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Foto de Ligia Jardim |
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Foto de Lígia Jardim |
Por Soraya Belusi
Ao debruçar-se sobre a obra de Raquel Schaedler, “Ela”, apresentada em 2012 na MOSTRA DE DRAMATURGIA E ENCENAÇÃO DO SESI-Curitiba, a crítica Luciana Romagnolli ressaltou a presença de um “jogo de forças entre o feminino e o masculino e suas distintas pulsões sexuais, colocando em evidência a difícil relação daquela mulher com o desejo, o corpo e o sexo”. Em seu novo projeto artístico, “frenesi”, Raquel parece reafirmar esta opção temática, procurando fazer saltar de sua dramaturgia espectros de desejo que se configuram como tentativa de um possível desenho outro para a condição do feminino em que os arquétipos da mãe, filha, esposa e puta não são mais suficientes.
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Foto de Elenize Dezgeniski |
O masculino se estabelece como presença ao ter sua ausência ressaltada, pela relação sempre apartada espacial e temporalmente. Permeia as enunciações, toma-as para si, empresta suas falas ao outro, como sombra que paira nos monólogos articulados dessas vozes femininas.
Ainda que pretenda problematizar (deslocar, instabilizar) o senso comum, permanece o jogo entre pólos, feminino-masculino, violência-carinho, gozo-dor. O tabu, marcadamente instalado pelo incesto e pelo estupro, passa de interdito a desejável, numa inversão dos valores morais estabelecidos, mas ainda os tomando como referencial para traçar o caminho inverso, como se reforçando-os pelo seu oposto.
“frenesi” mantém-se ainda na esfera do (padrão) cultural e do cogniscível, ainda que exploda o enunciado em várias vozes-corpos. Tão assimilado (cultural e socialmente) quanto os arquétipos citados anteriormente (a mãe, filha, etc) me parecem ser os que se pretende instaurar. O deslocamento, nesse sentido, não promove trânsito, e sim, na fixação (afirmação) de outro ponto de vista.
A encenação encontra momentos de instauração, em que imagens-síntese parecem se estabelecer, como a cena citada por Marcio Abreu na conversa após o espetáculo, em que a mobilização de uma luz verde incidindo sobre o corpo desenhava uma silhueta indefinível, e a cena em que as três atrizes, caminhando para frente em direção à plateia, projetam formas no fundo da cena criando sombras que parecem oprimir o espectador. Nestes momentos, não há apenas uma inversão do estabelecido, mas sim um desenho não-identificável da condição humana (feminina ou não) que parece se desvelar.
Por Soraya Belusi
Um questionamento: “não há espaço para a alegria?”, disse, não exatamente com essas palavras, um homem que assistia à palestra sentado na plateia. Fazia sentido também para mim como espectadora essa questão colocada por ele, afinal, como situações-limites, o êxtase e o prazer (e ao lado deles o riso e o humor), assim como a dor e morte, também poderiam ser experienciados em outros desenhos da condição humana ainda não inventados.
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Foto Elenize Dezgeniski |
A escrita de Ana Johann em “histórias de cachorros e outros animais” carrega esse elemento que ainda não havia sido explorado em outras dramaturgias vistas nesta Mostra de Dramaturgia e Encenação do SESI-Curitiba. A reação (e adesão) da maioria da plateia presente na apresentação parece confirmar essa presença da leveza e da ironia. Porém, a maneira com que se lida com esses elementos parece reforçar o caráter figurativo e muitas vezes dramático da obra teatral, recorrendo-se a referenciais facilmente reconhecíveis pelo espectador, logo reforçando os pontos de vista que já conhecemos, o que acaba por fragilizar o mundo outro que a dramaturgia de Ana Johann pretende instaurar.
A narrativa, fragmentada e às vezes com toques de realismo fantástico, serve de base ao texto, entrecortado por diálogos coloquiais, numa espécie de escrita rapsódica (como definida por Sarrazac em “O Futuro do Drama”) num deslocamento de discursos, “entrelaçado de temas”. O humano, aqui, não é quem impõe seu olhar sobre o mundo e o real, mas sim uma árvore, cuja visão de tempo e espaço se fundamenta (ou poderia se fundamentar) em outros princípios que não os nossos. Um universo em que vida, morte, violência não carregam sentidos plenos, cujas palavras para descrever poderiam ainda não ter sido encontradas.
Em alguma medida, a dramática de Ana Johann aponta para este lugar. Mas não o alcança com plenitude ao optar (e reforçar) uma espécie de humanização da linguagem, personificando o discurso da árvore. Não há a efetivação do embaralhamento, da transitoriedade, do rompimento da linguagem.
Isso se reforça na maneira como a materialização da narrativa e dos diálogos se apresenta, que não se desprende da noção de representação. Os modos de subjetivação que poderiam despontar se configuram ainda como personagens, que vão sendo representados pelos atores, com a utilização da voz e do corpo em um referencial que bordeja o ilustrativo e, algumas vezes, o infantilizado, levando o que seria uma potência de desfiguração de volta à figuração.
Por Soraya Belusi
Sob um forte breu, apenas um vulto. A imobilidade de seu corpo sem face, revelado lentamente pela luz que lhe confere forma, carrega a força de um tempo mitológico, sem possibilidade de fixação no espaço. A face, quando revelada, assume um caráter mortuário, com sua veste negra e ainda manchada pelo pó. Como uma voz bíblica, anuncia a morte como o início da criação, a gênesis de um futuro: a imagem do fim e do início dos tempos.
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Foto Elenize Dezgeniski |
Articulando-se como um poema cênico, “Coração de 29 polegadas”, com texto e direção de Léo Moita, instala em sua primeira imagem a abertura temporal que parece ambiciar no cruzamento entre o último momento de vida e o primeiro da eternidade. Essa força, porém, vai se esvaecendo nos momentos subsequentes, com a palavra perdendo o seu poder de materialização no espaço, na instauração de presenças, barrando o desafio de elaborar outros desenhos da condição humana que poderiam se realizar.
Através de uma construção que rompe a narrativa, desarticula o diálogo (ainda que se utilize dele) e abandona a localização espaço-temporal, o texto aponta para a alteridade, ainda que não a alcance plenamente em seu projeto artístico. Parece ainda dialogar com “Esperando Godot”, de forma indireta, tomando a espera como tema e problemática, e direta através de citações rearticuladas (“vamos embora?”, “não podemos, nós estamos aqui”…), e da presença do duplo complementar como síntese de toda uma humanidade.
As transições e deslocamentos (rítmicos, temporais, espaciais, de subjetivações), embora se manifestem nas pontadas que não se pode controlar, se fragilizam por não serem potencializados na mobilização dos recursos de luz (com exceção das imagens inicial e final), que agem ainda de maneira imperativa sobre o sentido, gerando atmosferas diferentes, mas ainda não mundos inaugurais. O elemento sonoro (o vento, os sinos, o chiado) aparece aqui como potencialmente simbólico em alguns momentos, carregando a iminência da destruição-nascimento, a potência do devir.
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Fotos Elenize Dezgeniski |
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Fotos Elenize Dezgeniski |
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Fotos de Paula Kossatz |