— por Luciana Romagnolli —
Crítica da peça “Ignorância”, do grupo Quatroloscinco Teatro do Comum (Belo Horizonte/MG).
Em “Ignorância”, o Quatroloscinco Teatro do Comum coloca em questão as falhas de uma humanidade que se concebe como racional, civilizada e evoluída. O objeto cadeira surge como síntese simbólica que permite uma série de analogias a respeito dos modos como nos apropriamos do mundo, apontando para um processo de desenvolvimento que tem sua faceta utilitária e democrática, mas também persegue privilégios e distinções que produzem uma hierarquização entre sujeitos, compondo uma elite econômica, intelectual e/ou cultural.
Fotos de Felipe Messias e Guto Muniz.
A cadeira nos proporciona desde o elevar de nossos traseiros do chão, distinguindo-nos dos animais irracionais, à ostentação de adornos em ouro ou design exclusivo a preços proibitivos, distinguindo-nos de outras classes de seres humanos e justificando a segregação por um sentido a-histórico de meritocracia. Além, é claro, da cadeira sem assento: herança duchampiana e magritteana de uma arte conceitual e autorreflexiva acondicionada em museus turísticos ou vazios, a indagar sobre a função da arte na sociedade contemporânea.
Um solo da atriz Rejane Faria inicia o espetáculo trazendo a imagem da cadeira e suas possíveis implicações num discurso modulado pela ironia como recurso crítico. O texto a todo tempo refere-se a um “você” (exemplo: “você fica ali, no escuro”), sujeito indeterminado que pode designar tanto a própria mulher que fala quanto o seu interlocutor – no primeiro caso, transformando o “eu” dela em “outro”. Eis um jogo linguístico que torna mais complexas as relações entre os sujeitos ficcionais e reais envolvidos na apresentação. Quando o grupo decide tratar da ignorância humana, sobre quem fala? Ignorante é sempre outro?
A meu ver, esta indagação trespassa o espetáculo, escrito e dirigido por Marcos Coletta e Assis Benevenuto, e torna-se mais nítida quando observamos as escolhas de registro de atuação feitas a cada cena. À ironia da primeira, segue-se o tom farsesco das representações de mães e pais na reunião escolar. Com rigor e dinâmica na execução, Rejane e Ítalo revezam-se nas cadeiras dando corpo a seis personagens envolvidos em uma discussão sobre o comportamento de um aluno de sete anos, na qual subjazem questões relativas a moralismo, religião, sexo, educação, família e alteridade. A cena é construída para que se ria dessas figuras, expostas no que têm de patético. Meu questionamento é se a opção por uma atuação que mais cita essas personagens do que de fato as representa, e com tratamento farsesco, as distancia dos atores e dos espectadores, de modo que as olhemos de cima. Seriam “o outro”, a quem se deve criticar, ou é possível a identificação que provoque a autocrítica?
Os contornos dessa escolha ficam mais delineados quando se contrastam ao registro de atuação na cena que alude à imigração. Nesta, Rejane interpreta com carga dramática e gravidade uma mulher refugiada. A ironia já não cabe, sentimos o drama dela e associamos algumas das frases ao crime ambiental na cidade de Mariana (o real atravessa os sentidos previstos na escrita). A identificação, isto é, a projeção do eu do espectador nos sentimentos da personagem, é possível novamente.
A cena-esfinge, a meu ver, é a que contrapõe dois supostos tipos de ignorância no interior de um museu, esse espaço de culto à arte. A ignorância no sentido mais cru e ingênuo, do homem comum, que não detém as informações sobre algo, é contraposta à ignorância envernizada de quem se arroga muito saber. Rejane e Ítalo agora representam uma artista conceitual e um prestador de serviços que se encontram na primeira ida dele a um museu. Me parece haver uma escolha dramatúrgica que desestabiliza essa contradição ao tornar mais empático e cômico o homem que desconhece quase completamente o mundo da arte, direcionando a crítica à arrogância teórica da mulher artista, tecendo, assim, julgamentos sobre os personagens na cena do museu. Essa oposição perde complexidade com o tratamento desigual, ou seja, com a tomada de posição sobre um dos lados, porque endossa um discurso de descrédito em relação ao saber, ao pensamento, que num contexto de empobrecimento educacional como o do nosso país pode recair em um elogio à ignorância. Ao menos foi a sensação deixada pela interação palco e plateia nas duas apresentações a que assisti.
De que estratégias a dramaturgia poderia dispor para que a crítica, nesta cena, recaísse sobre a arrogância da artista e não sobre o pensamento sobre arte? – se é que para o grupo essa distinção (que me parece essencial) faz sentido, é claro. Ao trabalhar com dois extremos, a cena tende também a subestimar o cidadão sem experiência de espectador como inábil para operações sensíveis e simbólicas. Creio que tanto o hermetismo quanto o subestimar do espectador são duas faces de um mesmo problema na relação da arte com o cidadão. Além disso, não há dúvida de que os ready-made de Duchamp inauguraram um território incerto e instável para a arte; meio século depois, ainda estamos com Ferreira Gullar questionando se seus desdobramentos são ou não arte? É preciso cuidado para, ao criticar formas vazias de discurso conceitual sobre arte, não rechaçar, junto, a própria reflexão sobre arte.
Tantas perguntas nesta crítica são, a meu modo, uma admissão de ignorância. Por vezes, é este o lugar em que a arte nos coloca, o de incerteza, o de desconforto com as conclusões previsíveis, o de indagação. Não se trata de um julgamento da obra em si, mas da problematização a partir de uma das possibilidades de relação que ela oferta a seus espectadores. A ignorância diz do incivilizado, do impensado e do violento em nós, por seu viés negativo. Comenta uma sociedade em que a idade das trevas não se dissocia tão facilmente da idade da luz. Porém, também é um estado socrático de recusa à presunção do saber, uma postura de descoberta perante um mundo que não se domina. Na potência dessa ambiguidade, disputam o gesto de apontar e o gesto de reconhecer. Ao espectador, cabe, mais do que a identificação e a reiteração do/com o que vê, um impulso à reflexão e a um posicionamento próprio.
*Espetáculo visto em duas ocasiões, no dia 29 de outubro de 2015, na Funarte-MG, e no dia 13 de novembro de 2015, no Teatro João Ceschiatti.