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Horizonte da Cena

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Um voo agridoce

Por Guilherme Diniz

 

O espetáculo Gaviota foi apresentado nos dias 31 de março e 01 de abril de 2025 no Festival de Curitiba.

 

No jargão teatral, o trabalho de mesa é, em síntese, o momento em que o elenco estuda profundamente o texto que irá subsidiar uma futura encenação. Sucessivas leituras, vocalizações e análises coletivas vão tornando a dramaturgia mais próxima, mais concreta, mais latejante. Atores e atrizes realizam várias experimentações a fim de escavar, a partir da letra grafada, os sentimentos, as relações de força, as atmosferas, os pensamentos e as temporalidades orquestrados no papel. Dessas tentativas críticas e criativas, brotam hipotéticas possibilidades de ressignificar e espacializar cenicamente a obra literária. A imagem é instigante: um punhado de pessoas dedica seu tempo a mergulhar nas paisagens de uma dramaturgia não tomando-a como uma origem estática ou superior, mas como um campo aberto de possibilidades imaginativas. Olhos e corações em torno de um texto. Esse me parece um ponto de partida crucial para pensarmos em Gaviota, dirigido por Guillermo Cacace.

A encenação argentina convida-nos literalmente a sentar à mesa para compartilharmos as esperanças quebradas, a fadiga existencial e as frustrações contidas em A gaivota (1896), primeira grande obra da maturidade artística de Anton Tchekhov (1860-1904). Importam sobretudo as cadências, os ritmos, as pausas e as curvas de um texto marcado pela contenção e pelo fino detalhamento emocional de cada sujeito. Nesse “trabalho de mesa”, somos estimulados a adensar nossos vínculos com um drama centenário, cuja vitalidade é ainda mais acentuada nessa montagem. Longe de qualquer preocupação realista-naturalista, a economia do cenário e da luz fazem-nos acompanhar mais detidamente as íntimas relações entre texto e atuação, linguagem e corpo, dispensando efeitos especiais. Uma simples mesa de MDF sobre a qual se vê resíduos de uma possível festa (copos descartáveis, garrafas de vinho, guardanapos usados, manchas sobre o tampo, embalagens de salgadinho, lenços, etc), textos teatrais e pedestais com microfones jogam o foco para as ressonâncias semânticas, musicais e energéticas do verbo, isto é, a artesania das palavras.

Nesta releitura textual, assinada por Juan Ignacio Fernández, apenas cinco atrizes condensam os quatro atos e as mais de 10 personagens da dramaturgia original. Acompanhamos as ruínas e as desilusões de Arkádina, Kostantin (Kóstia), Nina, Boris e Macha. Em primeiro lugar, esse recorte substancial agudiza um dos principais pilares da peça: as discussões sobre o papel da arte (especialmente o teatro e a literatura) na sociedade, as complexidades da criação e as dimensões éticas do artista. Kostantin é um jovem escritor que almeja conceber uma forma nova para intervir mais profundamente no mundo; sua mãe, Arkádina, é uma atriz de relativo sucesso, mas tragada pelas convenções teatrais já batidas; Boris Trigorin é um autor famoso, preocupado acima de tudo com seu prestígio, seu ego; a sonhadora Nina, por sua vez, está disposta a enfrentar o que for preciso para afirmar-se como atriz. Por entre esse quarteto, chocam-se o tradicionalismo aprisionador contra o experimentalismo criativo; a acomodação às normas e aos clichês contra a busca por uma irrestrita liberdade poética. Ademais, num segundo plano, vemos que o modo pelo qual cada personagem lida com a arte, entre fracassos e utopias, matiza suas vivências e representações do amor, esta areia fina e fugidia. Idealizações, desencantamentos e obsessões atravessam tanto as tensões afetivas, quanto as turbulências profissionais de criadores e criadoras em crise com seus ofícios. O deboche da mãe diante da arte do filho traduz as incompreensões familiares; o fulminante amor entre Nina e Kostia, é decorrência do encontro entre artistas que buscam, na arte, um propósito maior para suas existências. Os exemplos se multiplicam…

Em segundo lugar, é a perspectiva de Macha que, nessa versão, nos dá um fio condutor para atar as histórias. Tal escolha, por um lado acentua o abatimento e o beco-sem-saída daquelas vidas trituradas. Ela é a mulher que renuncia ao amor, nutre um afeto não correspondido por Kóstia e casa-se somente para não definhar na solidão. Por outro lado, a personagem, na concepção de Gaviota, é quem, delicada e respeitosamente, cuida dos demais, tentando manter as coisas relativamente estáveis mesmo que para isso ela precise sacrificar sua própria felicidade. Já se disse que A gaivota é uma obra sobre aqueles que sobrevivem e aqueles que não sobrevivem. Nesse sentido, Macha é especialmente valorosa, pois não sucumbe ao fatalismo torturante, ao contrário, persevera e devota seus esforços para o bem de outrem. Eric Bentley, eminente crítico teatral, nos diz: “É exatamente por Tchékhov ser uma pessoa assim positiva, tão amante da vida, que a sua Rússia é um lugar triste, como se fosse uma gaiola para pássaros selvagens ou uma lareira encimada por gaivotas empalhadas”. Estranhamente, a Macha de Gaviota, apesar de tudo, nos dá um halo de luz em meio à escuridão, uma quentura circundada pelo frio. Essa personagem, redimensionada nesta releitura, adquire um sentido especial em nossa América Latina tão assolada atualmente pela extrema-direita, mas que ainda vislumbra futuros outros.

Elena Vássina, estudiosa das literaturas russas, vê em Tchekhov um “poeta do cotidiano”. Essa breve definição ressalta dois aspectos nucleares do consagrado autor: a observação das pequenas e grandes tragédias inscritas no dia a dia de tal maneira que é possível entrever, por detrás das trivialidades de uma conversa ou ação comezinha, os imensos abalos, as crises subjetivas e as revelações avassaladoras. Igualmente importante é a sua sofisticada condensação formal, ou seja, a economia de um escritor que emprega as palavras com muito comedimento. É ele próprio quem afirma: “Quando um homem gasta o menor número possível de movimentos numa ação, aí está a graça”. Tudo isso se faz presente em Gaviota, mas é sobretudo nas atuações que essas qualidades brilham com mais força.

Raquel Ameri, Muriel Sago, Marcela Guerty, Clarissa Korovsky e Romina Padoan dão-nos composições precisas sem grandes arroubos ou efeitos, apoiando, todas elas, na fluência do texto. Boris, interpretado por Guerty, é fruto de um trabalho poderoso, porventura o mais destacável. Com fina meticulosidade, gestos e expressão facial parcimoniosos, a atriz consegue desvelar toda a indiferença masculina, o autoengano, a frieza de um pseudointelectual essencialmente manipulador. Também magnética é a Macha, encarnada por Clarissa Korovsky, pois a atriz a interpreta de modo agridoce, esboçando uma tênue comicidade da qual irradia, a um só tempo, alguns dos momentos mais leves e mais densos de toda a encenação. Além disso, Masha habita socialmente o andar de baixo; é ela quem limpa a residência de Arkádina e Sorin, irmão desta. Korovsky consegue discretamente sublinhar o olhar crítico da sua personagem diante da decadência dos mais privilegiados.

As passagens menos intensas, porém, são aquelas que se afastam da sutileza cortante e avançam para um histrionismo agitado. Por vezes, a Arkádina, de Raquel Ameri, descamba para um transbordamento melodramático muito distante da atmosfera geral. No derradeiro momento, o seu urro de dor ante o suicídio do filho é lancinante, mas um tanto piegas e estranho à estrutura cênica tão comedida. Nesse ponto, a dramaturgia de Juan Ignácio também derrapa. Contrariamente, na obra original, Dorn, o médico da família, diz a Arkádina que o estampido no outro cômodo foi tão somente um frasco que se quebrou devido á força do vento. A cortina se fecha sem que a mãe descubra a cruenta verdade dos fatos: o filho atirou na própria cabeça. A maior angústia está, portanto, nas reticências, naquilo que intuímos. O que irá acontecer depois?

CRÉDITOS: Humberto Araújo

A proximidade espacial, promovida pela despojada cenografia, intensifica nossa relação com o desespero daquelas vidas. Uma parte da plateia ocupou a mesa com as atrizes, os demais espectadores sentaram-se nas poltronas do intimista Teatro Cleon Jacques. Lado a lado, ao redor da mesa, é possível ver melhor a riqueza de detalhes psicofísicos, as minúcias de interpretações sustentadas, majoritariamente, pelas sutilezas. Cada pequeno movimento, cada balbucio mínimo, irradiavam fortemente. Nesse espaço compartilhado, Guillermo Cacace enfatiza o peso e a densidade dos olhares, miradas que tentam exprimir o caudal de sentimentos indiscerníveis, os desapontamentos e as desesperanças abissais. Tchekhov maneja habilmente as pausas, as suspensões, os silêncios e as alterações espirituais/psicológicas, desenhando a ação interna de suas criaturas ficcionais. As trocas de olhares entre as atrizes realçam estes recursos. Do mesmo modo, o elenco nos encara, ora como se fôssemos cumplices de suas aflições, ora como se estivéssemos sendo convocados a agir diante de todo o desmoronamento dramático. Assim, a cenografia nos coloca dentro daquela amargurada casa de campo na Rússia provincial.

No Festival de Curitiba deste ano, Anton Tchekhov e sua Gaivota se fazem presentes em duas outras montagens: Ao vivo [dentro da cabeça de alguém], da Companhia Brasileira de Teatro; e Júpiter e a Gaivota, da Cia Setor de Áreas Isoladas. O pesquisador Rodrigo Nascimento, profundo conhecedor da galáxia tchekhoviana, destaca como, ao longo dos séculos XX e XXI, o autor russo constantemente visitou os nossos palcos em espetáculos muito distintos estética e politicamente, tornando-se um dos dramaturgos estrangeiros mais representados no Brasil. Poderíamos perguntar por que um escritor fundamentalmente oitocentista, nascido numa terra gelada a milhas e milhas de distância, continua a nos fornecer tanta inquietação, tanto fascínio, como se vivesse tão perto de nós. São muitas as respostas, revelando, desde já, as incontáveis possibilidades de encenar as obras de Tchekhov.

Arrisco a dizer que em numa nação atravessada por golpes e ditaduras; forjada por brutais desigualdades econômicas, sociais e raciais; constrangida cada vez mais pela extrema-direita reacionária e violenta e assolada por uma pandemia que matou, por negligência política, mais de 700 mil pessoas, ter fé na vida é um ato político de coragem e beleza. Tchekhov é esse dramaturgo, que como poucos, aborda as desesperanças e as utopias com as quais desenhamos nossos horizontes, valores e noções de liberdade. Em suas obras estão os sonhos que, por várias circunstâncias, somos forçados não tanto a abandonar, mas a adiar, sem nos esquecermos deles.

Ora, esse é um país que, por várias razões, não oferece, para grande parte de sua população, amplas possibilidades de futuro pleno e digno. O porvir está em disputa, e, com efeito, não abrimos mão dele. Também por isso (mas não só), o teatro de Tchekhov ainda faça tanto sentido, pois ele dramatiza as tensões, os significados e as movimentações do tempo. Essa é uma das grandes questões do nosso momento histórico: os sentidos do tempo no império capitalista; o tempo desejado para a concretização das mudanças, das revoluções; o tempo como corrosão e como dádiva. Diante de tudo isso, qual seria, afinal, o lugar da arte em um mundo, como o nosso, em convulsão? De que maneira criadores e criadoras podem refletir e intervir mais radicalmente em sua época? Com quais formas? As antigas ou as novas? Estas são interrogações que se mostram cruciais em uma leitura atenta de A gaivota, donde sua pertinência sempre reatualizada. Gaviota, portanto, chega em uma boa hora.

 

  • Guilherme Diniz escreveu críticas de espetáculos que participaram do Festival de Curitiba a convite do Festival. A crítica foi originalmente publicada no site do Festival de Curitiba.
  • O grupo de críticos que trabalhou no festival incluiu ainda Annelise Schwarcz, Pollyanna Diniz (Satisfeita Yolanda) e Francisco Mallmann.

 

 

Ficha Técnica:

Dramaturgia: Juan Ignacio Fernández

Direção: Guillermo Cacace

Elenco: Raquel Ameri, Marcela Guerty, Clarisa Korovsky, Romina Padoan, Muriel Sago

Assistente de direção: Alejandro Guerscovich

Assistente de produção: Romina Ciera

Direção de produção: Romina Chepe

 

 

 

07/05/2025 TAGS: Festival de Curitiba, GAIVOTA, Guilherme Diniz, Teatro Latino-americano 0 COMMENT
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  • About Me

    Guilherme Diniz

    Pesquisador, crítico teatral e curador. Licenciado em Teatro pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (EBA/UFMG) e mestre em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da mesma universidade (FALE/UFMG). Como crítico já realizou coberturas para distintas mostras e festivais de teatro do país, como 1° Festival online de Teatro Negro da UFMG (BH), Janela de Dramaturgia (BH), Segunda Black (RJ), Mirada - Festival Ibero-americano de Artes Cênicas (SP) e Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (SP). É membro da AICT - Associação Internacional de Críticos Teatrais. Atualmente é o diretor artístico do Teatro Municipal Geraldina Campos de Almeida em Pará de Minas (MG).

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O Horizonte da Cena é um site de crítica de teatro criado em setembro de 2012 pelas críticas Luciana Romagnolli e Soraya Belusi, em Belo Horizonte. Atualmente, são editores Clóvis Domingos, Guilherme Diniz e Julia Guimarães. Também atuam como críticos Ana Luísa Santos, Diogo Horta, Felipe Cordeiro, Marcos Alexandre, Soraya Martins e Victor Guimarães. Julia Guimarães e Diogo Horta criaram, em 2020, o podcast do site. Saiba mais

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