Crítica do espetáculo Trivial – um espetáculo de b-boys apresentado nos dias 4 e 5 de abril, no Festival de Curitiba.
Por Guilherme Diniz
Existe aos montes no Brasil gente que faz 58
piruetas, ou 32 fouettés, mas faltam aqueles que
dançam, que ouvem a música, que colocam intenções
nos gestos, que têm um tempo e uma emoção internos.
Klauss Viana – A Dança
As palavras que abrem este texto advêm de um dos nossos maiores coreógrafos e bailarinos brasileiros. Um criador que, da prática à teoria, do ensino à encenação, encarou a dança como uma genuína filosofia do movimento, uma forma de produzir pensamentos no e pelo corpo em ação. Para isso, nos diz ele, é necessário respeitar o ritmo do processo, ter paciência, desconfiar dos ideais que nos empurram para conclusões ou resultados rápidos. Ao recordar sua vasta caminhada profissional, Klauss destaca um episódio, em meados da década de 70, que lhe marcou decisivamente: ter assistido a uma aula do russo Rudolf Nureyev e da britânica Margot Fronteyn, à época duas referências incontornáveis do ballet clássico. Na contramão do que era, por muitos, aguardado, os dois artistas europeus não iniciaram os trabalhos ostentando quaisquer virtuosismos, rodopios incessantes, saltos desafiadores ou contorcionismos invejáveis. As ações foram realizadas lenta e cuidadosamente: adentrar o espaço, percorrê-lo, vestir as sapatilhas e, finalmente, executar um plié. Klauss, que na altura já angariava alguns bons anos de trabalho, reafirmou ali certas convicções suas a respeito do quão nocivos podem ser os imediatismos e os nervos apressados no exercício da dança, pois, em geral, comprometem vínculos adensados entre os corpos e o espaço, entre os corpos e suas próprias vibrações, entre os corpos e seus processos de aprendizado, entre os corpos, afinal. “Confirmou-se, para mim, a importância da relação com o tempo, o tempo interior […]”, disse nosso artista. É precisamente isso que Trivial – um espetáculo de b-boys nos solicita: disponibilidade para habitar um tempo não condicionado pela imediatez.
A montagem gaúcha, dirigida por Driko Oliveira, dissolve certas expectativas. Não encontraremos um espetáculo fundamentalmente frenético, repleto de acrobatismos imparáveis, preenchido, de parte a parte, por beats alucinantes. Em geral é o que se espera de uma demonstração de breaking. Trivial, entretanto, percorre outras veredas. Trechos desprovidos de acompanhamento musical, andamentos mais vagarosos, porções de silêncio e ambiências matizadas pela calmaria atravessam a coreografia, revelando outras nuances poéticas do breaking, tomando-o como elemento artisticamente elástico, mutável, livre para ser recomposto de várias maneiras. Esta orientação, no conjunto, não despreza os aspectos mais robustos e pesados, mas acentua a sensibilidade, os contornos de cada passo, como se desejasse prolongar sua imagem. A sabedoria de Klauss Viana vem-nos à mente uma vez mais. Não se trata de exibir uma infatigável perícia técnica, mas de conferir peso aos gestos e densidade às intenções. Enfim, dar aos corpos tempo para que suas presenças irradiem física e energeticamente no espaço cênico.
Em um dado momento, o b-boy Daniel Cavalheiro, jovem retinto, assim como eu, nos diz que neste país, ancorado no genocídio da população negra, não tem plena certeza se voltará para casa ao sair, ele não sabe quanto tempo ainda lhe resta. De acordo com o Atlas da Violência (2024), uma pessoa negra é assassinada a cada 12 minutos no Brasil. Então o tempo é, de fato, uma arena de disputa, uma preciosidade da qual não iremos abrir mão. Pouco a pouco, percebemos que as temporalidades dilatadas do espetáculo adquirem outras significações artísticas e políticas ao nos propor um olhar mais detido para as vidas negras e as vidas periféricas que ocupam o palco a fim de reconhecermos também as miudezas e particularidades de cada uma daquelas humanidades. Uma visão precipitada, típica dos prejulgamentos sociorraciais, apreende tão somente borrões, uma massa indistinta de pessoas, um monólito sem muitos pormenores. Trivial perturba os apressadinhos.
Na primeira parte, o espetáculo já implanta seu andamento próprio. Uma vibrante luz vermelha colore o espaço. O elenco surge gradualmente, atravessando a plateia até alcançar o palco, um a um sem se afobar. Cinco dançarinos e uma dançarina parecem observar tudo. A morosidade principia a causar-nos espécie, mas o vagar é sustentado. Por um bom período, só ouvimos o toque dos pés sobre o chão. O grupo desenha fotografias: ora um cardume sentadinho, ora um muro de pessoas em pé lado a lado. As formas ganham amplitude e ressonância especiais devido à crueza da cenografia. Não há um elemento sequer. O Teatro da Reitoria estava, por assim dizer, nu, sem coberturas, revelando a sua ossatura: o urdimento, as torres de iluminação nas duas laterais, a porta do camarim ao fundo, o piso de madeira sem linóleo. Tempo, espaço, recortes luminosos e corporeidades em estado de dança sem sofreguidão. Esse começo é especialmente significativo, pois, de um lado serena os ânimos do público, e do outro adensa a sua atmosfera cênica. A operação é semelhante à abertura do espetáculo Encantado, também presente no Festival de Curitiba deste ano. O início da renomada coreografia de Lia Rodrigues é lenta e silenciosamente construído a partir da relação entre os bailarinos e os tecidos: primeiro desenrolá-los, depois envolver-se neles. Toda a ação se desenvolve tranquilamente.
Os saltos-mortais e os rodopios velozes paulatinamente aparecem. Vamos avistando, na sequência, os passos mais tradicionais, como os Footwoks, os Powermoves Windmills, os Top Rocks; nomes, quiçá complicados, mas que descrevem, em suma, as acrobacias, as dinâmicas ágeis tanto no chão, quanto no ar, os giros de ponta-cabeça e toda aquela envolvente desenvoltura, misto de força e desembaraço, pujança e destreza, que seduz nosso olhar. As batalhas entre dançarinos também repontam, perfazendo desafios que visam desestabilizar o adversário por meio da astúcia e da ligeireza. Entretanto, não é a máxima velocidade nem a mera demonstração de habilidade que ditam o ritmo global do espetáculo. Em geral, a sensação é a de estarmos presenciando, estudos do movimento, como se o espetáculo decupasse a gestualidade do breaking para enfatizar suas partes, acentuando seus desenhos. Afloram aqui e ali músicas que nem sempre se aproximam das batidas mais características do estilo. Tal escolha contribui, do mesmo modo, para desnaturalizar nossas recepções. O que surge do entrechoque cultural entre o breaking e um soft rock? Quais outras [inesgotáveis] possibilidades coreográficas podem ser imaginadas para esta dança?
CRÉDITOS FOTOS TRIVIAL: Anelize Tozetto
O breaking modela o corpo como um laboratório de experimentações e de liberdades, pois já não se trata de uma dança rigidamente codificada (embora contenha passos, convenções e princípios), mas aberta ao humor das cidades, às contingências do tempo histórico e, acima de tudo, às vivências de quem dança. As individualidades físicas, emocionais e vivenciais desta ou daquela pessoa matizam sobremaneira as possibilidades de reconfigurar o breaking. Em Trivial é perceptível tais diferenças: se neste deparamo-nos com mais força e peso, naquele somos enovelados por sinuosidades aéreas e leves. As qualidades de movimento se transformam num átimo, dando a ver não apenas a agilidade do elenco, mas a rica inconstância de uma dança incapaz de ser delimitada por regras ou padrões unívocos.
Com Trivial, o Grupo N Amostra, oriundo da periferia de Porto Alegre, exala um inspirado fôlego para a pesquisa de linguagem, investigando as potencialidades composicionais e rítmicas de uma dança que já é fundamentalmente porosa, matizada por várias tendências e manifestações artísticas. Ora, desde o seu nascedouro nos anos 70, em localidades marginalizadas, como o icônico bairro do Bronx, o breaking aglutina e reformula vários elementos das danças afro-americanas e russas, do sapateado e da ginástica, das artes marciais (como o kung fu) e, inclusive, da nossa capoeira. O espetáculo, nesse sentido, realça o caráter moldável de uma dança em si aberta a várias transformações em sua forma, daí sua natureza marcadamente afro-diaspórica, que entrecruza distintos sistemas e expressões a partir da imaginação radical negra.
A despeito de sua contundência criativa, Trivial comporta algumas fragilidades: seja quando deixa o ritmo cair, seja quando formula estruturas e partituras previsíveis (que serão realizadas pelas cinco pessoas em cena). Porém, a coreografia, a meu ver, possui dois principais pontos fracos. O primeiro deles são os monólogos proferidos na segunda parte do espetáculo. Do ponto de vista político, os textos estão banhados de indignação e revolta perante a desigualdade socioeconômica e racial cujos instrumentos ferem a dignidade humana. Este ponto reitera a impetuosidade do breaking, cuja gramática corporal sempre foi uma crítica a toda sorte de violências e estigmatização; um modo de conceber, pelos impulsos físicos, uma realidade plenamente igualitária e livre. Porém, do ponto de vista dramatúrgico, os textos são, em sua maioria, primários, muito distantes da complexidade formal das composições coreográficas. São narrativas de dor (algumas de alegria e de superação) tecidas de modo genuíno, mas simplórias, destituídas de força poética. Há honrosas exceções.
Contudo, a principal contradição do espetáculo está inscrita no seu próprio título: Trivial – um espetáculo de b-boys. Se não estivermos enganados existe um b-girl em cena. O espetáculo não é também dela? O breaking é uma criação exclusiva dos garotos? A posição de Najur, a única dançarina, evidencia certos impasses do grupo ao lidar com as questões de gênero. A jovem compõe com firmeza a apresentação, se desdobra, retorce os músculos, serpenteia como todos os demais. Todavia há passagens em que tensões machistas, especialmente nas cenas de confronto, não são combatidas com todo o vigor, dando-nos a imagem de uma sutil naturalização. Em seu monólogo, Najur chega mesmo a refletir sobre os percalços sexistas que as mulheres enfrentam no universo do breaking, mas termina dizendo que ela é: “Uma b-girl num espetáculo de b-boys”. Um estranho contrassenso. A socióloga Daniela Vieira dos Santos (UEL), ao vasculhar a história do hip hop (o breaking, o rap, o grafitti e os DJs/MCs são componentes deste amplo movimento político-cultural) detecta graves apagamentos das presenças femininas, como se as mulheres não fossem também construtoras desse vasto repertório artístico desde os seus primórdios. É verdade que Najur ingressou no projeto após a primeiríssima versão de Trivial, estreada com um elenco integralmente masculino. Mas agora o espetáculo, redesenhado com sua presença, continua a ser apenas dos b-boys?
Nas artes cênicas contemporâneas, Trivial se liga a outras coreografias que revolvem o cotidiano nas quebradas, experimentam reelaborações das musicalidades, dos bailes, dos funks, dos beats, dos passinhos, atando contestação e celebração. É o que se vê, a título de exemplo, nos espetáculos VAPOR, ocupação infiltrável, do grupo piauiense Original Bomber Crew; Fênix – Onde nascem os sonhos, da paulistana Clarin Cia. de Dança; Pai contra mãe, da Cia Fusion de Danças Urbanas, de Minas Gerais. Todas estas montagens, em que pesem suas diferenças, amplificam a sofisticação criativa das danças negras e periféricas no contexto urbano. Criações, ao mesmo tempo, da festa e da guerra, modos desconfiados e inventivos de encarar uma realidade hostil. Trivial é parte disso.
- Guilherme Diniz escreveu críticas de espetáculos que participaram do Festival de Curitiba a convite do Festival. A crítica foi originalmente publicada no site do Festival de Curitiba.
- O grupo de críticos que trabalhou no festival incluiu ainda Annelise Schwarcz, Pollyanna Diniz (Satisfeita Yolanda) e Francisco Mallmann.
Ficha Técnica
Direção e Coreografia: Driko Oliveira;
B-girl: Naju,
Bboys: Daniel Cavalheiro, T2, Deaf, B-Boy Julinho RC e B-Boy César RC;
Iluminação: Guto Greca;
Trilha Sonora: Sustain Produções;
Assessoria de Imprensa: Roberta Amaral;
Produção: Luka Ibarra/Lucida Desenvolvimento Cultural;
Fotografias: Nando Espinosa;
Vídeo: Fernando Muniz Moov.Art.