Luciana Romagnolli
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A luz branca refratada em suas cores espectrais quando incide sobre o prisma. |
Há alguns dias li na internet uma crítica, até bem escrita, sobre o projeto Janela de Dramaturgia que tachava os textos apresentados no evento de serem “textos para serem lidos em terapia”, “dramaturgia do umbigo”, “criação individualista”, menos textos para teatro. O autor reclamava da falta de diálogos e do excesso de narrações e prosa poética. E, por fim, não admitia que atores pudessem ser dramaturgos, pois, segundo ele, caem sempre na armadilha de escreverem só para si mesmos, e que o “verdadeiro dramaturgo de ofício” escreve para o outro.
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Number 8, de Jackson Pollock. A obra de Pollock é um prolongamento do seu gesto interior. Sua action painting é totalmente liberta de esquemas prévios. |
Neste contexto, é impossível defender em nosso tempo um “dramaturgo de ofício” sem cair em uma concepção empoeirada, tecnocrata, ligada a um purismo reacionário e surdo ao que acontece à nossa volta. A dramaturgia não deve ser privilégio de “especialistas”, assim como o texto teatral não deve obedecer a nada que não seja o desejo criativo do autor. Se irá ou não funcionar em cena, só o acontecimento cênico provará. Como também diz Sarrazac, “teatral é o que QUER e PODE SER teatro”, esse desejo de ser teatro vai muito além da estrutura formal do gênero, se liga à LINGUAGEM, à ORALIDADE, ao RITMO, à PERFORMATIVIDADE da palavra. Toda escrita que inscreve uma subjetividade requer essa abordagem. O texto teatral superou em muito qualquer estrutura ou modelo – superou a si mesmo – e vem provando isso há mais de um século através de experiências mais ou menos bem sucedidas.
FONTES:
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O dramaturgo francês Joël Pommerat (Cici Olsson/Divulgação) |
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Cena da montagem brasileira de Esta Criança (Sandra Delgado/Divulgação) |
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Cena da montagem francesa de Esta Criança (Elisabeth Carecchio/Divulgação) |
Gustavo Bones e Marcelo Castro refletem sobre os próximos passos artísticos do grupo, revelam novos projetos e contam sobre o dilema de garantir a continuidade do coletivo sem a captação de um novo patrocínio
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A produtora Aline Vila Real e os atores Marcelo Castro e Gustavo Bones dão continuidade às ações do grupo (Fotos Espanca/Divulgação) |
HORIZONTE DA CENA: Recentemente, a Grace confirmou a saída dela do grupo, embora ela vá continuar a integrar os espetáculos que vocês mantêm em repertório. Em algum momento, vocês cogitaram colocar um ponto final no Espanca! ou isso nunca foi considerado? O que pesou para que vocês se mantivessem enquanto grupo?
Como vocês disseram, a ‘genialidade’ da Grace é algo que, muitas vezes, nos fazia pensar que as questões artísticas e estéticas do Espanca passavam principalmente por ela, talvez, inclusive, pelo peso que a assinatura da escritura dramatúrgica que ela construiu. Agora, de alguma maneira, devem surgir novos desejos e caminhos, uma certa mudança?
Vocês dois, como já disseram antes, têm desejo de mergulhar em várias propostas estéticas, e, inclusive, já vinham experimentando isso em coletivos como o Paisagens Poéticas. Além disso, durante a trajetória do Espanca até aqui, foram vários os parceiros e colaboradores, sejam atores convidados para certos trabalhos, seja substituindo. A lista inclui o Assis Benevenuto, a Gláucia Vandeveld, a Renata Cabral, a Izabel Stewart, Alexandre de Sena, dentre várias outras artistas da cidade. Vocês pensam em uma nova configuração para o grupo? Essas pessoas estariam incluídas? Ou o Espanca se mantém com vocês dois por enquanto?
(*) Soraya Belusi é jornalista, crítica de teatro e mestranda em Artes pela UFMG.
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Talita Braga e Marcos Coletta; Sara Pinheiro e Jésus Lataliza. Fotos de Ethel Braga. |
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Nena Inoue em “Haikai”. Fotos de Daniel Sorrentino. |
para complexificar, e não finalizar, um tanto mais este exercício dialógico com a peça Haikai, ao qual me lanço a convite das críticas Luciana Romagnolli e Soraya Belusi, para o blog Horizonte da Cena, faço-me, no inesgotável, mais uma pergunta, embora a questão já tenha se dado acima. na especificidade desta obra, o que é isso o escuro em cena? em recente entrevista as duas críticas, Alvim fala da sensibilização do homem contemporâneo com a obliteração da visão. não o mergulho na cegueira, mas num modo de obliterar a visão com a criação de outra instância de visão, que tenha a ver com o crepúsculo, o lusco fusco, a luta entre o que se vê e o que não se vê, o nebuloso, onde os atravessamentos do imaginário. pode que seja da impotência do figurativo, fracassado como tal, que ele fale, daí a luz tão pouca e de sutilíssimo bruxulear, perseguindo a tentativa do apagamento do sujeito. pareceu-me, no entanto, que desta vez Alvim deu um passo a mais. neste desapareçapareça, ele foi resvalar o apagamento da matéria, ele foi próximo da descorporificação dos atores. se a face é máscara do vivido, do vivente e do ainda a se viver, não haver face é não haver vida, ou ao menos não haver vida tal qual a pensamos reconhecer. em Haikai, nem mais demônios e assunção no eterno jogo de uma imagem apaga a outra, que apaga outra, que apaga outra diante da percepção de nossos olhos e ouvidos e, mais, de nossa pele e alma profundamente inconscientes, com o que veremos e escutaremos para além dos sentidos.
por Fernando de Proença
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“Viúva, Porém Honesta”. Fotos de Sergio Silvestre. |
A subserviência não veio trabalhar na montagem do Grupo Magiluth de “Viúva, Porém Honesta”, a tal farsa irresponsável de Nelson . Tudo é tocado por um senso de liberdade e autonomia pelos criadores do trabalho, tudo é de um frescor e de uma juventude que não tem a ver com ser jovem no cronômetro.
A peça é um estado de espírito. É um teatro do jeito que eles gostam de fazer teatro. E me parece que eles gostam muito de fazer teatro.
Tudo acontece às claras, tudo releva a nudez: do torço dos homens, do jogo, da cena. Nudezes.
Em um jogo vivo (até parece futebol) e cheio de testosterona e tesão, a peça vai se construindo com possibilidades (muitas!) de apreciação. O público pode ter diferentes olhares e construir, em tempo real, todo tipo de aproximação com os atores e com a encenação – uma construção que se confunde com as vidas, todas ali naquele TEUNI em Curitiba, tudo coexistindo e colocando massa corpórea no espaço, movendo o ar.
Aerados.
Os personagens do Nelson e do Magiluth estão todos alí (Ivonete, Madame CriCri, as tias, …), circulando entre os atores em um ritmo tão frenético e bagunçado quanto articulado e claro. Os atores brincam a sério, como uma criança faz.
Um encontro real acontece no meio do caminho, quando um encontrador e o outro encontrador caminham para se encontrarem. Isso acontece na relação de quem assiste ao trabalho. Todos precisam estar atentos porque tudo se move, porque tudo na vida é movimento.
As perguntas que a encenação faz para si própria revelam um tabuleiro cheios de respostas. E perguntas: Como trabalhar com um texto rocambolesco agora, hoje? Como jogar o jogo realmente, sem ponderações e economias? Como a plateia olhará? Como os atores olharão para a plateia? Como os objetos de cena se integrarão e ganharão lógica dentro da lógica da encenação?
O contato de quem está no gramado, no palco, no ringue e de quem está na arquibancada ou espremido pra ver um show de rock, ou em casa (com o quarto se bagunçando) passa por infinitas direções, escolhe todas elas e segue. Como a vida.
A encenação soma e mistura.
A proposta aponta um rigor de execução tão direta e solar que dançar a famosa Locomia com leques, evocar um estado de espíríto Greetchen ou comer Ruffles quando um dos personagens fala o clássico Batata! Do Nelson, se faz coerente e rigoroso, está tudo previsto no jogo. Não são coincidências nem são redundâncias.
E terminar esse texto pelo começo da peça , quando os atores/personagens se apresentam em ações com a voz da La Lupe, cantora cubana, cantando Puro Teatro (que antes cantou também essa para Almodòvar em Mulheres a beira de um ataque de Nervos), diz tudo sobre a encenação. A apresentação está feita e as expectativas são as da própria encenação, ela nos aponta as possibilidades. E com o verso: “Tu drama no es necesario, Ya conozco ese teatro”, os criadores informam ao público o que vem pela frente e tudo começa a se ligar. Tudo se completa, tudo é direto e todos jogamos o jogo. Da vida. E lá, abraçados com o Nelson, O drama não se faz necessário.
Roberto Alvim parece ter o paradoxo como companheiro. Carioca de origem, nunca se identificou com a tríade praia-samba-futebol de sua cidade natal e foi encontrar em São Paulo o ambiente favorável para investigar a alteridade radical em seu trabalho. Um dos encenadores mais provocativos da cena atual, afirma que há quase 20 anos não vai ao cinema e evita ir ao teatro, encontrando nas artes plásticas e na literatura diálogos mais inspiradores para ampliar os limites da arte que executa. Defende a singularidade acima de qualquer coisa, mas já vê elementos de sua linguagem sendo replicados de maneira muitas vezes caricatural. Nunca escondeu que quer entrar para a História, embora admita a impossibilidade da realização plena de seu projeto artístico. Durante as quase três horas de entrevista ao Horizonte da Cena durante o Festival de Curitiba, onde estreou “Haikai”, foi do discurso febril à introspecção total, em uma conversa na qual deixa claro seu potencial de rejeição e fascínio.
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“Haikai”. Foto de Daniel Sorrentino. |
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Foto de Ernesto Vasconcelos. |