhos. Para cumprir essa sagrada missão, Grace não deixará pedra sobre pedra. Dias 21/05, às 16h e 21h, e 22/05, às 18h, no Teatro Sesiminas.


Espetáculos locais

À Tardinha no Ocidente (Primeira Campainha – Belo Horizonte/MG)
Brasil, 2014. Ana, Rê, Mona, Dita e Tops se encontram para jogar bola na rua, depois da “Ave Maria” na Igreja e antes de tocar o “Guarani” no rádio. A brincadeira, vez ou outra, parece até a história do Brasil. Uma comédia anarquista na rua. Uma opereta republicana no meio da praça. Um infantil monárquico em frente à igreja. Uma paródia ditatorial diante do povo. Uma canção utópica no fim da tarde. Dias 28/05, às 16h, na Praça Duque de Caxias; 29/05, às 16h, na Praça da Liberdade.

Calor na Bacurinha (As Bacurinhas – Belo Horizonte/MG)
Calor na Bacurinha. Saga “carnavandalizada melitintante de mulheres autênticas”. Desde a lábia minora de meu próprio bordado passando por um gineceu arrombado pelo tanque de meus lençóis manchados até a terceira onda, onde meus indicadores (que não apontam pra ninguém) junto de meus polegares opositores se unem pra cantar. Dias 25/05, às 20h, e 26/05, às 19h, no Galpão Cine Horto.

Maxilar Viril (Maldita Cia de Investigação Teatral – Belo Horizonte/MG)
Obra cênica de ocupação que investiga o mito da violência na tragédia contemporânea e propõe uma reflexão com referência nas Comissões da Verdade constituídas na América Latina, especialmente as do Peru e do Brasil. Foi construído a partir da transcriação do conto “História do lagarto que tinha o costume de jantar suas mulheres”, do escritor, jornalista e pensador uruguaio Eduardo Galeano, falecido ano passado. Dias 21/05, às 19h, e 22/05, às 21h, no Teatro Francisco Nunes.

Migrações de Tennessee (Cia Absurda – Belo Horizonte/MG)
É uma homenagem ao escritor Tennessee Williams, seus contos, poemas e peças. Da atmosfera decadente e underground dos anos 30 emergem personagens e situações que têm forte inspiração nas memórias e reminiscências do autor. O espetáculo entrelaça as lembranças do escritor com cenas inspiradas em seu universo temático para vislumbrar, nesses personagens obscuros e decadentes , uma humanidade profunda e luminosa. Dias 21/05, às 19h, e 22/05, às 20h, no Galpão Cine Horto.

Real (Espanca! – Belo Horizonte/MG)
Um linchamento, um atropelamento, um movimento grevista e uma chacina policial. “Real”, criação do Espanca!, reúne quatro peças curtas, inspiradas em acontecimentos reais que pertencem à memória recente das cidades brasileiras. Dias 23/05, às 20h, e 24/05, às 18h, no Teatro Francisco Nunes.

Rosa Choque (Coletivo Os Conectores – Belo Horizonte/MG)
Colocar-se no lugar do outro. Misturar as cores, os tons. Confrontar-se. O choque não é de mulheres contra os homens. O choque é contra um pensamento que limita a liberdade humana, mas, principalmente, as mulheres. O choque – sem violência – é para que haja o encontro. Dias 28/05, às 20h, e 29/05, às 19h, no Galpão Cine Horto.

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03/05/2016 TAGS: FIT-BH BY: Daniel Toledo
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O que pode a arte?

O que pode a arte?

— por Daniel Toledo —

 

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Insertions into Ideological Circuits 2: Banknote Project 1970 by Cildo Meireles born 1948

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Fotos: Cildo Meirelles

 

Muito se fala, hoje em dia, sobre os cada vez mais visíveis transbordamentos e aproximações entre arte e política. Foi sobretudo durante os movimentados anos 1960, no entanto, mas claramente também antes disso, que a ideia de “arte política” passou a ganhar força em diferentes campos artísticos, tais quais o teatro, as artes visuais e o emergente campo da performance. Pois, cinco décadas depois, os movimentados anos 2010 que ainda vivemos parecem constituir um novo momento de visibilidade para a ampla produção artística que por vezes se mistura à vida como ação política, a partir de algo que se poderia chamar de imaginação radical da arte”. Mas do que se fala quando se fala em arte e política?

“Acontece que o século XX cria uma linha de divisão entre um uso da arte a partir de e para uma governança pelo alto, ou de cima, (…) e a projeção de uma arte pensada para alimentar a criatividade e a diferenciação individual. Muitos movimentos da arte do século XX orientam a relação entre arte e política na direção da ideia de criar condições de possibilidade para uma governança de si por si próprio.”(HUCHET, 2012)

Bastante frequentes, comentados e também questionados em nossos dias, os deslizamentos entre arte e política podem se verificar, por exemplo, em criações que buscam desestabilizar discursos e perspectivas hegemônicas sobre diferentes aspectos da nossa realidade ou da nossa experiência social. Podem encontrar-se em trabalhos que visam estimular a consciência do espectador sobre os lugares políticos e sociais que ocupamos, assim como as ideologias e as lógicas que estão por trás de nossas ações cotidianas, revelando situações de opressão que frequentemente construímos juntos, ora como oprimidos, ora como opressores. Podem, por fim, verificar-se em criações que convidam o espectador a colocar-se no lugar do outro – um outro social – e, quem sabe, experimentar o mundo sob sua perspectiva.

“O homem ‘humanizado’ pode agir em sociedade instruído por uma sensibilidade e uma racionalidade melhoradas quando estende à vida a experiência que viveu na arte. Espera-se dele, em suas relações cotidianas, ao se colocar no lugar do outro, ao sentir com o outro, que possa reformular as instituições sociais que o conformam a partir do compromentimento ético que assume.”(VINHOSA, 2012)

Para tanto, artistas e criadores podem se apoiar em campos e linguagens artísticas tradicionais, mas não raro propõem certas expansões em relação aos próprios campos de atuação. Borram, então, fronteiras entre diferentes linguagens artísticas, assim como entre arte, vida e política. Tais expansões, a propósito, muitas vezes se devem à apropriação de ações, situações e ambientes cotidianos, característicos do mundo da vida e não propriamente da tradição artística. Em alguns casos, os trabalhos podem ainda chamar atenção pelo estabelecimento de alianças entre seus criadores e variadas causas políticas, grupos e movimentos sociais ou ainda populações oprimidas, podendo incluir ou não integrantes destes grupos nos processos criativos.

Ao aproximar arte e vida, aliás, tais criadores não raro convertem espectadores em colaboradores ou ainda ativadores de seus trabalhos, seja a partir do desenvolvimento de éticas e estéticas que permanentemente renovam as vinculações entre arte, espectador e vida social, ou ainda do enfrentamento e da atualização de temas historicamente associados à luta pela redistribuição do poder.

 

Opavivará, Pawel Althamer e Khaled Jarrar: a arte das alianças políticas

Mas do que se fala, afinal, quando se fala em arte e política? Inicio aqui, então, uma seção para exemplificar essas ideias a partir de três ações realizadas nos últimos anos por artistas brasileiros e estrangeiros. A primeira delas, intitulada “Eu Amo Camelô” e levada a cabo pelo coletivo carioca Opavivará no final de 2009, foi criada como resposta à proibição de vendedores ambulantes nas praias do Rio de Janeiro, naquele mesmo ano.

Fotos: Opavivará

“No verão de 2009/2010, a Prefeitura do Rio impôs um “choque de ordem” que proibia os camelôs nas areias, enquanto dava força para que grandes conglomerados invadissem a praia. Lançamos, então, cartões-postais que substituíam as clássicas paisagens cariocas por camelôs”, descrevem os próprios integrantes do coletivo. “Essa é uma ação que surgiu da vivência da praia, da vitalidade e criatividade do camelô, esse exército de um homem só, vendedor de ‘inutensílios’, agente polinizador da cidade”, completam.

Ironicamente, o trabalho foi concebido para ser apresentado na Galeria Toulouse (ou Galeria TAC), situada dentro de um shopping da capital carioca, mas também alcançou instâncias extra-institucionais, por meio de ações de distribuição dos cartões postais em diversos espaços da cidade do Rio de Janeiro, incluindo, claro, as próprias praias onde trabalhavam os camelôs.

Nessas situações urbanas, ao contrário do que acontecia na galeria, claramente borravam-se as fronteiras entre arte e vida, deixando em aberto a origem e os objetivos daqueles postais. “A arte é um espaço não só de revisão do mundo, como também de objeção e proposição de táticas para criar novos mundos”, sintetizam os integrantes do coletivo.

A segunda ação que brevemente apresento aconteceu em 11 de novembro de 2010, quando dois artistas poloneses, Pawel Althamer e Rafal Zurek, realizaram, em Varsóvia, uma ação performática concebida especialmente para o dia em que se celebra a recente independência da Polônia. Comemorada com uma marcha popular que reúne milhares de pessoas, a marcha inclui grupos neonazistas, muitas vezes ligados a entidades religiosas e conservadoras, e também grupos anti-fascistas. E não é raro que, durante a celebração, haja confrontos entre integrantes dos dois grupos.

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Fotos: Pawel Althamer

Foi a partir desse contexto que os artistas criaram a ação “The Ghost March”, tratando-a como uma resposta direta à passeata neo-nazista. “A idéia de Pawel era muito simples: convocar os fantasmas do passado e enfrentá-los. O uniforme listrado dos prisioneiros de Auschwitz é um traje tabu, uma peça sagrada de vestuário. (…) De qualquer modo, no dia da marcha, quase quarenta pessoas se disponibilizaram a vesti-lo. Quando saímos às ruas, todos vestidos com uniformes dos campos de concentração, chovia e ventava, de modo que alguns participantes usavam cobertores cinzas sobre seus ombros. (…) Alguns turistas tiravam fotos, sem saber qual era o motivo da concentração de pessoas. Os habitantes locais também não se exaltavam tanto, imaginando que se tratava de algum tipo de apresentação teatral”, relata Rafal Zurek.

Alguns metros adiante, contudo, se deu o encontro entre a marcha fantasma e a passeata neonazista. “Armados com apitos, cornetas e tambores, uma multidão se unia para bloquear a passeata nazista. Enquanto isso a marcha fantasma seguia em silêncio, apenas segurando mãos e cobertores. (…) Em dado momento os apitos silenciaram, os protestantes abriram espaço e nos vimos no centro da multidão. O primeiro cordão policial simplesmente nos deixou passar. (…) Outros policiais bloquearam nosso caminho. (…) Atrás deles, nos já conseguíamos ver as bandeiras erguidas pelos nacionalistas. Com nossos uniformes, formamos uma longa linha que atravessava a praça. Nada acontecia; o tempo parecia passar muito lentamente”, continua.

Também situada na fronteira entre arte, vida e política está a ação “State of Palestine”, realizada pelo artista palestino Khaled Jarrar. Em linhas gerais, a ação consiste na criação de um selo do Estado palestino e na aplicação desse selo, por meio de um carimbo, nos passaportes daqueles que se interessem pela proposta. Antes de circular por diferentes cidades do mundo, o trabalho foi realizado pelo artista entre turistas que visitavam a Palestina, contexto social que deu origem a ação e que, não por acaso, lhe oferece mais tensão e complexidade.

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Fotos: Khaled Jarrar

“O objetivo do projeto é chamar atenção para o direito do povo palestino de viver em liberdade, afirmar a própria existência e desafiar a ocupação e repressão israelense. No geral, os passaportes são estampados com o selo depois de uma conversa com os estrangeiros que passam pela Palestina sobre os riscos que eles podem enfrentar por conta da adesão ao projeto. Enquanto várias pessoas foram interrogadas no aeroporto de Tel Aviv, uma mulher norte-americana chegou a ter seu passaporte cancelado devido ao selo palestino”, conta o próprio artista.

Assim como na conhecida série “Inserções em Circuitos Ideológicos”, criada por Cildo Meireles em 1970, o que se vê no trabalho de Khaled Jarrar é o acréscimo de um elemento ficcional, dotado de clara carga ideológica, sobre um suporte real que não o previa – um diálogo entre arte e vida. É, afinal, na circulação dos passaportes – tal qual as garrafas e cédulas de Cildo – que a obra acontece, que ela ganha sentido e alcance social. É a partir dessa circulação que a obra tensiona a realidade, provoca incertezas e serve como ponte – ou porta – capaz de sensibilizar o público, colocá-lo no lugar do outro e, quem sabe, levar a um estado ainda inalcançado de coisas.

“Eu me lembro que entre 1968 e 1970 já não trabalhávamos com metáforas (representações) de situações. Estava-se trabalhando com a situação mesmo, real. Por outro lado, o tipo de trabalho que se estava fazendo, tendia a se volatilizar e esta já era outra característica. Era um trabalho que, na verdade, não tinha mais aquele culto do objeto, puramente; as coisas existiam em função do que poderiam provocar no corpo social”, disse Cildo Meireles, em 1981.

 

Artur Zmijewski e as artes sociais aplicadas

Convidado, por sua vez, a assumir a curadoria da 7ª Bienal de Berlim, realizada em 2012, o artista polonês Artur Zmijewski adotou como conceito central de sua seleção a ideia de “artes sociais aplicadas”. A curadoria, naquele caso, foi realizada a partir de uma chamada de trabalhos (“open call”) aberta a artistas de todo o mundo. Além do portfólio e de uma proposta de trabalho, cada candidato deveria entregar à organização do evento informações sobre suas convicções políticas. Foram recebidas 6.000 inscrições, posteriormente organizadas em um diagrama também exposto ao público na ocasião da exposição.

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Fotos: Berlin Bienalle

No texto que abre a publicação oficial do evento, Zmijewski, expõe da seguinte maneira as bases de sua curadoria: “O que nos interessava eram atividades concretas conduzindo a efeitos visíveis.  (…) Não nos interessava preservar nossa imunidade artística nem nos distanciarmos da sociedade. Nós entendemos a política como uma das mais complexas e difíceis atividades humanas. Chegamos, então, a artistas, ativistas e agentes políticos envolvidos, por meio da arte, em ações políticas concretas”.

“Quando a arte é despolitizada”, completa, “ela não representa os interesses do público, mas serve somente às carreiras individuais dos artistas”. De igual modo, em sua visão, o que estaria em jogo para grande parte dos curadores seria somente a garantia dos seus próximos projetos, e não algum objetivo social ou político.

Ainda a respeito dessa imbricação entre arte e política, vale ressaltar que a curadoria abriu espaço, inclusive, a práticas e ações não-artísticas, completamente diluídas no tecido e na dinâmica social. Entre os textos incluídos na publicação do evento, figura, por exemplo, uma entrevista com o filósofo e ex-prefeito de Bogotá Antanas Mockus. Em conversa com a curadora assistente da Bienal de Berlim, Joana Warsza, o colombiano fala sobre algumas de suas medidas durante os períodos em que esteve à frente da cidade, nas décadas de 1990 e 2000. Em contraste com medidas educativas comuns, o ex-prefeito costumava enfrentar questões urbanas por meio de ações um tanto heterodoxas – e passíveis de aproximações com a ideia de “artes sociais aplicadas”, sugerida pela curadoria do evento.

Como estratégia para reduzir atropelamentos em determinadas regiões da cidade, por exemplo, Mockus contratou performers que atravessavam as ruas de modo irresponsável, chamando atenção dos pedestres para seus próprios hábitos e para a  importância de se respeitar a sinalização. Também como resposta ao excesso de atropelamentos, o colombiano recomendou que cada morte fosse sinalizada com uma estrela pintada no asfalto, exatamente no local do acidente. Se, num primeiro momento, grandes constelações se formaram em alguns pontos de Bogotá, em pouco tempo o número de atropelamentos acabou, de fato, se reduzindo.

Durante a concepção do evento, como se vê, Zmiewski e sua equipe estabeleceram contato com pessoas relacionadas a diferentes papeis dentro do que se pode entender como o sistema político das artes: além de artistas e outros curadores, procuraram educadores e prefeitos que conjugassem, em suas atividades, arte e política. “Tentamos chegar diretamente à prática, encontrar um modo de colocar as mãos na massa, influenciar a realidade, escapar da armadilha de simplesmente exercitar a liberdade artística”, completa, sugerindo um contraponto à autonomia inaugurada pela arte moderna e aos seus múltiplos reflexos sobre a produção contemporânea.

O resultado deste trabalho foi uma mostra que incluiu um grande número de ações efêmeras distribuídas ao longo do seu período de realização. Além disso, o evento disponibilizou ao público um arquivo com todas as propostas enviadas à convocatória e abriu espaço para que artistas, ativistas e representantes de movimentos sociais realizassem uma espécie de residência artística informal dentro do prédio que servia como principal sede da bienal.

“Estávamos procurando ações artísticas que agissem e funcionassem, com procedimentos eficientes de transformação e influência sobre a realidade. É essa, no fim das contas, a essência da política – (…) a tentativa de manter ou transformar a ordem dominante. A aversão à política transformou a arte em uma espécie de ‘sala de pânico’, de refúgio para políticas e idéias. Aqui os artistas podem se sentir seguros, uma vez que nenhuma verdade da vida, nenhuma atividade que tenha reais conseqüências, vai se misturar”, sintetiza.

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Fotos: Berlin Bienalle

 

Referências bibliográficas

BRITO, Ronaldo. Cildo Meireles. . Cildo Meireles. Rio de Janeiro: Funarte, 1981.

HUCHET, Stephane. A elasticidade da arte para com a política: breves bases críticas in GERALDO, Sheila Cabo. Trânsito entre Arte e Política. Rio de Janeiro: Quartet Editora, 2012.

VINHOSA, Luciano. Autonomia e Política in GERALDO, Sheila Cabo. Trânsito entre Arte e Política. Rio de Janeiro: Quartet Editora, 2012.

ZMIJEWSKI, Artur; WARSZA, Joanna (org). Forget Fear. Berlim: Berlin Bienalle, 2012.

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02/05/2016 TAGS: 7ª Bienal de Berlim, arte contemporânea, arte política, artes visuais, Artur Zmijewski, Curadoria, Khaled Jarrar, Opavivará, Pawel Althamer, política, teatro político BY: Daniel Toledo
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O jogo democrático e suas contradições

O jogo democrático e suas contradições

— por Daniel Toledo —

Crítica a partir do espetáculo “Ça Ira”, de Jöel Pommerat, em colaboração com a Compagnie Louis Brouillard (França).

O ano é 1789, mas poderia ser 2016. Estamos na França do rei Luis XVI, mas poderia ser em outro contexto, e assistimos a partir de múltiplos ângulos a conflitos de interesses que revelam divergentes visões de mundo, assim como deixam ver as sucessivas contradições que permeiam nosso comportamento político e, de igual modo, o comportamento político daqueles que, idealmente, deveriam nos representar. Em Ça ira, obra realizada pelo autor e diretor francês Jöel Pommerat em colaboração com a Compagnie Louis Brouillard, visitamos ao longo de três atos diferentes instâncias de um emergente sistema democrático no qual o povo, mesmo que ainda submetido à Igreja e eventualmente encantado com a mítica figura do rei, começa a reivindicar direitos e a questionar privilégios.

Iniciada com um pronunciamento formal do primeiro ministro francês sobre a eterna necessidade de se aumentar a receita do Estado, a encenação rapidamente ganha contornos mais complexos, convertendo, por vezes, o teatro – aqui compreendido como ambiente que inclui palco e plateia – em uma grande assembleia onde novas – e velhas – vozes surgem a cada instante. Desse modo, enquanto algumas cenas são vistas “pelo buraco da fechadura”, outras inserem os atores em situações de grande proximidade com o espectador, convertendo-nos em silenciosos integrantes dessa mesma assembleia. Nesse trânsito entre faces públicas, semipúblicas e privadas do sistema democrático, constitui-se, pouco a pouco, uma cena polifônica, difusa e por vezes caótica, marcada por vozes e visões dissonantes que claramente ecoam sobre o momento político e social que, como brasileiros, atualmente experimentamos. “Quais são as prioridades desse país?”, ouve-se, em certo ponto do espetáculo, sem que alguma resposta se ofereça.

2015 juin Theatre des Amandiers "Ça Ira /1 Fin de Louis" un spectacle écrit et mis en scène par Joël Pommerat

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2015 juin Theatre des Amandiers "Ça Ira /1 Fin de Louis" un spectacle écrit et mis en scène par Joël Pommera Décor et lumière: Eric Soyer Costumes Isabelle Deffin

2015 juin Theatre des Amandiers
"Ça Ira /1 Fin de Louis" un spectacle écrit et mis en scène par Joël Pommera
Décor et lumière: Eric Soyer
Costumes Isabelle Deffin

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2015 juin Theatre des Amandiers
"Ça Ira /1 Fin de Louis" un spectacle écrit et mis en scène par Joël Pommera
Décor et lumière: Eric Soyer
Costumes Isabelle Deffin

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Fotos: Elisabeth Carecchio

Também a visualidade do espetáculo, não por acaso, nos parece bastante familiar. Apropriando-se de estruturas espaciais relacionadas a situações sociais concretas e, ainda que através de mediações, bastante conhecidas pelo espectador, tais como uma reunião oficial, um pronunciamento público e a própria assembleia de deputados, o que se tem em boa parte de Ça ira são ternos que circulam aqui e acolá, quase sempre movidos por homens brancos e discursos que não tardam a revelar suas contradições. Ainda que numerosos personagens e, portanto, o próprio espetáculo transitem por diferentes ambientes e contextos, uma atmosfera de inércia, repetição e esvaziamento por vezes toma conta da cena, dando a ver um claro engessamento das estruturas democráticas, frequentemente sabotadas por aqueles que apenas desejam manter-se no poder, seja na França do século XVIII ou no Brasil atual.

Conduzido por três grupos distintos, ali associados à Igreja, à nobreza e ao povo, os debates a que assistimos em cena colocam em disputa uma visão materialista da realidade, permeada por problemas concretos como a fome, a guerra civil e a fundadora desigualdade, e uma visão católica, segundo a qual tal desigualdade seria um pressuposto a ser respeitado e aceito como fato natural. Apoiado em conceitos subjetivos como o bem, o belo e o sagrado, este segundo grupo, ali representado pela Igreja e a nobreza, recorrentemente desqualifica as questões colocadas pelo primeiro, constituindo declarada recusa ao mundo real e suas questões. Nesse sentido, enquanto uns entendem a justiça como mera execução da lei, outros questionam a lei e associam a mesma justiça a verdades concretas, reconhecíveis por todos.

Imersos neste infindável debate, gradativamente nos reconhecemos, de dentro da plateia, como integrantes de um mesmo grupo social. Desprovidos de privilégios como a voz e também a ocupação dos espaços de voz, participamos passivamente do jogo democrático. Ainda que vez ou outra nos identifiquemos com visões e conflitos postos em cena, somos conduzidos a uma situação em que a atitude silenciosa que nos é reservada se torna cada vez mais angustiante. Silenciosos, assistimos a debates que muito nos interessam, mas dos quais somos frequentemente excluídos, tocando em temas como o monopólio da violência pelo Estado, a dimensão utópica dos direitos humanos e o absurdo dever de respeitar um sistema social que, a partir de estratégias mais ou menos evidentes, nos conduz ao apaziguamento e nos submete aos mandos e desmandos de Deus, do Estado e até mesmo da propriedade privada.

Cúmplices silenciosos de uma atitude cínica e de discursos esvaziados que carregam em si claras contradições em relação às práticas daqueles que os proferem, testemunhamos a exaustão de um sistema cujas instituições inegavelmente vêm se deteriorando ao longo do tempo. Como se voltássemos às origens desse sistema exausto que hoje nos governa, somos convocados a refletir sobre a persistência histórica de estruturas políticas que muito pouco se transformam, convertendo, por exemplo, a antiga nobreza em uma classe de governantes que, para além dos privilégios de outrora, têm, hoje, suposta chancela do povo em relação às decisões que tomam em salas, gabinetes e assembleias. ”Vocês, que nunca subiram aqui, um dia vão se arrepender”, escutamos, mais adiante, em novo apelo para que o silêncio manifestado na sala de teatro não se reproduza nos espaços políticos e sociais que ocupamos do lado de fora.

(Texto escrito no âmbito da III Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp). A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Críticos para a cobertura do festival, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.)

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07/03/2016 TAGS: Compagnie Louis Brouillard, França, Joël Pommerat, MITsp, teatro político BY: Daniel Toledo
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A arte de reivindicar a própria voz

A arte de reivindicar a própria voz

— por Daniel Toledo —

Crítica a partir do espetáculo “Memórias de Bitita – O Coração que não Silenciou”, do grupo Circo Teatro Olho da Rua (Belo Horizonte/MG).

Nascida em 1914, menos de três décadas após a abolição da escravidão no Brasil, a mineira Carolina Maria de Jesus é frequentemente apontada como uma das primeiras e – também por isso – mais importantes escritoras negras do país. Cronista da vida nas emergentes favelas brasileiras, assim como da desigualdade que desde sempre marcou nossa estrutura social, Carolina viu sua primeira obra, “Quarto de Despejo”, alcançar grande reconhecimento no início da década de 1960. Pouco tempo depois, ao que parece, tal sucesso seria interrompido por certa incompatibilidade entre o teor de seus escritos e de sua personalidade e a forte onda conservadora que surgia no país, àquela altura, reduzindo em muito o “interesse geral da nação” por manifestações culturais ditas “populares”.

Embalado pelo centenário de nascimento da autora, assim como pelo nítido empoderamento da população negra no Brasil e em outras partes do mundo, o espetáculo “Memórias de Bitita – O Coração que não Silenciou” convida o público a um mergulho na obra da artista, levando à cena um generoso apanhado de reflexões, narrativas e canções que integram a obra da artista. Para tanto, a montagem reúne três atrizes de diferentes perfis e idades – Carlandréia Ribeiro (também produtora e dramaturga), Eda Costa e Juliene Lelis –  para interpretar a mesma personagem, alternando-se entre registros narrativos e dramáticos de atuação, entremeados a números musicais acompanhados por uma pequena banda sempre presente no palco e breves participações do diretor da montagem, Jacó do Nascimento.

 

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Foto de Victor Maestro.

Logo na primeira cena do espetáculo, umas das questões centrais ali tratadas já se coloca: a opressão e a precariedade das condições de vida como um possível obstáculo à poesia e a beleza, representada por uma crise de tosse que interrompe a canção que abre a montagem. Para Carolina, no entanto, esse obstáculo acaba servindo como impulso, e é justamente a precariedade da vida do pobre, do negro e, sobretudo, da mulher negra que serve como alimento à criação de uma obra literária e musical bastante singular e contundente. O que temos, ali, afinal, é a afirmação de uma voz que, por muito tempo, não teve lugar na arte, na política ou na sociedade: a voz da mulher negra e pobre.

Somos convidados, então, a enxergar nas Carolinas que vemos em cena também outras Carolinas, outras pessoas sem voz que habitam ruas, barracos e casas de cidades contemporâneas, pessoas igualmente silenciadas pela dureza e a precariedade da vida. Temos acesso a um mundo cindido entre pobres e ricos, entre aqueles que são tratados como inimigos por instituições como a polícia e o Estado e outros, cujos privilégios tais instituições são orientadas a proteger. Testemunhamos, a partir dos olhos da personagem, a uma realidade social cuja rotina é permeada por violências de múltiplas naturezas, estendendo-se a ambientes domésticos, escolas infantis e também às relações de vizinhança. “Vou colocar tudo no meu livro”, avisam as Carolinas, em tom de ameaça, a quem quiser ouvir.

Também a noção de escravidão é problematizada no espetáculo, sendo encarada a partir das faces que adquiriu após a abolição de 1888. Carolina nos apresenta, então, os “escravos do custo de vida”, a partir de uma lógica em que a existência se converte em luta diária pela própria sobrevivência. Constitui-se, ali, uma história marcada por recorrentes migrações entre campo e cidade, entre centro e periferia, um clima de permanente instabilidade, permanente “movida” em busca de melhores condições de vida.

Percebemos, então, que é através de uma atitude observadora, reflexiva, crítica e poética que a escritora – catadora de papel, mãe solteira e moradora de favela – converte em cruas palavras as experiências vividas pela própria pele e testemunhadas pelos próprios olhos, deixando ver sua consciência crítica em relação à sociedade que habita. “Pobre é que tinha que ler”, exclama a personagem, em certo ponto do espetáculo, defendendo, a partir da própria experiência, a leitura, a informação e a educação como instrumentos de consciência social e fortalecimento político de toda a classe oprimida.

Criada como teatro musical, a montagem combina momentos narrativos e dramáticos que produzem climas densos e relativamente solenes; os números musicais por vezes alcançam outras notas, igualmente potentes, porém nitidamente mais leves que as demais. Em vez de uma progressão narrativa ou cronológica, o que se vê em cena é uma sequência de quadros distintos – e quiçá independentes – em que diferentes elementos da obra e da vida de Carolina são compartilhados com a plateia.

A esse respeito, inclusive, parece que “Memórias de Bitita” mais compartilha a obra da artista do que efetivamente comenta ou traz uma visão crítica sobre sua trajetória. Cabe, então, mais ao público do que aos criadores do espetáculo, identificar paralelos e persistências entre o momento social descrito pela escritora e a sociedade que experimentamos hoje.

Em certo sentido, portanto, é a produção literária e musical de Carolina que ganha destaque na montagem, ainda que a obra e a vida da artista certamente se misturem. Por conta dessa escolha, outros aspectos de sua existência, tais quais a maternidade, as relações amorosas e o próprio contexto político e social que experimentou, atravessam o espetáculo somente de relance, deixando ver que, caso haja interesse dos criadores ou mesmo do espectador, claro, há muito espaço para se aprofundar em elementos que compõem a dramaturgia da peça.

Ainda que os escritos de Carolina e o próprio espetáculo nos conduzam a um quadro social grave, cuja violência e desigualdade se reproduzem até os nossos dias, “Memórias de Bitita” encontra na música e na poesia a possibilidade de um desfecho festivo – e afirmativo – para a história que compartilha com o público. Se, por um lado, esse desfecho corre o risco de atenuar o peso e a densidade dos fatos e críticas ali apresentados, por outro, serve como estímulo a que outras Carolinas, seja como aquela nascida em 1914 ou mesmo de outras cores e outros gêneros, encontrem e afirmem, nos dias de hoje, seu orgulho, sua força e sua voz.

Programação: “Memórias de Bitita – O Coração que não Silenciou” | Quinta a domingo, 20h. Até 21 de fevereiro. | R$ 5 (preço único nos postos SINPARC ou pela internet: sinparc.com.br)

 

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14/02/2016 TAGS: Campanha de Popularização do Teatro e da Dança, Carolina Maria de Jesus, Circo Teatro Olho da Rua, Memórias de Bitita, Teatro negro BY: Daniel Toledo
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Corpo: casa da angústia

Corpo: casa da angústia

crédito kiu meireles

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Eucaio

Eucaio

Eucaio

Eucaio
— por Joyce Athiê —

 

Crítica do espetáculo “EuCaio”, com direção e dramaturgia de Juarez Guimarães Dias (Belo Horizonte/MG).

 

Se, de alguma forma, os bastidores também chegam à cena, não se torna irrelevante dizer do ato de coragem de Matheus Soriedem ao encarar a criação de um solo ainda enquanto estudante do curso profissionalizante de ator. Um risco assumido e enfrentado em “Eucaio”.

Em linhas gerais, a peça se inspira livremente na vida e obra de Caio Fernando Abreu para abordar ditaduras de ontem e de hoje. Tanto essa que já está instalada em cotidianos atos de repressão da Polícia Militar, quanto outra, recentemente convocada por manifestantes a revisitar nos nossos dias e por aqui se instaurar.

Exatamente por isso, traçar vínculos históricos para sacudir memórias perdidas parece ser um motor fundante e coerente do espetáculo. Não foi à toa, aliás, que o trabalho nasceu de testemunhos do ator e do diretor em relação às recentes manifestações do país. Não por acaso, de igual modo, as pesquisas que empreenderam caíram nas letras do escritor gaúcho. Os elos e as linhas paralelas, no entanto, ganham certo aspecto didático, sendo narrados por gritos de um militar que ora posiciona o público nos históricos anos 1960, ora nos deixa no aqui e agora.

Os paralelos entre ontem e hoje, ator e personagem, real e ficção também se estabelecem, logo no princípio do espetáculo, como ferramentas ou estratégias de aproximação. “Quem foi às ruas se manifestar recentemente? O que achou e o que sentiu?”, pergunta, sem solenidades, o ator, a quem o público responde com suas impressões. A proposta se faz contundente em um trabalho que busca na performance o norte de uma criação marcada pela presença de corpos, tanto o do ator quanto os do público. Ao fim da conversa, no entanto, a chave vira-se abruptamente. O ator torna-se personagem, a ficção se instala, e o distanciamento é promovido sem que isso pareça ser uma estratégia ou opção estética. A conversa até então compartilhada quase ao pé do ouvido converte-se em texto decorado até encontrar novo ritmo.

Com exceção dos momentos em que a narrativa ganha tom direto e convida o público a estabelecer conexões entre distintos períodos históricos, todo o resto está afirmado no corpo, e, mesmo quando as palavras são ditas, é a angustia psicológica retratada na voz que nos faz refletir, ou, ainda melhor, nos faz sentir o que é viver em tempos de opressão e censura. 

O corpo torna-se, portanto, o principal elemento cênico, frente a outros poucos que são trazidos à cena e que carregam na “pele”, de modo comum, o sentido e a sensação da opressão. O palco pode até ser amplo, mas o espaço do ator/personagem é um pequeno círculo formado e coberto por carvões, e esse é todo o espaço que tem para passar os próximos minutos – ou dias de uma vida.

Sem mais nada para ver, pegar ou se apegar além da tormenta de seus pensamentos, resta ao personagem apenas o seu próprio corpo, que ganha relevo pela pouca luz de uma lanterna. São, assim, iluminadas algumas partes dos braços, das pernas e do tronco do ator, trazendo à tona a experiência de uma pele que se suja e não se intimida às pontiagudas arestas do carvão. Ali, o corpo passeia, caminha, cai, pula, pisa, com medo e com coragem, em momentos de grande vigor e indignação, ao mesmo tempo em que se percebem mínimos gestos de medo, saudade e cansaço.

Quase completamente em torno de si, em uma das cenas mais belas do espetáculo, Caio está no breu claustrofóbico de um porão onde se esconde. Ali, ele toca o próprio corpo para sentir que ainda existe, que a materialidade ainda resiste e que a pele consegue sentir alguma coisa.

Em “EuCaio”, o corpo também é elemento de transposição de papeis e lugares sociais. Por exemplo: um mesmo homem de braços atados para trás, trazendo portanto o mesmo gesto e a mesma postura, pode gerar sentidos bastante distintos. Um é o oprimido, e o outro, o opressor – o único que consegue fugir aos limites do círculo. O que determina essas posições? O que determina essas relações?

De Caio Fernando, além de reflexões sobre o fazer artístico e as formas de se manifestar por meio desse fazer, vem a inquietação psicológica, o tormento de uma mente que tem medo até dos próprios pensamentos, assim como de imaginar o que estaria acontecendo fora do porão em que se esconde.

O que parece, no entanto, ser local de proteção e segurança é o retrato de tantos outros círculos, hierarquias e regras determinadas que reprimem, engessam e tolhem individualidades, liberdades e diferenças. São os porões do preconceitos e da intolerância, dos jogos de poder que circulam fora do bem comum.

Dentro desse espaço de isolamento que fecha e aprisiona, que apequena e atormenta, resta o mergulho vertical em um drama psicológico sem espaços abertos para o respiro. Não se respira, afinal, com a faca da censura na garganta.

De Caio Fernando vem também, em uma espécie de segundo plano, a questão da homossexualidade (assumida pelo escritor). E a partir desse tema, a reflexão se estende a outras dimensões: não guardariam o preconceito e a intolerância semelhanças àquela tortura que persegue, inibe, impede e mata? Não teríamos, já, alguns elementos da ditadura atuando na sociedade do século XXI?

Se “viver é constantemente construir e não derrubar”, como diz a frase de Caio Fernando citada ao fim do espetáculo, retumba aos ouvidos que há muito caminho para se retirar da sociedade os vestígios da dita ditadura, e essa é a construção a se dedicar, penso eu.

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05/02/2016 TAGS: Caio Fernando Abreu, Campanha de Popularização do Teatro e da Dança, Juarez Guimarães Dias, monólogo, solo BY: Daniel Toledo
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Empreendedorismo Made in Cuba

Empreendedorismo Made in Cuba

— por Daniel Toledo —

Crítica do espetáculo Cubalândia, do grupo Teatro El Cervo Encantado (Cuba)

Conforme o próprio nome já sugere, o espetáculo Cubalândia, realizado pelo grupo cubano Teatro El Cervo Encantado, apresenta aos espectadores um curioso programa de turismo na terra de Fidel , chamando atenção às contradições de um país que, mesmo apontado por muitos como o último reduto anti-capitalista do mundo, progressivamente se converte em uma atraente mercadoria a ser consumida. Temos acesso, então, por meio da Cubalandia Excursiones, a uma nação gradativamente iniciada ao que se costuma chamar de ideologia liberal, testemunhando, a esse respeito, a disseminação de estratégias e práticas relacionadas ao empreendedorismo e à ampliação de supostos mercados consumidores.

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É justamente como potenciais consumidores, aliás, que somos tratados ao longo de todo o espetáculo. Recebidos pela hiperativa e hipermaquiada agente turística Yara La China, conhecemos um amplo programa de turismo que envolve diferentes partes da ilha. Habana, Varadero, Viñales, Trinidad y Santiago de Cuba são alguns dos destinos oferecidos aos espectadores no decorrer de uma encenação bastante despojada, na qual as luzes da platéia estão permanentemente acesas e a cenografia – mínima – é armada diante do público.

Conduzida por uma profissional extremamente liberal que, sem qualquer tipo de pudor, coloca à venda o próprio país, tal qual suas paisagens e sua história peculiar, Cubalândia destaca o caráter predatório que recorrentemente caracteriza o turismo abaixo da linha do Equador. Tal predação, conforme percebemos no decorrer da montagem, estende-se desde o meio ambiente da ilha até a própria tradição cultural cubana, ali condensada em algumas faixas de reggaeton “tipo-exportação” que nossa entusiasmada anfitriã não se cansa de dançar, em breves interlúdios que separam as negociações com o público.

Aos poucos, no entanto, revela-se certa precariedade do programa oferecido ao público, ao mesmo tempo em que se reforça o lema “fazemos qualquer negócio” que parece lhe mover. É aí que Yara dá início a um quadro composto por negociações durante as quais sempre ressalta aos clientes a ideia de recuperar o dinheiro investido na viagem.

Percebemos, então, que, independentemente do destino, na Cubalândia Excursiones o turista é sempre tratado como empreendedor e a viagem, como investimento. E entre as táticas de capitalização recomendadas ao público, vale ressaltar, figuram a extração ilegal de minerais preciosos, corais raros e outros patrimônios do país, instantaneamente submetido, então, a ordem capitalista e exploradora que rege boa parte do mundo.

Considerando especificamente a sessão que gerou essa crítica, vale ressalvar que a intermediação das legendas durante as interações entre atriz e público parece consistir um desafio à apresentação da obra em países de língua não-espanhola, como o Brasil. Por conta dessa intermediação quase sempre necessária, comprometeu-se, em alguns momentos, a acelerada dinâmica imprimida em cena pela atriz, provocando certo desgaste em relação à repetição que caracteriza a estrutura dramatúrgica da peça.

Elemento central de uma obra na qual a convivialidade entre a personagem e o público constitui-se como um dos pilares da encenação, a personagem se mostra, logo de início, como uma carismática e confiante vendedora. Capaz de cativar a plateia ainda na entrada do teatro, ela rapidamente deixa ver o despojamento, a irreverência e a ironia que, entre outras qualidades, permeiam o trabalho. Como numa típica obra de Brecht, é ao público que Yara se dirige durante boa parte da peça, sendo brevemente interrompida, em algumas ocasiões, por chamadas telefônicas vindas de supostos colaboradores.

É durante uma dessas ligações, aliás, que o público toma consciência de que os pacotes turísticos oferecidos podem se mostrar não somente nocivo ao país, mas também aos próprios turistas, e a festiva fachada inicialmente criada pela personagem finalmente se esvai. Anunciada aos espectadores desde o início da obra, as contraditórias ofertas da Cubalandia Excursiones precisam, então, ser reconhecidas pela própria vendedora, gerando um saudável desvio em relação ao tom leve, cúmplice e bem-humorado que permeia o trabalho.

(Texto escrito no âmbito da II Bienal Internacional de Teatro da USP. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Críticos para a cobertura do festival, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.)

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10/12/2015 TAGS: Cuba, II Bienal Internacional de Teatro da USP, Teatro El Cervo Encantado BY: Daniel Toledo
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Desejos sem direção

Desejos sem direção

— por Daniel Toledo —

Crítica do espetáculo “Anatomia do Fauno”, do Teatro da Pomba Gira (São Paulo)

Parece importante despir-se de eventuais preconceitos e julgamentos morais para assistir ao espetáculo Anatomia do Fauno, trabalho realizado pelo coletivo Teatro da Pomba Gira, de São Paulo, que traz como importante elemento inspirador o desregramento que permeia a vida e a obra do “mal-comportado” poeta francês Artur Rimbaud (1854-1891). Dedicada a reunir e converter em cena diferentes fisionomias do homoerotismo, a montagem praticamente dispensa a palavra e encontra na linguagem visual da performance o seu esteio, constituindo-se a partir de uma série de quadros ao mesmo tempo independentes e articulados, sobretudo quando consideramos o universo temático que igualmente os envolve.

Conduzida por mais de uma dezena de atores, a peça se insere em um amplo conjunto de espetáculos recentes que recusam moralismos sobre corpo e sexualidade, articulando-se em certo sentido, como uma resposta artística ao crescimento do conservadorismo no cenário sócio-político brasileiro. Em Anatomia do Fauno, no entanto, o que se experimenta é uma improvável combinação entre atmosferas míticas, sem tempo ou lugar, das quais o fauno mencionado no título rapidamente se apresenta como símbolo central e um dos eixos da peça, e contornos bastante concretos e essencialmente contemporâneos, reforçados, por exemplo, pelo uso de aparelhos e aplicativos eletrônicos em determinados momentos da encenação.

Imersos, logo de início, em uma espécie de “açougue-underground”, assistimos à chegada do fauno – meio homem, meio bicho – a uma cidade povoada por numerosos corpos masculinos. Somos convocados, então, a reconhecer em nós mesmos certa curiosidade sobre o corpo do outro, assim como sobre as possibilidades de encontro e troca entre esses corpos. Testemunhamos, então, a sucessivos embates que de um modo geral remetem a paixões intensas, violentas e fugazes, traduzidas em vigorosas relações de atração e repulsa estabelecidas entre os corpos que se movem diante de nós.

Desprovidos de personagens ou ainda de uma narrativa a ser contada, tais corpos se alinham em um estado performático e pouco humanizado, aparentemente mais propício a tensões do que propriamente a afetos – ainda que as fronteiras entre tais noções muitas vezes se borrem, claro. E mesmo que boa parte dessas acontecimentos culminem em encontros entre dois ou mais performers, o que se tem ali, ao menos num primeiro momento, são corpos autocentrados e guiados sobretudo pelos próprios desejos, mostrando-se pouco interessados na verticalização das relações estabelecidas com os outros corpos que encontram em cena.

Seja, portanto, a partir de metáforas ou situações bastante concretas, tais quais as que remetem aos aplicativos já mencionados, mas também a encontros fortuitos em banheiros públicos, por exemplo, o espetáculo não raro nos apresenta vestígios de um sistema social que impele à competição, à comparação e ao individualismo, deslocando, em certo sentido, a vigorosa ideia de obsolescência programada também ao campo dos desejos.

Se as relações entre os performers são quase sempre fugazes, o mesmo não acontece com boa parte dos quadros que estruturam o espetáculo, os quais frequentemente se estendem até o ponto de se esgotarem. Enquanto algumas vezes esse recurso denota justamente a perda – ou a falta – de sentido das ações trazidas à cena, em outros momentos, o que se verifica é um certo desgaste do recurso, provocando uma sensação de repetição ou permanência em um mesmo estado de coisas.

Desse modo, apesar da liberdade e da libertinagem que desde o início dão o tom do espetáculo, o caminho construído pela sucessão de quadros que integram Anatomia do Fauno talvez não encontre – e nem procure – a atmosfera de plenitude e esplendor um dia almejada por Rimbaud. Pelo contrário: mesmo quando se organizam em um grande grupo, substituindo os iniciais embates por composições coletivas situadas entre a festa, a orgia e o ritual, os múltiplos corpos que habitam a cena parecem ser colocados, ali, como equivalentes. Com isso, mesmo após a impactante entrada de um corpo feminino em cena, parece haver pouco espaço para a emergência de singularidades ou perspectivas que atribuam nuances mais complexas ao coletivo de corpos então formado.

Criação repleta de significados abertos, na qual mais se apresenta um contexto do que se entrega crítica ou reflexões sobre ele, Anatomia do Fauno deixa ao público o papel de experimentar, testemunhar ou julgar o que vê em cena. Enquanto alguns espectadores podem torcer o nariz para o excesso de “imoralidade” trazida ao palco, outros decerto saem ressentidos pelos raros momentos de efetiva presentificação do público, sobretudo quando consideramos a recorrente tensão estabelecida entre palco e plateia.

Sendo assim, àqueles minimamente familiarizados a práticas e imagens homoeróticas, o espetáculo termina por oferecer uma justaposição de acontecimentos visuais bastante potentes, mas pouco propícios a gerar deslocamentos de perspectiva em relação ao universo investigado. Àqueles menos familiarizados ao mesmo universo, o espetáculo pode, de fato, impressionar, mas corre o risco de apenas reiterar, sem acusar, defender ou adensar, características e comportamentos estereotípicos associados ao já bastante mal-compreendido e simplificado “universo gay”.

(Texto escrito no âmbito da II Bienal Internacional de Teatro da USP. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Críticos para a cobertura do festival, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.)

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07/12/2015 TAGS: Gênero, II Bienal Internacional de Teatro da USP, São Paulo, Teatro da Pomba Gira BY: Daniel Toledo
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A dívida como horizonte, herança e história

A dívida como horizonte, herança e história

— por Daniel Toledo —

Crítica do espetáculo “O que fazíamos em 1985?”, das companhias [pH2| Estado de Teatro (Brasil), La Maldita Vanidad (Colômbia) e Lagartijas Tiradas al Sol (México)

Há, decerto, uma lógica perversa que permeia a prática de empréstimos e a contração de dívidas, recurso tão familiar ao Estado quanto ao cidadão brasileiro e, quiçá, latino-americano. Filhos de nações que já nascem endividadas por um passado-presente de intensa exploração, há muito naturalizamos também a subordinação a modos de vida vindos de fora. Contraímos, então, por vias bastante distintas, dívidas que se referem tanto àquilo que éramos e tentamos deixar de ser, quanto aos modelos externos que tomamos como objetivos que jamais alcançaremos. E, enquanto permanece esse imperativo, parece não haver, de fato, muitos caminhos para que tais dívidas sejam superadas.

Pois é justamente a temática da dívida que serve como eixo do espetáculo O que fazíamos em 1985?, trabalho que se organiza em três episódios caracterizados por recursos e linguagens artísticas bastante distintos, ligados a pesquisas dos grupos [pH2| Estado de Teatro (Brasil), La Maldita Vanidad (Colômbia) e Lagartijas Tiradas al Sol (México). Formados, em sua maioria, por artistas nascidos ao longo dos anos 1980, os grupos não por acaso tomam as trajetórias de seus pais, mães e governantes – ou seja, quase sempre de integrantes de uma geração anterior – como universo de análise sobre a perpetuação de dívidas recentes que claramente ainda pairam sobre nós.

Espetáculo "O que Fazíamos em 1985?". Foto de Ana Laura

Espetáculo "O que Fazíamos em 1985?". Foto de Ana Laura

Espetáculo "O que Fazíamos em 1985?". Foto de Ana Laura

Espetáculo "O que Fazíamos em 1985?". Foto de Ana Laura

Espetáculo "O que Fazíamos em 1985?". Foto de Ana Laura

Espetáculo "O que Fazíamos em 1985?". Foto de Ana Laura

Somos apresentados, ao longo do espetáculo, a pais, mães e governantes, constantemente desafiados por economias em crise, Estados enfraquecidos e a permanente sombra do imperialismo estadunidense – ou, como é comum aos nossos dias, de um imperialismo internacional. Testemunhamos, assim, a momentos históricos e contextos sociais cujos complexos sentidos, se é que existem, até hoje nos demandam grandes esforços de reconstrução.

Atravessados por histórias que remetem a desastres políticos, econômicos e também naturais, os três episódios nos põem diante de desafios e soluções encontradas por esses países e seus povos no decorrer de caminhos marcados pelo desejo de galgar alguns degraus no que se costumava chamar de “ordem mundial”. Desafiados por processos tardios de industrialização e urbanização, assim como pela abertura econômica a produtos, mercados e eventos “internacionais”, os contextos apresentados pelos quadros de O que fazíamos em 1985? parecem trazer como traço comum, seja nos níveis pessoal ou nacional, constantes processos de readequação a relações de subordinação e colonização que se estendem às esferas econômica, cultural e comportamental.

Intitulado “O Retrato da Mulher Endividada”, o primeiro episódio é composto por um filme no qual imagens ficcionais ganham tratamento documental, reunindo mulheres que foram mães nos anos 1980 e que constroem, juntas, a história da personagem Helena Fracasso, uma espécie de síntese da experiência da dita classe média brasileira ante o contexto que sucedeu a redemocratização do país. Chama bastante atenção, nesse caso, a escolha de um ponto de vista feminino para tratar do tema, a partir de cômicas provocações sobre a tardia inserção da mulher no precário mercado de trabalho brasileiro, concomitantemente à aceleração do consumismo no país – tudo isso sob a onipresença da televisão e da publicidade entre os meios de (des)informação da população.

No segundo episódio, “O Retrato do Homem Endividado”, passamos da linguagem audiovisual a moldes bastante tradicionais do teatro, a partir de uma narrativa conduzida por três irmãos que se encontram após a morte do pai, o qual deixa-lhes como herança uma casa em ruínas e uma dívida difícil de se pagar. Aos poucos, no entanto, o contexto familiar é perturbado pela presença de uma vizinha rica, “americanizada” e bastante ambígua, responsável por cobrar dos irmãos certa dívida que não contraíram, mas, sim, lhes pertence. Também contribuem para a desestabilização da encenação recorrentes e impactantes aparições de um bombeiro que alerta tanto os atores quanto o público sobre uma iminente catástrofe de amplo significado.

Ainda que atravessadas por aviões, táxis e até mesmo uma curiosa e resistente tartaruga de estimação, a direção e a dramaturgia deste episódio parece apostar na imobilidade dos personagens – e da própria situação –  como questão a ser problematizada. Pressionados pelas catástrofes anunciadas por seus visitantes, assim como pela entrada de “duplos” que lhes servem como canais mais brutos de expressão, os três irmãos gradativamente deixam escapar traumas e revelam, entre outras coisas, certo complexo de inferioridade em relação a vizinhos de dentro e fora do país.

Deixando de lado a linguagem ficcional e as múltiplas metáforas presentes no quadro anterior, a sequência que encerra o espetáculo, intitulada “O Retrato do País Endividado”, recorre a uma linguagem bastante direta para estabelecer um interessante paralelo entre experiências de endividamento compartilhadas por Brasil e México durante os anos que precederam grandes eventos como as Olimpíadas e a Copa do Mundo. Frequentemente defendidos pela mídia e pelo Estado como signos de certa ascensão internacional, tais eventos são associados, em cena, a desastres naturais de incontestáveis consequências sociais.

Ao combinar elementos do teatro documentário e da performance, o quadro que encerra O que fazíamos em 1985? ganha força nas imagens e ações construídas diante do espectador. A construção textual, por outro lado, ainda parece carecer de um tratamento mais aprofundado em relação à questão do endividamento no contexto latino-americano. Organizada como uma sucessão de depoimentos, notícias e comentários sobre a história recente de Brasil e México, tal construção apoia-se – sobretudo no caso brasileiro – em informações e reflexões já conhecidas por boa parte do público, assim como parece perder contundência ao simplesmente citar recentes acontecimentos do noticiário nacional, sem indicar ou problematizar, de fato, suas relações com a relevante reflexão que serve como eixo ao ambicioso projeto artístico que constitui este trabalho.

(Texto escrito no âmbito da II Bienal Internacional de Teatro da USP. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Críticos para a cobertura do festival, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.)

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07/12/2015 TAGS: [Ph2] Estado de Teatro, II Bienal Internacional de Teatro da USP, La Maldita Vanidad, Lagartijas Tiradas al Sol BY: Daniel Toledo
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“Muertos que no hacen ruído” ou Em defesa da desordem

“Muertos que no hacen ruído” ou Em defesa da desordem

— por Daniel Toledo —

Crítica do espetáculo Stereo Franz, da companhia [pH2] Estado de Teatro (São Paulo)

Logo de início, já se percebe que há algo de estranho na banda que recebe o público do espetáculo Stereo Franz, realizado pela companhia [pH2] Estado de Teatro, de São Paulo. Sob o comando de um virtuoso vocalista com trajes de açougueiro, a banda assume o palco do improvisado bar onde se organizam os espectadores, criando uma atmosfera de tensa empatia que contamina os primeiros momentos do espetáculo. Enquanto isso, Franz e Maria, personagens aos quais ainda seremos apresentados, cruzam por várias vezes o espaço, dançando e beijando-se como se fossem pessoas comuns, como se fossem apenas mais dois freqüentadores daquele bar. Mas eles não são.

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Espetáculo "Stereo Franz". Foto de Ana Laura.

Espetáculo "Stereo Franz". Foto de Ana Laura.

Inspirada em Woyzeck, obra mais reverenciada do dramaturgo alemão George Buchner, a montagem recria à própria maneira a história de seu personagem-título – aqui Franz – e sua esposa, chamando atenção à loucura e à violência que surgem a partir de quadros sociais marcados por degradação, precariedade e subordinação aos mandos e desmandos do outro. Ainda que tal situação de subordinação fique clara pelos constantes chamados – prontamente atendidos – que ambos recebem de seus “superiores”, rapidamente se vê Franz quanto Marie, sua esposa, apresentam alguns desvios.

Enquanto ele enxerga e fala demais, por vezes tomando para si o sofrimento causado por boa parte das opressões da história e do mundo, Marie não consegue parar de se mexer, como se de fato já não coubesse no estreito lugar social que lhe parece reservado. Em permanente trânsito entre o bar onde estamos e o espaço externo ao teatro, o qual acessamos pela porta de entrada, quase sempre aberta, e também por imagens geradas por câmeras instaladas na área externa e exibidas em televisores instalados dentro do bar, como parte da cenografia da montagem.

A partir desse jogo de entrar e sair, de ocupar o campo e o extracampo, constituem-se dois universos ao mesmo tempo conectados e bastante distintos, marcados, respectivamente, por sucessivos monólogos dirigidos ao público e ações performáticas cuja potência se apóia, sobretudo, em aspectos visuais e composições entre os corpos dos atores e os diferentes espaços que integram a área externa. De um lado, o bar surge como uma arena delirante, na qual somos constantemente atravessados por relatos e reflexões em que ciência, misticismo e invenção se misturam de modo perturbador. De outro, a área externa serve como mecanismo de inserção das personagens em um contexto mais concreto de existência, reforçado pela presença de um lixeiro que, em meio às próprias atividades, vez ou outra faz companhia a Franz e Marie.

Trazendo os olhos e a língua como recorrentes órgãos-metáforas que remetem às capacidades de enxergar a realidade e de se expressar sobre ela, Stereo Franz parece defender a consciência e a voz como importantes ferramentas de transformação, ainda que, no fim das contas, o desenrolar dos acontecimentos parece deixar pouca esperança em relação à possibilidade de mudança.

Gradativamente, Franz, Marie e também o lixeiro rebelam-se, cada um ao próprio modo, em relação a uma realidade cujo horizonte de aspirações lhes parece bastante restrito. Os esvaziados – e por vezes cômicos – discursos conduzidos pelo vocalista-cientista-açougueiro e a tecladista-vidente-astróloga passam, então, a conviver com recorrentes questionamentos e reflexões de Franz acerca de vidas que, tal qual sua própria existência, parecem valer muito pouco.

“Por que Deus não apaga o Sol com um sopro, para que tudo gire na desordem?”, pergunta Franz, à certa altura, convertendo em voz a recém-tomada consciência sobre uma ordem social que pouco o favorece. “Rodem, girem, rodem”, repete insistentemente, na sequência, lançando ao público um apelo sobre a importância de se mudar a ordem das coisas, de se movimentar (como Marie?), de não se acomodar em um sistema social tão injusto quanto cruel, do qual a fuga parece sempre mais possível do que a luta pela transformação.

Por vezes trazendo à cena gritos e gestos transbordantes, a montagem parece trazer o direito à voz como uma de suas reivindicações centrais. Ao explorar de modo quase permanente a tênue fronteira entre a consciência e o delírio, entre a subordinação e a proposição de novas ordens, Stereo Franz nos convoca a pensar a institucionalização de privilégios, a naturalização da desigualdade e, em momento pertinente, a eleição de corpos e vidas que valem menos do que outros – “muertos que no hacen ruído”.

(Texto escrito no âmbito da II Bienal Internacional de Teatro da USP. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Críticos para a cobertura do festival, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.)

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07/12/2015 TAGS: [Ph2] Estado de Teatro, DocumentaCena, II Bienal Internacional de Teatro da USP, São Paulo, Woyzeck BY: Daniel Toledo
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É preciso estar atento e forte

É preciso estar atento e forte

— por Daniel Toledo —

Crítica do espetáculo “O Rumor do Incêndio”, do grupo Lagartijas Tiradas al Sol (México).

A concentração do poder em poucas mãos e as variadas táticas desenvolvidas, ao longo da história, para redistribuí-lo servem como eixo ao espetáculo “O Rumor do Incêndio”, realizado pelo grupo mexicano Lagartijas Tiradas al Sol e apresentado na II Bienal Internacional de Teatro da USP. Tomando alguns movimentos armados do México dos anos 1960 e 1970 como contexto a ser compartilhado e examinado diante do público, a montagem passa pelo Brasil em momento oportuno, quando, já há algum tempo, ruas e – mais recentemente – escolas se tornaram arenas de contestação em relação aos abusos de poder que marcam nossa realidade política. Ao longo dessa revisão por aproximadamente duas décadas de história mexicana, “O Rumor do Incêndio” problematiza questões como a participação da juventude na luta por mudanças e o uso de violência em ações anti-Estado, assim como as correntes noções de democracia e luta de classes.

“A soberania nacional reside essencial e originalmente no povo. Todo poder público emana do povo e se institui para benefício dele. O povo tem, a qualquer momento, o direito inalienável de alterar ou modificar a forma de seu governo”. Declamado logo nos primeiros instantes do espetáculo, o – utópico? – Artigo 39 da Constituição mexicana é apresentado como uma espécie de estopim da montagem, deixando ver, logo de cara, algumas das numerosas contradições que permeiam a tradução de instrumentos legislativos em efetiva prática social.

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Para tanto, o grupo desenvolveu uma dramaturgia ao mesmo tempo fragmentada e claramente guiada por uma personagem central: a antropóloga e guerrilheira Margarita Urias Hermosillo, nascida em 1944. Integrante da geração anterior à dos três atores que conduzem a cena, Margarita viveu intensamente os conturbados anos 1960 e 1970 e nos apresenta, a partir de uma trajetória que combina pesquisa, ativismo e sucessivos afetos, facetas de uma realidade política que, não por acaso, também nos revela muito sobre outros contextos latino-americanos. A essa trajetória, vez ou outra permeada por acontecimentos íntimos que ultrapassam o dito campo político, são combinados importantes capítulos e personagens da história mexicana, criando eficientes contrapontos que humanizam experiências vividas somente a distância, e, quase sempre, a partir de mediações, por atores e espectadores.

Faz bastante sentido, então, que vários desses fatos históricos sejam trazidos ao público a partir de cenas nas quais os atores manipulam numerosos brinquedos e miniaturas, projetando suas imagens em tempo real sobre uma tela instalada no fundo do palco. Se tal estratégia, por um lado, reforça a distância entre as histórias ali contadas e a experiência daqueles que as levam à cena, por outro, também remetem a governantes que tratam seus povos e territórios como se, em um permanente exercício de manipulação, apenas praticassem um violento jogo de tabuleiro cujas injustas regras há muito já se conhece.

Tal escolha também se articula à importância que a juventude ganha em “O Rumor do Incêndio”. Presa pelo Estado mexicano antes de completar 25 anos, Margarita é apenas uma entre os vários jovens que, em diversas partes do mundo, afirmam a possibilidade de mudança ao dedicar parte considerável de suas existências à luta por uma sociedade mais justa e igualitária. Não é de se estranhar, portanto, que as máscaras utilizadas pelos atores em outros momentos do espetáculo remetam a rostos masculinos e envelhecidos, como aqueles que há anos habitam o Congresso brasileiro. Seja no México ou no Brasil, afinal, a falta de representatividade parece apresentar-se como raiz da falsa democracia que experimentamos, constituindo-se como recorrente empecilho à construção de sistemas políticos nos quais o povo, de fato, tenha o poder nas próprias mãos. “Quem são esses homens que nos governam? Por que deixamos que nos governem?”, pergunta a atriz e diretora Luisa Pardo, em um dos momentos mais contundentes do trabalho.

Enquanto brinquedos, miniaturas e risíveis máscaras de plástico emprestam certo aspecto lúdico à encenação, numerosos documentos e depoimentos que ocupam, em outros instantes, a mesma tela de projeção afirmam o peso da tradição documental dentro da montagem e do próprio trabalho realizado pelo grupo, que somente neste ano trouxe também ao Brasil os espetáculos “Monserrat” e “Derretiré con un Cerillo la Nieve de un Volcán” – ambos relacionados ao que se chama de teatro documentário.

Referindo-se a contextos de franca desigualdade política, geralmente marcados pelo monopólio do uso da força pelo Estado, o espetáculo problematiza ainda o papel da violência durante ações revolucionárias. Mesmo que ofereça mais questionamentos do que respostas a esse respeito, “O Rumor do Incêndio” nos provoca a pensar sobre certo senso comum que aceita e muitas vezes justifica a violência do Estado, ao mesmo tempo em que demoniza qualquer ação “não pacífica” organizada por aqueles que não detêm o poder.

Aparentemente acalmadas ao longo das décadas que marcaram a falaciosa transição entre regimes ditatoriais e democráticos, dada a violência estrutural da qual todos somos vítimas, cúmplices e testemunhas, tais reivindicações têm ganhado, nos últimos anos, um fôlego novo, frequentemente embalado por jovens que já não se acomodam sob estruturas e arranjos sociais cada vez mais arcaicos. Se as histórias de luta dos anos 1960 e 1970 muitas vezes nos conduzem à imagem de uma juventude que falhou por não concluir a revolução almejada e alcançar suas reivindicações, resta-nos saber que histórias serão contadas sobre aqueles que, sobretudo desde 2011, devolveram ao debate público uma luta contínua e multifocal pelo respeito aos direitos humanos e civis reservados a cada um de nós.

 (Texto escrito no âmbito da II Bienal Internacional de Teatro da USP. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Críticos para a cobertura do festival, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.)

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07/12/2015 TAGS: II Bienal Internacional de Teatro da USP, México, teatro político, USP BY: Daniel Toledo
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O Horizonte da Cena é um site de crítica de teatro criado em setembro de 2012 pelas críticas Luciana Romagnolli e Soraya Belusi, em Belo Horizonte. Atualmente, são editores Clóvis Domingos, Guilherme Diniz e Julia Guimarães. Também atuam como críticos Ana Luísa Santos, Diogo Horta, Felipe Cordeiro, Marcos Alexandre, Soraya Martins e Victor Guimarães. Julia Guimarães e Diogo Horta criaram, em 2020, o podcast do site. Saiba mais

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