Por Soraya Belusi – Horizonte da Cena (*)
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Fotos de Manon Valentin |
(*) Este texto integra as ações do Coletivo de Criticos na MITsp 2014 – Mostra Internacional de Teatro
Por Soraya Belusi – Horizonte da Cena (*)
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Fotos de Manon Valentin |
(*) Este texto integra as ações do Coletivo de Criticos na MITsp 2014 – Mostra Internacional de Teatro
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Foto de Ligia Jardim |
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Foto de Lígia Jardim |
Paulo André entrou no Grupo Galpão para a montagem de “A Rua da Amargura”, chamado justamente pelo diretor Gabriel Villela. Duas décadas depois, quando Villela enfim volta a estrear um espetáculo inédito com a trupe mineira, o ator se sente desafiado a “justificar” sua entrada no grupo. E é o que faz como Batalha, roubando a cena com intervenções irreverentes e travestido de mulher durante toda a encenação de “Os Gigantes da Montanha”, texto de Luigi Pirandello. HORIZONTE DA CENA: Chama a atenção em “Os Gigantes da Montanha” seu personagem, que passa o tempo todo travestido. Isso já estava no texto do Pirandello? PAULO ANDRÉ – É do texto. Na estrutura das companhias italianas tem a primeira atriz, o primeiro ator, o segundo ator, o terceiro ator… e o genérico, que podia fazer papel tanto de homem quanto de mulher. Meu personagem é o genérico. Chama-se Batalha. E as possibilidades dos gêneros sempre foi muito querida pelo teatro e pela arte em geral, tem um lugar de divinização das pessoas que circulam entre as áreas. Mas a opção de ser o tempo inteiro travesti é do Gabriel (Villela). O texto não sugere nada. E em outras montagens às quais a gente assistiu, o Batalha aparece como um senhor. HDC: Já te disseram, e não sei se faz algum sentido isso, que você está parecido com o Rodolfo (Vaz), inclusive fisicamente? Que a sua máscara facial remete a ele de alguma maneira? E até mesmo na forma como “rouba a cena” num pequeno instante, numa cena que podia ser banal, o que ele fez muito bem em outros espetáculos? PAULO ANDRÉ: O Rodolfo é um clown. E o Gabriel me pediu isso de certa maneira, não para ficar parecido, mas para evocar esse espírito irreverente. É circo, tudo pra fora, não tem nenhuma psicologia, o texto nos permitia esse lugar. A gente ensaiou o tempo inteiro de nariz, só tirou nos ensaios abertos no Plug Minas. E é legal isso, as pessoas ligarem meu trabalho ao do Rodolfo, primeiro porque eu o adoro, e depois porque o Rodolfo fez um clown inesquecível, o Judas do “A Rua da Amargura”, além do próprio Mercúcio, do “Romeu e Julieta”. HDC: Vocês fizeram um trabalho associado de máscara facial e nariz de palhaço? PAULO ANDRÉ: O caso do nariz é que a máscara facial já pede por ele; ela te puxa para essa expressão. Quando se põe uma máscara, não se pode agir mais normalmente; a máscara te pede uma atitude que sem ela talvez você não tivesse. Usamos o nariz para trazer essa expressão e, ao tirá-lo, a máscara veio através do nariz, e vice-versa. E a gente termina o espetáculo com o nariz.
HDC: Além de o nariz ser uma autorreferência do próprio Gabriel (Villela) aos dois espetáculos anteriores que ele fez com o Galpão, o “Romeu e Julieta” e a “Rua da Amargura”, não é? Sem contar que foi a convite dele que você chegou ao Galpão, não foi mesmo? PAULO ANDRÉ: Um dia desses, eu até brinquei com ele falando: “agora a gente tem obrigação de justificar a minha entrada no Galpão” (risos). Fui chamado para ser assistente do Gabriel na “Rua da Amargura”, mas acabou que ele me deu um papel no espetáculo e não fiz a assistência mais. HDC: Qual era sua trajetória até então? PAULO ANDRÉ: Estava com 31 anos, era ator-freelancer. Bom, fiz o Oficina de Teatro, em 1983, com o Pedro Paulo Cava, que ficava ao lado do Dops. Fui aluno de Carmem Paternostro, Joaquim Costa, Luiz Paixão. Eu fazia parte de uma turma maldita, de terça e quinta à tarde – turma de dona, sabe? (risos) – que era a turma de Marcelo Castilho Avellar, Andrea Garavello. Na verdade, eram duas turmas malditas. Uma de terça e quinta, que eram alunos do Luppi, e a outra de alunos do Fernando Limoeiro, de segunda e quarta. Então, resolveram juntar essas duas turmas. E aí, naquele ano, fundamos o Experimentando o Palco, que começou em 1984. HDC: E qual era a sua ligação com o Gabriel? PAULO ANDRÉ: Então, nenhuma. Ainda sobre minha trajetória, em 1984 produzimos uma peça, tive que trabalhar, fiquei alguns anos sem fazer teatro. Aí depois voltei ao teatro e fui substituir um ator no “Antígona”, do Carlão (Carlos Rocha), na Cia. Sonho e Drama. E então fiz “Frank V” com Pedro Paulo Cava, “Casal Aberto”, com Andrea Garavello, e “Dois Idiotas Sentados Cada qual em seu Barril”, também com a Andrea e direção do Kalluh (Araújo). Foi um sucesso de critica, fizemos temporada em São Paulo e ganhei o APCA com essa peça. O público foi um fracasso em compensação (risos). Depois fiz “Cais do Porto”, direção do Ricardo Batista, e sei que nessa época fui parar na Sonho e Drama de novo. Até que veio o convite para o Galpão. HDC: E como você se relaciona com esses dois possíveis sucessos: o de público e o de crítica? PAULO ANDRÉ: Ah, o de crítica é mais fácil, eu acho. O sucesso de público é mais difícil. Antes de eu entrar para o Galpão, só “Casal Aberto” fez sucesso. Era outra época, na qual se o artista fizesse sucesso de público, vivia de bilheteria.
HDC: O Galpão viveu essa época? Já viveu de bilheteria? PAULO ANDRÉ: O Galpão era um caso à parte porque sempre se dedicou mais aos projetos de rua, principalmente nessa fase inicial do grupo, nas suas primeiras décadas. Era inclusive uma postura política, de ocupação, em um momento de abertura no Brasil. HDC: Quando o Gabriel desistiu de ter você como assistente e resolveu te dar um papel? PAULO ANDRÉ: Era o que eu mais queria na vida! Não queria fazer assistência de Gabriel, mas foi a forma que cheguei até lá. No fundo, queria mais era fazer alguma coisa no espetáculo, e acabei fazendo várias coisas: José de Arimateia, um anjo e outros. HDC: Aliás, por certo ângulo, você é um coringa no grupo, não é? Sempre que falta alguém, você vai lá e assume com competência o lugar. Exemplo: o Chico não vai mais fazer o “Romeu”, lá vai você! Ou a Inês não pode fazer o “Till”, e você assume. PAULO ANDRÉ: Faço parte de uma companhia e tenho que estar aberto para as demandas dela. Se precisar de alguém para fazer, vou lá fazer. HDC: O bom é que isso nunca te estigmatizou num único papel. PAULO ANDRÉ: Isso não estigmatiza ou estigmatiza por si só. Isso é parte do meu DNA de ator. Apesar de ter começado em grupo, fui freelancer durante um bom tempo. Outro dia, o Marcos Coletta, ator e pesquisador que vai fazer o mestrado dele sobre formação no teatro de grupo, me chamou para a banca de apresentação do projeto dele, e achei bem apropriado ele ter me escolhido porque sou tão sem raça, tão vira-lata (risos). Fiz oficina de teatro, e não escola, e fui para a vida, e acabou que minha formação mesmo foi no Galpão, embora tivesse mais de 11 anos de carreira quando me juntei ao grupo. Eu me sinto formado lá, e o Galpão também tem essa cara sem raça, um grupo no qual os atores têm que ser coringas mesmo. E é bom para o ator não ter cara, se eu tivesse, jamais faria o filme do Cao Guimarães e do Marcelo Gomes (“O Homem das Multidões”, ainda em fase de pós-produção). HDC: E essa história de “justificar a entrada no Galpão”? Em que sentido você diz isso? PAULO ANDRÉ: O Gabriel uma vez disse: “esse grupo não tem veado, nunca vi grupo de teatro que não tem veado” (risos). Tinha o Arildo (Barros), mas que é bicha de época e não valia (risos). Mas, falando sério, achei ótimo esse reencontro com o Gabriel. Quando digo justificar minha entrada é porque eu não tenho nenhum talento especial, essa coisa da raça que a gente estava falando, que justificasse minha entrada no Galpão. Eu não era músico, não era circense, não era bailarino, não era palhaço. Agora, uma coisa que eu tenho é disciplina, uma disciplina fodida. Acho mesmo que o talento é moldável, principalmente em teatro. HDC: Quando você diz justificar sua entrada, sente que em “Os Gigantes da Montanha” – no qual você magnetiza o público com suas pontuais, mas precisas entradas no palco – você realiza isso artisticamente? Você percebe que vem, com trabalhos consecutivamente consistentes, aumentando seu patamar no grupo e como artista? PAULO ANDRÉ: Aumentando o patamar como artista é algo que eu sinceramente sinto, sim. Mas não só agora, sinto que venho conquistando isso. Mas isso vem pela própria atitude dos meus colegas de grupo. Eles contam comigo para as coisas acontecerem. Isso é um amadurecimento de artista. Agora, essas atitudes irreverentes são tudo também da direção. O Gabriel pede isso e a peça também. Ela trata de realidade misturada com sonho, e a gente propõe essas loucuras no ensaio e dão certo porque o texto pede isso da gente. Agora, o ator trabalha com dois paradoxos: liberdade e cerca. Quanto mais cerca, mais liberdade tem que ter.
HDC: Você comentou mais cedo, antes da entrevista, que o Gabriel não tem mais paciência para o dia a dia da sala de ensaio. Como foi a dinâmica de “Os Gigantes da Montanha”? PAULO ANDRÉ: Ele é um grande criador, um artista naquela acepção da palavra mais antiga, com um pensamento muito barroco, muitas vezes temperamental, mas genial ao mesmo tempo. Então, ele trabalha criando o tempo inteiro. Agora, o teatro não é feito somente com momentos de genialidade, precisa da rotina, da repetição, e ele não tem paciência mais para ficar batendo texto, repetindo música. HDC: A Francesca Della Monica trabalhou com vocês a espacialização da voz. Ela já havia trabalhado com o Galpão antes? PAULO ANDRÉ: Não, foi a primeira vez. A Francesca fez com o Gabriel “Hécuba”, “Macbeth” e o “Sua Incelença…”. E ela é muito talentosa, é professora de antropologia da voz. HDC: Como essa técnica se aplica na rua? PAULO ANDRÉ: A espacialização é algo que se dá nos seis horizontes, diferentemente da projeção, que é para frente. Não se trata de esforço físico, mas de dramaturgia. A voz é dramaturgia. A ação é feita nos intervalos (da fala) e não na coisa em si. E isso tira um peso. Ela trouxe a cura! Quem é aluno dela é o Dario Fo, ela o curou. E é uma figura apaixonante. HDC: Embora você tenha uma faixa etária similar aos colegas de Galpão, você aparenta uma jovialidade, um lado bem mais pop dentro do grupo. PAULO ANDRÉ: Sou completamente influenciado pela cultura pop. Nasci nos anos 60, é impossível não valorizar isso nas minhas referências, sendo que a erudição veio com o tempo. Minha casa era muito rica nesse sentido. Minha mãe é professora, minha tia era cantora de ópera, meu avô era envolvido com teatro e fundou um colégio. Eu tinha muitas referências eruditas e populares no mesmo lugar. Em 1963, para se ter uma ideia, já tinha televisão lá em casa. Eu escutava ópera, lia gibi, levava enciclopédia para o banheiro (risos). HDC: Esse duo, erudito e popular, é muito associado ao Gabriel e ao Galpão. E, neste espetáculo específico, o texto é mais difícil do que, por exemplo, “Romeu e Julieta”, que também trazia o popular e o erudito, apesar de ser um trabalho para a rua também. Como vocês trabalharam isso? Porque é de novo o Gabriel Villela, na rua, com Galpão, mas com outras instâncias de dificuldade envolvidas. PAULO ANDRÉ: Eu acho que “Os Gigantes da Montanha” é um texto rico porque tem muitas camadas de entendimento. Quem está atrás de um entendimento cartesiano, aristotélico, do início-meio-fim, fica um pouco frustrado talvez. Mas tem tantos outros níveis, que isso pode não ser problema, mesmo na rua. Eu acredito que não será. A fábula do Pirandello é inacabada. Ele, provavelmente, iria acabar de escrever a peça, voltar lá no início, rever tudo e ver se estava certo. Mas não acabou, não reviu e é isso. Isso abre os sentidos. Eu acho que o espectador de rua é naturalmente aberto para isso, e, quando começa a peça, o espectador é catapultado para outra esfera, que não é a de novela. Não tem como ele ficar nesse lugar, porque vai ser tão desinteressante para ele, que só lhe resta ir embora.
HDC: Você ainda não teve a chance de viver muitos protagonistas no Galpão, embora tenha tido experiências adoráveis como o Seu Coisinha, de “Um Trem Chamado Desejo”. Como se dá isso no grupo e como você percebe essa sua capacidade de chamar a atenção mesmo sem tantos papeis de destaque? PAULO ANDRÉ: Eu nunca fui um ator genial. Aos poucos, tive que batalhar muito para chegar ao patamar que estou hoje, a custo de muito esforço. Eu sempre soube o meu lugar e o lugar dos protagonistas que eu fiz para o Galpão. O Seu Coisinha tinha um apelo muito popular, que o Visconde, do “Partido”, não tinha porque trabalhava com forças opostas a essa simpatia do Coisinha. Eu sinto que esses personagens vêm com a força que eles têm que ter. O Galpão não é feito de protagonistas, lá o trabalho é pelo espetáculo. Todas essas engrenagens estão à frente de qualquer vaidade. E isso não é demagogia, eu aprendi isso lá dentro. Nunca vi nenhum deles ter esse tipo de atitude, nem Teuda, com todo carisma, nem Eduardo, carregando o grupo no muque. Eles só me mostram o contrário. O protagonista é consequência, não pode ser a busca, a não ser que você seja outro tipo de ator. E dentro da ideia do grupo, eu tenho funcionado (risos). HDC: Seus personagens de maior projeção no grupo guardam um lado do cômico e do patético. Mesmo dentro do “Tio Vânia”, que exigia uma atuação mais realista e contida, você trazia esse elemento. PAULO ANDRÉ: Eu lido bem com o patético, eu gosto. Agora, fazer o “Tio Vânia” foi um prazer tão grande, principalmente porque unimos dois personagens da história no Teléguine. E a Yara (de Novaes) fez uma cirurgia plástica perfeita, e a gente juntou os dois sem perder as características próprias de cada um. A Yara me deu uma chave muito importante, no primeiro dia de ensaio, que foi me dizer que eu não precisava ser muito caxias. O personagem era deslocado, de outra época. O Marcelo Castilho Avellar fala disso muito bem na crítica dele ao espetáculo: ele apontava que o Teléguine não está no lugar onde está Vânia, nem a mãe, nem a Soninha, o que era ressaltado claramente nas diferenças de interpretação. A Mariana (Muniz) quase no naturalismo, o Toninho (Antonio Edson) na transição, e o Teléguine já está instalado no passado muito remoto, ele é um móvel da fazenda que ficou e não tem como jogar fora. HDC: “Os Gigantes da Montanha” conta a história de uma companhia que não tem mais lugar no mundo cotidiano, com uma linguagem defasada no tempo, sem público, e que vai parar naquele lugar onírico. É curioso pensar isso montado pelo Galpão, que ainda mobiliza o público, contado aos milhares, mas que, ao mesmo tempo, teve uma repercussão menos entusiasmada com seus projetos voltados ao Tchékov, com “Eclipse”, principalmente. Esse paralelo é possível de ser feito? PAULO ANDRÉ: O Galpão é uma companhia que tem muitos compromissos: com o público, com os patrocinadores, mas, principalmente, com os artistas que formam o grupo. E a gente não pode ser feito só de sucesso, com 5000 pessoas. A gente é feito de “Eclipse” também, porque é isso que vai dar estofo para a gente, e não esse sucesso de Praça do Papa apenas. Mas, se a gente abre mão de um lado, começa a ficar capenga, fica folclórico, deixa de ser grupo de teatro. O “Viagem a Tchékov” foi riquíssimo para a gente, um lugar onde a gente ainda não tinha estado. E é para isso que a gente faz arte, para estarmos em lugares onde ainda não estivemos e para trazer outras perspectivas de nos olharmos dentro do grupo também. Não estar voltado para resultados tão grandes traz outro lugar para mim no grupo, por exemplo. por Soraya Belusi e Luciana Romagnolli
Por Soraya Belusi
Ao debruçar-se sobre a obra de Raquel Schaedler, “Ela”, apresentada em 2012 na MOSTRA DE DRAMATURGIA E ENCENAÇÃO DO SESI-Curitiba, a crítica Luciana Romagnolli ressaltou a presença de um “jogo de forças entre o feminino e o masculino e suas distintas pulsões sexuais, colocando em evidência a difícil relação daquela mulher com o desejo, o corpo e o sexo”. Em seu novo projeto artístico, “frenesi”, Raquel parece reafirmar esta opção temática, procurando fazer saltar de sua dramaturgia espectros de desejo que se configuram como tentativa de um possível desenho outro para a condição do feminino em que os arquétipos da mãe, filha, esposa e puta não são mais suficientes.
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Foto de Elenize Dezgeniski |
O masculino se estabelece como presença ao ter sua ausência ressaltada, pela relação sempre apartada espacial e temporalmente. Permeia as enunciações, toma-as para si, empresta suas falas ao outro, como sombra que paira nos monólogos articulados dessas vozes femininas.
Ainda que pretenda problematizar (deslocar, instabilizar) o senso comum, permanece o jogo entre pólos, feminino-masculino, violência-carinho, gozo-dor. O tabu, marcadamente instalado pelo incesto e pelo estupro, passa de interdito a desejável, numa inversão dos valores morais estabelecidos, mas ainda os tomando como referencial para traçar o caminho inverso, como se reforçando-os pelo seu oposto.
“frenesi” mantém-se ainda na esfera do (padrão) cultural e do cogniscível, ainda que exploda o enunciado em várias vozes-corpos. Tão assimilado (cultural e socialmente) quanto os arquétipos citados anteriormente (a mãe, filha, etc) me parecem ser os que se pretende instaurar. O deslocamento, nesse sentido, não promove trânsito, e sim, na fixação (afirmação) de outro ponto de vista.
A encenação encontra momentos de instauração, em que imagens-síntese parecem se estabelecer, como a cena citada por Marcio Abreu na conversa após o espetáculo, em que a mobilização de uma luz verde incidindo sobre o corpo desenhava uma silhueta indefinível, e a cena em que as três atrizes, caminhando para frente em direção à plateia, projetam formas no fundo da cena criando sombras que parecem oprimir o espectador. Nestes momentos, não há apenas uma inversão do estabelecido, mas sim um desenho não-identificável da condição humana (feminina ou não) que parece se desvelar.
Por Soraya Belusi
Um questionamento: “não há espaço para a alegria?”, disse, não exatamente com essas palavras, um homem que assistia à palestra sentado na plateia. Fazia sentido também para mim como espectadora essa questão colocada por ele, afinal, como situações-limites, o êxtase e o prazer (e ao lado deles o riso e o humor), assim como a dor e morte, também poderiam ser experienciados em outros desenhos da condição humana ainda não inventados.
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Foto Elenize Dezgeniski |
A escrita de Ana Johann em “histórias de cachorros e outros animais” carrega esse elemento que ainda não havia sido explorado em outras dramaturgias vistas nesta Mostra de Dramaturgia e Encenação do SESI-Curitiba. A reação (e adesão) da maioria da plateia presente na apresentação parece confirmar essa presença da leveza e da ironia. Porém, a maneira com que se lida com esses elementos parece reforçar o caráter figurativo e muitas vezes dramático da obra teatral, recorrendo-se a referenciais facilmente reconhecíveis pelo espectador, logo reforçando os pontos de vista que já conhecemos, o que acaba por fragilizar o mundo outro que a dramaturgia de Ana Johann pretende instaurar.
A narrativa, fragmentada e às vezes com toques de realismo fantástico, serve de base ao texto, entrecortado por diálogos coloquiais, numa espécie de escrita rapsódica (como definida por Sarrazac em “O Futuro do Drama”) num deslocamento de discursos, “entrelaçado de temas”. O humano, aqui, não é quem impõe seu olhar sobre o mundo e o real, mas sim uma árvore, cuja visão de tempo e espaço se fundamenta (ou poderia se fundamentar) em outros princípios que não os nossos. Um universo em que vida, morte, violência não carregam sentidos plenos, cujas palavras para descrever poderiam ainda não ter sido encontradas.
Em alguma medida, a dramática de Ana Johann aponta para este lugar. Mas não o alcança com plenitude ao optar (e reforçar) uma espécie de humanização da linguagem, personificando o discurso da árvore. Não há a efetivação do embaralhamento, da transitoriedade, do rompimento da linguagem.
Isso se reforça na maneira como a materialização da narrativa e dos diálogos se apresenta, que não se desprende da noção de representação. Os modos de subjetivação que poderiam despontar se configuram ainda como personagens, que vão sendo representados pelos atores, com a utilização da voz e do corpo em um referencial que bordeja o ilustrativo e, algumas vezes, o infantilizado, levando o que seria uma potência de desfiguração de volta à figuração.
Por Soraya Belusi
Sob um forte breu, apenas um vulto. A imobilidade de seu corpo sem face, revelado lentamente pela luz que lhe confere forma, carrega a força de um tempo mitológico, sem possibilidade de fixação no espaço. A face, quando revelada, assume um caráter mortuário, com sua veste negra e ainda manchada pelo pó. Como uma voz bíblica, anuncia a morte como o início da criação, a gênesis de um futuro: a imagem do fim e do início dos tempos.
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Foto Elenize Dezgeniski |
Articulando-se como um poema cênico, “Coração de 29 polegadas”, com texto e direção de Léo Moita, instala em sua primeira imagem a abertura temporal que parece ambiciar no cruzamento entre o último momento de vida e o primeiro da eternidade. Essa força, porém, vai se esvaecendo nos momentos subsequentes, com a palavra perdendo o seu poder de materialização no espaço, na instauração de presenças, barrando o desafio de elaborar outros desenhos da condição humana que poderiam se realizar.
Através de uma construção que rompe a narrativa, desarticula o diálogo (ainda que se utilize dele) e abandona a localização espaço-temporal, o texto aponta para a alteridade, ainda que não a alcance plenamente em seu projeto artístico. Parece ainda dialogar com “Esperando Godot”, de forma indireta, tomando a espera como tema e problemática, e direta através de citações rearticuladas (“vamos embora?”, “não podemos, nós estamos aqui”…), e da presença do duplo complementar como síntese de toda uma humanidade.
As transições e deslocamentos (rítmicos, temporais, espaciais, de subjetivações), embora se manifestem nas pontadas que não se pode controlar, se fragilizam por não serem potencializados na mobilização dos recursos de luz (com exceção das imagens inicial e final), que agem ainda de maneira imperativa sobre o sentido, gerando atmosferas diferentes, mas ainda não mundos inaugurais. O elemento sonoro (o vento, os sinos, o chiado) aparece aqui como potencialmente simbólico em alguns momentos, carregando a iminência da destruição-nascimento, a potência do devir.
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Fotos Elenize Dezgeniski |
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Fotos Elenize Dezgeniski |