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Horizonte da Cena

Horizonte da Cena

críticas

Nós também falamos de amor

(A foto de capa é do Guto Muniz).

– Por Guilherme Diniz –

Esta crítica integra a cobertura da 16ª edição do Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de Belo Horizonte (FIT-BH) e foi escrita a partir do espetáculo “Querença”, da Breve Cia. (BH), apresentado no Centro Cultural Banco do Brasil.

 

“Todos nós sabemos, quer queiramos admiti-lo ou não, que

os espelhos só fazem mentir e que confiar neles é o mesmo

que expor-se a morrer por afogamento. É esta a razão porque

o amor é buscado com tanta sofreguidão e ao mesmo tempo

tão engenhosamente evitado. O amor arranca as máscaras

sem as quais receamos não poder viver, e com as quais

sabemos não nos poder manter. Emprego aqui o termo “amor”

não simplesmente no sentido individual, mas também como uma

maneira de ser, ou um estado de graça – não no sentido ingênuo

americano de ser tornado feliz por alguém, e sim no sentido

vigoroso e universal de procura, de ousadia e de crescimento.”

[James Baldwin – Da próxima vez, o fogo]

 

James Baldwin, um dos mais sofisticados pensadores do século passado, esmiuçou como poucos os instrumentos de controle e de aniquilação sustentados pelo racismo. O icônico autor de O quarto de Giovanni, contudo, viu mais longe. Ele compreendera que, além de toda marginalização social e violência física, a dominação racial construiu modos de relação, sociabilidades e padrões de comportamento ancorados no desamor. Indiferença, incapacidade de reconhecer a humanidade alheia, individualismo egocêntrico são também efeitos da ausência de uma profunda amorosidade. Por demais astuto, Jimmy não se fia nas idealizações piegas ou sentimentalóides acerca de um amor dócil, límpido, romântico. Nosso autor, em diferentes escritos, evidenciou a dimensão política dos laços amorosos no seio da comunidade negra, reconhecendo a força que tais vínculos possuem para se contrapor a tudo aquilo que pretende desagregar e desumanizar uma população perseguida. Baldwin (assim como bell hooks ou Audre Lorde) constantemente nos relembra que a aridez do racismo, com suas tantas artimanhas ideológicas, não pode minar nossa capacidade de irrigar amores.

Estas considerações dão-nos como que uma moldura para contemplar o espetáculo da Breve Cia. Querença encara certas vivências afetivas de mulheres negras. Deparamo-nos tanto com os prazeres e as alegrias, quanto com as carências e as mágoas incrustradas em corações intensos, revoltos, exigentes. Aquelas vidas apresentadas no palco estão a tatear o amor, ensaiando modos de saboreá-lo, tentando assimilá-lo, testando formas de compartilhar este pulsante afeto em meio a tantos receios e incompreensões. O amor radical capaz de retirar nossas máscaras e proteções convencionais, como nos diz Baldwin, convida a um desnudamento, ao risco de transformar e ser transformado por outrem. Tal gesto não é simples. Assim, a peça, aos poucos, entremostra os atritos, os ressentimentos e as carícias que continuamente remodelam os contatos entre elas. A complexa e movediça arquitetura das relações afetivas é o principal foco do trabalho. Em suma, Querença trata dos encontros, reencontros e desencontros entre mulheres (irmãs, namoradas, mãe e filhas, etc) e suas próprias histórias, memórias e vontades. Em cena estão negros corpos femininos que almejam um profundo estado de plenitude, querem vitalidade na mais ampla acepção do termo, também desejam conforto e dengo para apenas ser.

A dramaturgia de Amora Tito é constituída, quase inteiramente, por ágeis e cortantes réplicas. As personagens, postas em um vívido ping-pong verbal, questionam-se e provocam-se reciprocamente. Palavra puxa palavra; a frase de uma é completada ou desmontada pela outra; uma pergunta, não raro, é rebatida com outra pergunta; as respostas, em larga medida, não são aquelas que esperávamos, pois também estão presentes, no texto, as lacunas e as incompletudes destas acidentadas relações. A comunicação é, portanto, atravessada por ranhuras, ruídos e farpas. Praticamente não há longas tiradas. Esta estrutura dialógica, marcada por trocas verbais curtas e rápidas, se aproxima daquilo que Jean-Pierre Ryngaert chama de teatro da conversação. Para o teórico francês, este tipo de teatro interessa-se principalmente por falas fragmentárias que, ao contrário do drama mais tradicional, não pretende construir um discurso inteiramente compreensível, plano ou disparador de uma ação dramática reconhecível. No teatro da conversação ganham relevo o movimento da fala em si, seus fluxos, refluxos, vacilos, fracassos e obsessões. O encadeamento de réplicas breves, muitas delas aparentemente banais, anódinas e comezinhas joga luz naquilo que está subentendido, mais ou menos encoberto, impreciso. Informações autoexplicativas possuem pouco espaço aqui. As criaturas de Amora não são totalmente discerníveis e os seus diálogos, ainda que velozes, são pejados de reticências e buracos.

Inicialmente, o texto apresenta o espinhoso reencontro entre duas irmãs afastadas por dois anos. Tema clássico, explorado literariamente por autores como Machado de Assis, em Esaú e Jacó; Eugene O’Neill, em Além do Horizonte; ou Milton Hatoum, em Dois Irmãos; acessamos as fissuras emocionais, os rancores e as desconfianças presentes na relação entre duas pessoas que, embora oriundas do mesmo ventre, já não se reconhecem bem. Antes pelo contrário, tais seres se acusam, se digladiam em batalhas físicas e simbólicas nas quais não faltam invejas soterradas, amargas frustrações e uma pesada dificuldade de construir um diálogo desarmado. Na obra de Amora, uma das partes ficou para cuidar da mãe enferma, a outra foi construir sua vida alhures. Uma delas está aterrada, fincada na terra, a outra sobrevoa paragens distantes. E entre ambas pairam enormes estranhamentos. Como fazer o amor brotar (ou renascer) neste terreno?

Ao lado disso, acompanhamos também a convivência de um casal lésbico (uma das enamoradas, aliás, é a irmã que permaneceu). Recortes da rotina conjugal, as delicadezas amorosas, o medo da solidão e as fagulhas de prazer estão salpicados no texto, alinhavando um cotidiano repleto de banalidades, transbordamentos sentimentais e sonhos. Dores e afagos se justapõem em trajetórias transpassadas não apenas pelas faltas e vazios, mas também por desejos.

O mais interessante, contudo, é o modo como Amora Tito articula estas diferentes linhas narrativas. A estória das irmãs e a estória do casal ora se alternam, ora se atravessam veloz e sutilmente. De um fio passamos para o outro sem cerimônias. As fronteiras entre os enredos e subenredos são muito tênues; as filhas e as esposas (bem como outras figuras) mergulham umas nas outras, espelham-se. A dramaturgia arma uma espécie de puzzle, em que a confusão inicial, devido a tantas transições, dá passagem a uma dinâmica na qual as personas e as narrativas se aproximam, se afastam e se transformam na relação. É verdade que nem sempre esta estrutura funciona bem dramaturgicamente. Há momentos em que as repetições e as mudanças são gratuitamente excessivas, menos coesas ou surgem como meros efeitos verbais. O texto se torna de fato mais significativo quando instiga os desenhos de cena entre as duas atrizes. Palavra e movimento, neste trabalho, alimentam-se mutuamente.

Anair Patrícia e Renata Paz, do início ao fim do espetáculo, jogam. O reduzido e moldável cenário, composto basicamente por uma mesa e duas cadeiras, deixa o palco desataviado, livre para os múltiplos deslocamentos do elenco. A dinâmica ocupação espacial confere um senso de organicidade ao desenrolar da peça. Em muitas passagens sentimos que as atrizes estão a brincar, movendo-se daqui para ali com vida, mantendo o ritmo sempre aceso em uma movimentação que, por vezes, se mostra ligeiramente coreográfica. Mas, para além das minúcias técnicas e do jogo teatral, há em cena muita cumplicidade. Tal cumplicidade é crucial no modo como seus corpos se olham, se tocam, conversam. Este é talvez o traço mais vibrante da direção de Amora Tito. Paralelamente às tempestades e às convulsões, estão também presentes as delicadezas e as ternuras. A dupla de atrizes consegue perfazer, com desenvoltura, estas nuanças no delineamento das suas atuações.

Querença parece demandar uma espacialidade intimista, de modo que as miudezas afetivas daquele universo possam ganhar volume e ampliar sua ressonância, atingindo mais diretamente o público. O palco do CCBB manteve-nos distante demais das personagens, como se estivéssemos apreciando, à milhas de distância, uma singela pintura minimalista. Mesmo quando as recordações e os devaneios evocam paisagens abertas ou locais públicos, é a dimensão doméstica que dá sustentação ao enredo. Para tudo dizer em poucas palavras, a peça quer-nos não fora, mas dentro de casa, acompanhando, debaixo do mesmo teto, aquelas pequenas e grandes aventuras relacionais. A proximidade entre artistas e espectadores se afigura relevante para que as sutilezas emocionais se tornem tanto mais cintilantes, quanto mais vívidas. Neste ponto, contudo, não é realmente feliz a iluminação, por assim dizer, estroboscópica, de Régelles Queiroz (ou, talvez, o problema estivesse na operação técnica). Modulações um tanto aleatórias e excessivos feixes coloridos impuseram uma incômoda desarmonia, dando-nos a desconcertante impressão de que dramaturgia e luz não foram muito bem apresentadas uma à outra.

Ainda que exiba um olhar doce, Querença evita idealizações ingênuas a respeito do amor entre pessoas negras. As figuras da peça não são exemplares, nem tampouco absolutas. Elas são também recheadas de contradições, ambiguidades e limitações. Não há encaixes perfeitos, há arranjos possíveis, considerando as singularidades, as carências e as expectativas em jogo. Humanidades complexas, afinal. Como, neste mundo ressequido, é possível criar espaços de aconchego, beleza e suavidade para o amor florescer? Para trajetórias negras, o amor vem sem dor? Espertamente, a montagem não visa responder à antiquíssima pergunta – o que é o amor?  Esta não me parece ser a questão principal para o espetáculo. Contrariamente, ele nos instiga a pensar sobre quais noções de amor queremos inventar.

Por fim, é preciso ressaltar a presença da Breve Cia. na programação do FIT-BH, pois reafirma um dos papeis decisivos que festivais de teatro devem ter, isto é, potencializar e dialogar com a produção cênica local. Em segundo lugar, a companhia, há alguns anos, contribui para o fortalecimento da cena negra da cidade, seja com seus trabalhos artísticos, seja com os vários cursos que suas três integrantes ministram. São notórios, ao longo dos anos, o adensamento e a expansão da pesquisa estético-política do grupo. O primeiro espetáculo E se todas se chamassem Carmem (2017) chafurdava no sangue, na barbárie, nas violências de raça, gênero e classe. Ainda que contivesse uma séria investigação a respeito do espaço, na qualidade de elemento dramatúrgico, a peça era, em suma, um quadro de pura dor, fatalismo mortal e inescapável. Já Querença traz-nos outra perspectiva. As aflições e os sofrimentos não apagam as manifestações de encantamento, de delicadeza e de finura. Eis uma pintura mais pulsante da vida, sem romantizações. Também no FIT-BH o primeiro livro de Amora Tito foi lançado: Vagarosa Movência, dramaturgia publicada pela Editora Javali e que coloca em destaque a arte de uma criadora bastante ativa no contexto belo-horizontino.

 

Ficha Técnica

Concepção: Breve Cia

Atuação: Anair Patrícia e Renata Paz

Direção e Dramaturgia: Amora Tito

Preparação vocal e composição musical: Michele Bernardino

Cenografia: A Baionista

Trilha Sonora e captação de áudio: Karim Angelo

Figurino e adereços (concepção): Anderson Ferreira

Figurino e adereços (execução): Anderson Ferreira, Arthur Alves e Aniah Braga

Preparação corporal: Renata Paz

Desenho de luz e operação: Régelles Queiroz

Assistente de iluminação: Victor Santos

Equipamento de iluminação e efeitos especiais: Gato de Luz

Produção executiva e comunicação: Mexerica Cultural

Orientação de pesquisa: Anair Patrícia

Workshop de cuíca: Débora Costa

Vivência de Capoeira Angola: Joyce Afrika e Sabrina Alves

 

02/07/2024 TAGS: Belo Horizonte, Breve Cia, FIT BH 2024, Guilherme Diniz, James Baldwin, teatro contemporâneo 0 COMMENT
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    Guilherme Diniz

    Pesquisador, crítico teatral e curador. Licenciado em Teatro pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (EBA/UFMG) e mestre em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da mesma universidade (FALE/UFMG). Como crítico já realizou coberturas para distintas mostras e festivais de teatro do país, como 1° Festival online de Teatro Negro da UFMG (BH), Janela de Dramaturgia (BH), Segunda Black (RJ), Mirada - Festival Ibero-americano de Artes Cênicas (SP) e Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (SP). É membro da AICT - Associação Internacional de Críticos Teatrais. Atualmente é o diretor artístico do Teatro Municipal Geraldina Campos de Almeida em Pará de Minas (MG).

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O Horizonte da Cena é um site de crítica de teatro criado em setembro de 2012 pelas críticas Luciana Romagnolli e Soraya Belusi, em Belo Horizonte. Atualmente, são editores Clóvis Domingos, Guilherme Diniz e Julia Guimarães. Também atuam como críticos Ana Luísa Santos, Diogo Horta, Felipe Cordeiro, Marcos Alexandre, Soraya Martins e Victor Guimarães. Julia Guimarães e Diogo Horta criaram, em 2020, o podcast do site. Saiba mais

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