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Horizonte da Cena

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críticas

Teatro como pedagogia dos dispositivos

* * * Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da https://www.corporastreado.com/

Reflexões a partir da peça-conferência Os Benefícios do Tabaco – Dialogando com a Obra de Tchékhov, de João Santos, publicada no YouTube em outubro de 2023.

– Por Julia Guimarães –

Desde o fim da pandemia da Covid 19, decretado em maio do ano passado, não me lembro de ter voltado a assistir a alguma obra cênica no formato digital. Apesar das muitas e ótimas reflexões surgidas no período – a respeito do que o teatro pode ser para além da (ou em paralelo à) copresença física –, tão logo a pandemia acabou, as possibilidades audiovisuais dessa linguagem artística igualmente minguaram.

No entanto, é possível pensar que algumas discussões e formatos cênicos podem ser inclusive mais pertinentes ao suporte da tela do que no próprio palco. Esse me parece ser o caso da peça-conferência (ou palestra-performance) Os benefícios do tabaco – Dialogando com a obra de Tchékhov. Lançado no YouTube no fim do ano passado, pelo artista belo-horizontino João Santos, o espetáculo audiovisual discute um tema que encontra justamente nos vídeos dessa plataforma um de seus locais privilegiados: a desinformação.

Na obra, o artista realiza aquilo que promete no título. Enumera diversos supostos benefícios do tabaco, tece conexões entre o formato da palestra-performance e um dos textos precursores deste gênero – “Os malefícios do tabaco”, escrito há mais de um século pelo dramaturgo russo Anton Tchékhov – a fim de refletir sobre temas como regime da verdade e desinformação, presentes em sua atual pesquisa de mestrado. No entanto, Benefícios do tabaco não é apenas uma criação que lida discursivamente com tais assuntos. Sua contribuição mais interessante surge ao investigar, de modo metalinguístico, a própria performatividade desse tipo de procedimento.

Desde a divulgação do trabalho no Instagram – que já me parece ser parte fundamental da peça, por ajudar a lançar dúvida quanto aos marcos do seu discurso, difuso entre realidade e ficção, vida e arte – até o registro de atuação cênica de João Santos – mais informal, jogando dramaturgicamente com a ideia de que não possui técnica ou experiência como “ator” –,as diferentes escolhas estéticas da criação ajudam a fabricar um certo efeito de autenticidade, responsável por potencializar o estatuto da verdade sobre o que ele diz ao defender os benefícios do tabaco.

Imagens: Amanhã Filmes / Ítallo Vieira

Em sua peça-conferência, o performer explora também jargões aos quais os promotores de desinformação costumam recorrer. Por exemplo, a ideia de que há uma verdade oculta conscientemente omitida pelas grandes instituições: “a quem interessa essa narrativa?”, “será que por trás do lobby anti-tabagista não existem outros interesses?”, questiona. Ou, ainda, o apelo a experiências pessoais um tanto aleatórias que parecem servir apenas ao propósito de atestar uma verdade supostamente “testemunhal” acerca de sua argumentação. “Eu tô vivo, eu estou bem (…) não estou tossindo, não desenvolvi doenças respiratórias”, diz o artista no vídeo, após relatar vivências com uma professora que fumava em sala de aula ou em boates onde era permitido fumar.

Trata-se de um depoimento que flerta, inclusive, com mecanismos bastante explorados pelo teatro contemporâneo. Como comenta o pesquisador Óscar Cornago[1], “a aura que rodeia a testemunha não se apoia em sua capacidade de contar o que viu, sofreu ou experimentou, mas sim na própria presença de um corpo que viu isso, sofreu ou experimentou”. Ou seja, trata-se de um depoimento que não parece ter outra finalidade senão a de atestar que viveu (e sobreviveu) em um mundo no qual as regras acerca do tabagismo ainda eram bem mais permissivas – e, assim, chancelar, pela aura do testemunho, sua tese acerca dos supostos benefícios do tabaco.

Ao jogar com a performatividade da desinformação, João Santos opera, com sua peça-conferência, aquilo que a pesquisadora Ivana Bentes chamou de “pedagogia dos dispositivos”[2]. Para a autora, haveria, atualmente, uma exploração de mão dupla no que se refere ao diálogo com os dispositivos, entendidos como instâncias, as mais diversas possíveis (por exemplo, as plataformas tecnológicas), responsáveis por mediar a relação entre humanos e moldar nossa subjetividade.

Segundo Bentes, ocorre hoje tanto um certo “devir midiático das artes”, ou seja, uma apropriação, pela arte contemporânea, dos meios e dispositivos para extrair deles seu potencial estético, quanto também um “devir estético das mídias”, já que estas se valem cada vez mais de recursos originários do campo da arte para expandir seu alcance. Nessas circunstâncias, caberia às artes, segundo a autora, projetar-se como “pedagogia dos dispositivos, que vai evidenciando a performance, os meios de construção da subjetividade, e explicitando a imagem como construto”. Ou seja, a dimensão pedagógica da arte contemporânea analisada por ela consiste em explicitar precisamente a processualidade e o caráter performativo do funcionamento dos dispositivos.

A reflexão acima serve para pensar na metalinguagem presente em Os benefícios do tabaco. Ao situar-se no interior de um dispositivo como a plataforma do YouTube, mimetizando técnicas de adesão, nesse caso voltadas a um contexto enquadrado como “artístico”, o que João Santos faz é precisamente evidenciar os “meios de construção da subjetividade” tão explorados nesse espaço.

É verdade também que, em alguma medida, essa “pedagogia dos dispositivos” esteja, hoje, amplamente sublinhada de diferentes maneiras na mídia, sobretudo após alguns anos de convivência com as chamadas “fake news”. Além das discussões atuais sobre novos marcos regulatórios da internet, a onipresença do assunto em diversos meios colabora para que a desinformação provavelmente encontre hoje mais entraves para proliferar do que, por exemplo, na década passada. Ainda assim, a ausência de distância – tão característica da temporalidade acelerada com que conteúdos são produzidos, consumidos e replicados na internet – somada ao fato, citado na própria obra, de que o Brasil teria se tornado uma espécie de “laboratório global da desinformação”, faz com que uma proposição artística metalinguística como Benefícios do Tabaco produza um importante efeito de distanciamento sobre a lógica da desinformação, sobretudo no diálogo com a linguagem teatral, cujas técnicas são diariamente usadas para chancelar as mais variadas e estapafúrdias teses na internet.

Além disso, ao semear a dúvida no âmbito de uma bolha mais progressista (já que o vídeo[3] foi divulgado sobretudo nas redes do próprio artista), João Santos sublinha certa lógica de espelhamento entre setores conservadores e progressistas da sociedade, nos quais as intenções de convencimento são distintas, mas, muitas vezes, os procedimentos e a retórica se assemelham. “O termo ‘fake news’, quem o popularizou foi Donald Trump”, comenta o performer em um determinado momento, evidenciando o looping movediço de instabilidade promovido pelos mecanismos da desinformação, mecanismos estes que fazem do chamado “sequestro de narrativas” – ou seja, da apropriação de um discurso com finalidade oposta à de sua origem – uma de suas ferramentas cruciais.

A palestra-performance de João Santos traz ainda um interessante diálogo, presente no próprio título, com outro texto produzido igualmente nos moldes de uma conferência. Trata-se do conto “Os malefícios do tabaco”, de Anton Tchékhov. No contexto da discussão sobre “regime de verdade”, vale lembrar que Tchékhov tornou-se um marco para a literatura e o teatro, entre outros motivos, por levar para o âmbito artístico aquilo que, historicamente, não fazia parte de seu escopo, como o cotidiano banal, prosaico, “autêntico” da vida das personagens que criou, logrando, assim, o efeito estético de uma cena supostamente mais “verdadeira”.

João Santos comenta que, com “Malefícios do Tabaco”, Tchékhov antecipa em um século questões cada vez mais explorada no teatro contemporâneo brasileiro, como é o caso da tendência estética da palestra-performance. Ao embaralhar performance e ciência, ao brincar com os mecanismos legitimadores desta última e, assim, produzir ruídos sobre cada um desses campos, em um diálogo direto com a plateia, o que esse gênero faz é justamente tecer um olhar distanciado sobre a forma estética do discurso científico. Ou, como revela o próprio narrador do texto de Tchékhov, mostrar que muitos discursos envelopados pelo selo da ciência seriam convincentes pelo mero fato de trazerem consigo “um certo ar científico”, ainda que não se sustentem com base nela.

Nos dois casos, o formato da palestra-performance se encaixa bem a um momento histórico de profunda cisão social e política, seja no Brasil ou no resto do mundo, no qual concepções distintas da vida em sociedade entram constantemente em choque, em uma disputa que remete, em última instância, aos sentidos daquilo que se entende por realidade.

Nesse jogo, aparece outro elemento que Ivana Bentes enxerga como característico dos dispositivos atuais, que é o fato de funcionarem como “tecnologias do afeto”. Como também argumenta Vladmir Safatle no seu livro “Os circuitos dos afetos”, no mundo contemporâneo a compreensão do poder passa pela “constatação de que sociedades são, em seu nível mais fundamental, circuitos de afetos”. Nesse sentido, uma técnica central para a adesão política na atualidade, que é a desinformação, depende fortemente de seu potencial de afecção para funcionar e proliferar.

Nesse contexto, o teatro – e, especificamente a conferência performance de João Santos – aparece como terreno privilegiado para refletir sobre a relação entre afeto e desinformação, numa tessitura cênica responsável por simultaneamente dilatar e estranhar tais procedimentos. Afinal, se as técnicas de teatro se tornaram moeda corrente nas engrenagens de persuasão presentes hoje na política e na internet, nada mais justo que se reapropriar dos mesmos mecanismos, a fim de redicioná-los a seu lugar de origem: o campo da arte.

 

*** A peça-conferência Os Benefícios do Tabaco – Dialogando com a Obra de Tchékhov está disponível neste link: https://www.youtube.com/watch?v=gjggICLtJIk

[1] No artigo “Atuar ‘de verdade’. A confissão como estratégia cênica” (Revista Urdimento, 2009).

[2] Termo presente em seu artigo “O Devir Estético do Capitalismo Cognitivo”, publicados nos anais do XVI Encontro da Compós, na UTP, em Curitiba, PR, em junho de 2007.

[3] O vídeo está publicado no canal do YouTube do Memorial Minas Gerais Vale e é fruto de um edital da empresa, lançado em 2022, de seleção de propostas inéditas para ocupação da programação do museu de forma online e presencial.

28/02/2024 TAGS: #performatividade, Belo Horizonte, dispositivo cênico, João Santos, Júlia Guimarães, peça-conferência, Tchekhov, teatro virtual 0 COMMENT
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Presente, passado e futuro em cena com Lady Tempestade e Macacos

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    Julia Guimarães

    Julia Guimarães é pesquisadora, professora, crítica teatral e jornalista. Editora das revistas Subtexto (MG), Letras (MG) e do site de crítica Horizonte da Cena. Atuou como professora visitante na Faculdade de Letras da UFMG, na área de Literatura e Teatro (2021-2023). Realizou pós-doutorado na Escola de Belas Artes (UFMG) e concluiu o doutorado em Artes Cênicas na Escola de Comunicações e Artes da USP, onde atuou como professora convidada. É coorganizadora do livro "O teatro como experiência pública" (ed. Hucitec, 2019). Foi curadora do eixo Olhares Críticos da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) em 2022. Atuou como crítica de teatro nos jornais O Tempo e Pampulha (BH), no site Teatrojornal (SP) e em diversos festivais brasileiros, como a MITsp, o FIT-BH e o Mirada. É integrante da Associação Internacional de Críticos de Teatro (AICT-Brasil).
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O Horizonte da Cena é um site de crítica de teatro criado em setembro de 2012 pelas críticas Luciana Romagnolli e Soraya Belusi, em Belo Horizonte. Atualmente, são editores Clóvis Domingos, Guilherme Diniz e Julia Guimarães. Também atuam como críticos Ana Luísa Santos, Diogo Horta, Felipe Cordeiro, Marcos Alexandre, Soraya Martins e Victor Guimarães. Julia Guimarães e Diogo Horta criaram, em 2020, o podcast do site. Saiba mais

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