Em linhas gerais, a peça se inspira livremente na vida e obra de Caio Fernando Abreu para abordar ditaduras de ontem e de hoje. Tanto essa que já está instalada em cotidianos atos de repressão da Polícia Militar, quanto outra, recentemente convocada por manifestantes a revisitar nos nossos dias e por aqui se instaurar.
Exatamente por isso, traçar vínculos históricos para sacudir memórias perdidas parece ser um motor fundante e coerente do espetáculo. Não foi à toa, aliás, que o trabalho nasceu de testemunhos do ator e do diretor em relação às recentes manifestações do país. Não por acaso, de igual modo, as pesquisas que empreenderam caíram nas letras do escritor gaúcho. Os elos e as linhas paralelas, no entanto, ganham certo aspecto didático, sendo narrados por gritos de um militar que ora posiciona o público nos históricos anos 1960, ora nos deixa no aqui e agora.
Os paralelos entre ontem e hoje, ator e personagem, real e ficção também se estabelecem, logo no princípio do espetáculo, como ferramentas ou estratégias de aproximação. “Quem foi às ruas se manifestar recentemente? O que achou e o que sentiu?”, pergunta, sem solenidades, o ator, a quem o público responde com suas impressões. A proposta se faz contundente em um trabalho que busca na performance o norte de uma criação marcada pela presença de corpos, tanto o do ator quanto os do público. Ao fim da conversa, no entanto, a chave vira-se abruptamente. O ator torna-se personagem, a ficção se instala, e o distanciamento é promovido sem que isso pareça ser uma estratégia ou opção estética. A conversa até então compartilhada quase ao pé do ouvido converte-se em texto decorado até encontrar novo ritmo.
Com exceção dos momentos em que a narrativa ganha tom direto e convida o público a estabelecer conexões entre distintos períodos históricos, todo o resto está afirmado no corpo, e, mesmo quando as palavras são ditas, é a angustia psicológica retratada na voz que nos faz refletir, ou, ainda melhor, nos faz sentir o que é viver em tempos de opressão e censura.
O corpo torna-se, portanto, o principal elemento cênico, frente a outros poucos que são trazidos à cena e que carregam na “pele”, de modo comum, o sentido e a sensação da opressão. O palco pode até ser amplo, mas o espaço do ator/personagem é um pequeno círculo formado e coberto por carvões, e esse é todo o espaço que tem para passar os próximos minutos – ou dias de uma vida.
Sem mais nada para ver, pegar ou se apegar além da tormenta de seus pensamentos, resta ao personagem apenas o seu próprio corpo, que ganha relevo pela pouca luz de uma lanterna. São, assim, iluminadas algumas partes dos braços, das pernas e do tronco do ator, trazendo à tona a experiência de uma pele que se suja e não se intimida às pontiagudas arestas do carvão. Ali, o corpo passeia, caminha, cai, pula, pisa, com medo e com coragem, em momentos de grande vigor e indignação, ao mesmo tempo em que se percebem mínimos gestos de medo, saudade e cansaço.
Quase completamente em torno de si, em uma das cenas mais belas do espetáculo, Caio está no breu claustrofóbico de um porão onde se esconde. Ali, ele toca o próprio corpo para sentir que ainda existe, que a materialidade ainda resiste e que a pele consegue sentir alguma coisa.
Em “EuCaio”, o corpo também é elemento de transposição de papeis e lugares sociais. Por exemplo: um mesmo homem de braços atados para trás, trazendo portanto o mesmo gesto e a mesma postura, pode gerar sentidos bastante distintos. Um é o oprimido, e o outro, o opressor – o único que consegue fugir aos limites do círculo. O que determina essas posições? O que determina essas relações?
De Caio Fernando, além de reflexões sobre o fazer artístico e as formas de se manifestar por meio desse fazer, vem a inquietação psicológica, o tormento de uma mente que tem medo até dos próprios pensamentos, assim como de imaginar o que estaria acontecendo fora do porão em que se esconde.
O que parece, no entanto, ser local de proteção e segurança é o retrato de tantos outros círculos, hierarquias e regras determinadas que reprimem, engessam e tolhem individualidades, liberdades e diferenças. São os porões do preconceitos e da intolerância, dos jogos de poder que circulam fora do bem comum.
Dentro desse espaço de isolamento que fecha e aprisiona, que apequena e atormenta, resta o mergulho vertical em um drama psicológico sem espaços abertos para o respiro. Não se respira, afinal, com a faca da censura na garganta.
De Caio Fernando vem também, em uma espécie de segundo plano, a questão da homossexualidade (assumida pelo escritor). E a partir desse tema, a reflexão se estende a outras dimensões: não guardariam o preconceito e a intolerância semelhanças àquela tortura que persegue, inibe, impede e mata? Não teríamos, já, alguns elementos da ditadura atuando na sociedade do século XXI?
Se “viver é constantemente construir e não derrubar”, como diz a frase de Caio Fernando citada ao fim do espetáculo, retumba aos ouvidos que há muito caminho para se retirar da sociedade os vestígios da dita ditadura, e essa é a construção a se dedicar, penso eu.
— por Soraya Belusi —
Crítica do espetáculo “Real”, do Grupo Espanca! (Belo Horizonte)
Há sempre uma tensão entre a realidade e a ficção no teatro, quaisquer sejam os lugares e o tempo em que ele se concretiza. Tal tensionamento, conforme a teórica Erika Fischer-Lichte, permitiu ao longo da história, e mais potencialmente na cena contemporânea, uma série de transgressões entre o que entendemos pelo real e pelo fictício. O novo trabalho do Espanca!, que estreou em dezembro de 2015, evidencia esse embate entre vida e arte e propõe uma experiência teatral que afete o espectador anestesiado no cotidiano.
A realidade não é só o tema de “Real – Teatro de Revista Política”. Ela invade a cena, o processo, o espetáculo. Não são atores que se apresentam primeiramente ao público, mas sim a produtora Aline Vila Real, que compartilha com o público as condições com as quais o grupo teve que lidar durante o percurso criativo da obra. Uma realidade que eles não esperavam nunca ter que lidar; embora a vida real sempre estivesse bem pertinho deles, ali, no centro da cidade, do outro lado da porta. De alguma maneira, é disso que também fala todo o trabalho, e a ficção então se apresenta como única possibilidade de existência para aquilo que consideramos não existir mais.
Ao longo de sua trajetória, o coletivo mineiro busca em seus trabalhos desenvolver o que eles conceituam como “poética da violência”. Mais do que responder a esse conceito, me proponho a refletir o que ele nos pergunta como espectadores. Como afetar o espectador? Como traduzir o horror da realidade em uma experiência equivalente em sua potência na ficção? Como gerar uma obra em que esses dois elementos, poética e violência, tenham certa comunhão? “Real” nos responde a isso não na teoria, mas na relação que estabelece com os fatos que lhe serviram de pontapé inicial e com as linguagens criadas pelos dramaturgos que assinam os textos das quatro peças curtas que compõem o programa: “Inquérito”, de Diogo Liberano, “O Todo e as Partes”, de Roberto Alvim, “Parada Serpentina”, a partir de texto de Byron O’Neill, e “Maré”, com dramaturgia de Marcio Abreu.
É como se os textos fortalecessem a poética que acompanha a trajetória do grupo, assim como a encenação potencializa as linguagens que levam as assinaturas dos dramaturgos. “Inquérito” funciona como síntese/cartão de visitas à proposta de “Real”. Diogo Liberano volta à estrutura familiar, que caracteriza “Sinfonia Sonho”, para lidar com aquilo que não tem explicação, e constrói uma dramaturgia que cria diferentes planos ficcionais, como se houvesse a possibilidade de criar furos na ficção para que outra ficção dialogasse com ela. Quem fala diretamente ao público é o personagem mais irreal da cena, a mãe morta, a fantasma de Fabiane Maria de Jesus, mulher que foi espancada e linchada até a morte após ser confundida com uma sequestradora de crianças para cultos religiosos.
“Isso aqui é teatro”, nos alerta a personagem, interpretada por Gláucia Vandeveld, que parece nos lembrar, por meio de sua atuação, o caráter ficcional de sua Fabiane. É justamente um fantasma – quer algo mais não real que uma assombração? – que se dirige ao espectador. O caráter irreal é reforçado pela maquiagem, pelo caminhar de Glaucia, pelas brincadeiras com o cobertor, pelo tom quase canastrão com que o fantasma é construído. Tudo isso só potencializa o tensionamento entre real e ficção, desaguando no momento em que a fantasma nos recorda que Fabiane, este sim, é um nome real.
Esse furo na ficção, que sobrepõe outra camada ficcional, se dá em cenas como as simulações de linchamento feitas pelos personagens, quando seres que estão extracampo, fora da cena, invadem o espaço real da cena para incentivar e/ou apartar o ato violento.
A encenação assinada por Gustavo Bones enfatiza o constante deslocamento entre corpo real e corpo fenomenal, como caracteriza Erika Fischer-Lichte, à medida que dois atores homens interpretam duas meninas ainda crianças, sem para isso mudarem o tom de voz ou a movimentação corporal. Mais uma vez, encontramos nesta dramaturgia referências que podem estar conectadas a “Sinfonia Sonho”, como o jogo como uma saída lúdica para tratar daquilo que não somos capazes, e a inversão de papéis entre crianças e adultos, estes muito mais infantilizados e escapistas que os primeiros.
Em “O Todo e as Partes” o que entra em discussão é o nosso conceito de justiça. O “drama” da primeira peça curta cede lugar à construção de um jogo de duplos opostos, em que não são mais os indivíduos e as relações pessoais que estão no centro da ação, mas justamente a relação entre eles e a sociedade, entre seus atos e seus desdobramentos. A princípio, me parecia o maior desafio para o Espanca! traduzir, à sua maneira, a poética singular proposta por Roberto Alvim em suas obras. Um universo que, aparentemente, se contrapunha às premissas até então trabalhadas pelo grupo mineiro. Mas, assim como em “Inquérito”, esse encontro parece potencializar ambas as poéticas.
O convite a Eduardo Félix, criador e diretor do Pigmaleão Escultura que Mexe, me parece a grande virada para que tais mundos artísticos encontrassem um diálogo possível e potente. À sua maneira, o encenador conseguiu criar um tempo e um espaço que fogem das referências realistas, assim como seres transfigurados, quase inumanos, o que se vê com mais ênfase no ser deformado, meio boneco meio gente, da criatura interpretada por Gustavo Bones – espécie de juiz-voz suprema. O que se vê é um mundo de escuridão, em que os atos não têm motivos aparentes, em que não cabe mais a lógica de causa e consequência. Uma sociedade em que as coisas são assim porque são, e assim continuarão sendo.
Alvim teve como inspiração para seu texto o atropelamento de um jovem que teve seu braço arrancado no acidente, membro que depois foi arremessado na água. É o braço arrancado, com vida e desejos próprios, o verdadeiro personagem da dramaturgia criada pelo artista carioca radicado em São Paulo. Independentemente das escolhas técnicas e de manipulação feitas por Eduardo Félix, algumas das quais poderia criticamente questionar – como a excessiva demonstração da artificialidade do braço e, consequentemente, do próprio ato teatral –, o que busco ressaltar aqui é que a pertinência das opções conceituais diante do material textual a ele oferecido para a construção espetacular.
“Parada serpentina” materializa um desejo antigo do grupo mineiro: criar um espetáculo cuja linguagem referencial fosse a dança contemporânea – que já aparece, em maior ou menor proporção, em outros trabalhos do grupo, entre eles, “Congresso Internacional do Medo”.
Em seu texto “Coreopolícia e Coreopolítica”, o pesquisador André Lepecki, a partir da reflexão sobre a relação entre o estético e o político, os corpos e a cidade, propõe a noção de coreopolítica, na qual, de maneira extremamente resumida, poderíamos entender como a capacidade que a coreografia tem de ser usada “simultaneamente como prática política e um enquadramento teórico que mapeia performances de mobilidade e mobilização em espaços urbanos de contestação”.
A proposta não é encaixar a criação do Espanca! em uma definição/conceituação, mas utilizar esse referencial teórico para com ela dialogar, pensando “Parada Serpentina” como uma performance que compartilha com a política as características de efemeridade, precariedade, de sua ação final ser idêntico ao próprio processo, de não ser uma metáfora do político, mas uma forma de se pensar a relação estético-política.
É o urbano, a polis contemporânea, o material e o fim da coreo-política. “Parada Serpentina”, a partir dos seus modos de composição, busca refletir sobre a relação entre os corpos e a cidade, as forças de poder nela inserida. Uma revolução dos e pelos corpos, em que a carnavalização e motins/montinhos são formas de desestabilizar, problematizar e reconfigurar o urbano e seus sujeitos. A praia da Estação, o Carnaval de rua de Belo Horizonte, a batalha do passinho, experiências estético-políticas que se dão a ver na capital mineira ali na vizinhança do Espanca!, são rearranjadas na composição coreográfica de “Parada Serpentina”, um manifesto político que tem o corpo como via e como destino.
Em “Maré”, Marcio Abreu ofereceu ao grupo mineiro um material caracterizado por uma textualidade performativa, em que as possibilidade de organização espetacular são múltiplas, numa tessitura de vozes, tempos e espaços capazes de explodir a percepção do leitor/espectador.
“Maré” é música. É fluxo. Rima. Melodia. Ação verbal. Rap. Pode ser pagode, quase bolero. É material textual de caráter performativo. As palavras são imagens. Vemos quando escutamos. Estouro. São várias vozes em uma fala. É ao mesmo tempo close e panorâmica. É narração, mas é tragédia. Familiar e social. Fato e ficção. Som no espaço. Estouro. É tempo expandido, espaço reduzido. Entre o privado e o público. O dentro e o fora da porta de casa. O caminho entre um ponto e outro. É Marcio Abreu, mas muito Espanca!. Um encontro entre o material dramatúrgico equivalente à potência para encená-los, criando, sem dúvidas, uma de suas obras mais violentamente poéticas, daquelas que espancam, mas não são mais tão doces assim.
BIBLIOGRAFIA:
LEPECKI, André. “Coreopolícia e Coreopolítica”. Revista Ilha, v13, n1, artigo 3. Santa Catarina, 2011.
FISCHER-LICHTE, Erika. “O real e a ficção no teatro”. Revista Sala Preta, v. 13, n2. São Paulo, 2013.
— por Marcos Antônio Alexandre* —
Crítica do espetáculo “Cachorro Enterrado Vivo”, de Daniela Pereira de Carvalho e Leonardo Fernandes.
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Três histórias, três vivências, três “mundos” paralelos… Três seres: um Cachorro, um Rapaz e o Dono do cachorro. Os três em um? Incompreensão dos seres humanos… Os sujeitos e as suas identidades, o “real” transborda no “ficcional”, memória e dor, subjetividades latentes…
“Cachorro Enterrado Vivo”, com Leonardo Fernandes. Fotos de Lia Soares.
Todos os questionamentos e as possíveis assertivas, anteriormente sinalizadas, são trazidos para cena na montagem “Cachorro enterrado vivo. O espetáculo estreou no dia 3 de abril de 2015 no Teatro João Ceschiatti, do Palácio das Artes, sob a direção de Marcelo Fonseca, com dramaturgia de Daniela Pereira de Carvalho e atuação de Leonardo Fernandes. Sabe-se que a dramaturgia tem, em uma notícia jornalística[1], o mote que levou a autora a escrever o texto especialmente para ser interpretado por Leonardo Fernandes, que, em seu primeiro solo como ator, conduz a plateia a experienciar sentimentos múltiplos: autoidentificação, purgação, asco, riso, choro, dor, reflexão.
Após a sua estreia, o ator levou o espetáculo para outros espaços, apresentando-o na “Mostra Tiradentes em Cena”, em maio; no “Festival de Inverno” de Ouro Preto; no “Projeto Ocupação Diálogos” na FUNARTE, em agosto; no Teatro Capucho em Vespasiano, em setembro; no “BH in Solos”, no Esquyna Espaço Coletivo Teatral, em outubro; e no “Encontro SESI de Artes Cênicas”, novembro em Araxá. Retomar os caminhos percorridos por Leonardo Fernandes até o presente momento serve-me como justificativa para que eu possa corroborar a relevância de seu trabalho, o potencial e a abrangência da obra que, aqui, busco comprovar.
Na página da rede social Facebook, “Espetáculo Cachorro Enterrado Vivo”, o artista descreve uma breve sinopse do espetáculo, a partir da qual são trazidos alguns questionamentos para discussão:
Até onde nos vemos de dentro pra fora? O que difere instinto e razão? Até onde nossa blindagem emocional não é subvertida e desorienta nossas escolhas? A memória não é uma especificidade humana – a noção de perda existe em várias espécies. Um cão e um homem que dividem uma vida dividem a mesma dor. “Cachorro Enterrado” Vivo é um texto baseado em fatos reais e reflete sobre os limites da crueldade humana.
Refletir sobre os limites da crueldade humana… Como?
A dramaturgia proposta é dividida em “três monólogos subsequentes que devem ser interpretados pelo mesmo ator” (indica uma rubrica da autora). Cada um desses monólogos tem uma voz que é personificada: a do Cachorro – composta por brados, grunhidos, lamentos –; que dá lugar à voz – histórias, subjetividades, memórias – do Rapaz; que, por sua vez, acaba sendo concretizada nas falas do Dono do Cachorro. Isso se dá a partir de um enredo aparentemente simples: um cão ladra/“fala” de sua situação de abandono depois que sua dona deixa a casa onde vivia “feliz” na sua companhia e de seu esposo (Paulo Vítor), que passa a odiá-lo por ter sido abandonado pela mulher, que deixa o lar sem maiores explicações, fazendo com que ele fosse obrigado a cuidar do cachorro de estimação (Paulo César) e que, por conseguinte, ele passa a julgar como o responsável pela separação. Por isso, o Marido contrata o Rapaz para dar fim ao animal, enterrando-o vivo.
No texto inicial da peça, enuncia-se a perspectiva do Cão, que denuncia a sua condição de maus tratos do dono, relevando um triângulo de afetos e desafetos e explicitando o porquê da rivalidade entre ele e o seu Dono:
São 250 milhões de células olfativas. A memória entra pelo nariz – junto com o oxigênio. O cheiro dos pés, das mãos, da parte entre as pernas dela… O que eu era capaz de enxergar nunca passou de uma mínima fração daquilo tudo o que eu podia sentir, pelo focinho, quando ela se aproximava. Está tudo ficando distante agora. Sumindo… Junto com ela que, simplesmente, desapareceu do mundo. […] Há cinco dias, ou cinquenta anos, que estou acorrentado aqui e ele só entra e sai pela porta da sala. Para me evitar, provavelmente… É… Eu não devia ter tentando pulverizar a panturrilha dele e rasgar em tirinhas o tendão! Não consegui me controlar – ele chegou perto demais. Ele tem aquele cheiro horrível! Ele tem aquela cara horrível! Ele costumava esfregar a cara horrível e o corpo fedido dele, nela – o que me deixava puto. Quando eu ia me deitar no colo dela, ela estava cheirando a ele. Porra! Esse idiota a contaminava. Foram quatro os ataques realmente graves que promovi contra ele – desde que ela se foi. Teve sangue em todos. Antes, eu só rangia os dentes. Ela me acalmava, me aquietava. Achava graça da minha embocadura. Mas agora, uma vez sozinhos por tanto tempo, eu e ele, nesse convívio de odores detestáveis, mandei ver, com toda força, minha mandíbula, na primeira vez, em seu antebraço. Em uma segunda ocasião, na mão dele. E, aí então, depois, nas costas, altura do rim. Agora, por último, na panturrilha – tentando chegar ao tendão para destroçá-lo e o aleijar. (CARVALHO, 2015, sp)
Por que e o que representa dar voz ao cachorro? Similitudes vividas pelo cão-homem e pelo homem-cão? Quais são os limiares de correspondências semânticas entre os seres “racionais” e “irracionais”? Quem é “irracional” nesta história? Vários outros questionamentos poderiam ser feitos como resposta a uma tentativa de leitura da dramaturgia proposta por Daniela Carvalho.
Ciente desta polifonia de ressignificações cênicas e diante das múltiplas possibilidades de repensar a peça e a sua versão espetacular, o “discurso” do cão me chama a atenção, pois parto do princípio de que o mesmo possa ser visto como uma alegoria social, a partir da qual são discutidas questões relacionadas à memória, ao sofrimento, às subjetividades dos sujeitos e, sobretudo, acerca de um tema presente em nossa sociedade e que vai ao encontro de minhas urgências pessoais enquanto sujeito – indivíduo social, professor, pesquisador –, a ideia de “refugo humano”. Por isso que as associações propostas pelo poema de Manuel Bandeira ainda se fazem latentes há mais de sessenta anos após a sua escrita. O “bicho homem” continua presente nos pátios, nas ruas dos grandes centros urbanos e em todos os espaços sociais.
O tempo passou, mas a enunciação é a mesma? Neste sentido, enterrar o cachorro vivo representa, também, “enterrar” – sepultar, omitir, esconder, destruir, invisibilizar – tudo aquilo (e aquele) que não “merece” ser visto a partir do olhar de parte da sociedade. Trata-se de um grupo visto como excedente, dispensável, como o Cachorro que, para o Dono, não tem mais nenhuma função, a não ser reforçar o sentimento de isolamento e solidão deixado pelo vazio que se formou em si com a partida da esposa; ou seja, a memória pessoal insiste em não cumprir com o rito mnemônico impossibilitando qualquer tipo de esquecimento. Zygmunt Bauman corrobora a ideia de uma população que não integra à ordem do dia e que é composta por sujeitos invisibilizados por distintas questões:
A “população excedente” é mais uma variedade de refugo humano. Ao contrário dos homini sacri, das “vidas indignas de serem vividas”, das vítimas dos projetos de construção da ordem, seus membros não são “alvos legítimos” excluídos da proteção da lei por ordem do soberano. São, em vez disso, “baixas colaterais”, não intencionais e não planejadas, do progresso econômico. (BAUMAN, 2005, p. 53)
Ou seja, a esses indivíduos não lhes são [foram] permitido gozar das benesses de uma sociedade tida como globalizada. Ratificando os seus argumentos, Bauman ainda acrescenta:
As pessoas supérfluas estão numa situação em que é impossível ganhar. Se tentam alinhar-se com as formas de vida de hoje louvadas, são logo acusadas de arrogância pecaminosa, falsas aparências e da desfaçatez de reclamarem prêmios imerecidos – senão de intenções criminosas. Caso se queixem abertamente e se recusem a honrar aquelas formas que podem ser saboreadas pelos ricos, mas que, para eles, os despossuídos, são mais como veneno, isso é visto de pronto como prova daquilo que a “opinião pública” (mais corretamente, seus porta-vozes eleitos ou auto-proclamados) [sic] “já tinha advertido! – que os supérfluos não são apenas um corpo estranho, mas um tumor canceroso que corrói os tecidos sociais saudáveis e inimigos jurados do “nosso modo de vida” e “daquilo que respeitamos” (BAUMAN, 2005, p. 55, grifos meus)
Nesta mesma linha, temos o testemunho do Rapaz que é contratado para dar cabo no Cachorro, enterrando-o vivo e, a partir dele, nos deparamos com outros conflitos: receber vinte e cinco reais para enterrar o “animal”:
Vinte reais paga o serviço? Eu respondi – Vinte e cinco. Vinte e cinco paga! E ele disse simplesmente – Pode ir abrindo a cova que eu vou lá pegar o bicho… […] E eu cavei o buraco. Então, ele voltou. Me entregou o cachorro pela coleira, me deu a grana, virou de costas e se mandou. Eu não entendi nada… Fiquei sem reação. É para enterrar o cachorro vivo, então? É isso? Porra, eu devia ter pedido umas cem pratas! Olha para esse bicho… Tá no osso. Deve estar com alguma doença e, ao invés de sacrificá-lo, o dono resolveu o problema me pagando vinte cinco reais por um enterro de corpo vivente… (CARVALHO, 2015, sp, itálicos da autora)
Enterrar o Cachorro vivo é a maneira que o marido, Paulo Vítor, encontra para vingar-se do “bicho” pelos ataques sofridos, mas, sobretudo, por ter dividido o coração de sua esposa com ele. Para o Rapaz, representa rememorar os momentos de felicidade que vivenciou com o seu cachorro Porshe, cão pretinho, pretinho como o carro de seus olhos. O ato de “enterrar” o animal aflora a memória e é leitmotiv para fazer reverberar as piores ações do “bicho homem”, desvelando a potência da imagem do refugo.
Eu gostava do meu cachorro. Ele era gordinho, limpinho… Não era, assim, um farrapo canino como você. Que tipo de animal você deve ser para merecer esse tratamento? Ou, então, que tipo de animal era aquele cara que cuidou de você como se fosse… Sei lá! Um pano de chão. O Porsche e eu, nós éramos assim… Muito ligados. Ele era meu companheiro! (CARVALHO, 2015, sp, grifos meus)
Os sentimentos evocados atravessam o espectador, que se sente tocado tanto pelas palavras do Rapaz quanto pela sina do Cachorro: “Você mal parece um ser da sua espécie. Que tipo de monstro é você, hein? E eu? Será que eu sou o tipo de monstro capaz de te enterrar vivo?” (idem). A situação de refugo, de rejeito, é ressignificada por meio das imagens e do discurso impresso que se potencializam cenicamente na interpretação do ator, Leonardo Fernandes. As vozes do Cachorro e do Rapaz abrem espaço para as vozes do Dono do Cachorro que vão completando as “lacunas” deixadas ao longo da dramaturgia. Exige-se do espectador uma postura atenta, um estar disposto a dar sentido a todo discurso verborrágico daquele homem – um sujeito de classe média, que em algum momento foi um marido atencioso e feliz com sua esposa e com o seu cachorro, mas que também acaba se transformando em “refugo humano”:
Você pode medir a distância através do espaço ou através do tempo. Quantos mais dias se passam, mais longe um do outro nós ficamos. E se ela entrar por essa porta agora e perceber que aquele filho da puta de quatro patas não está mais aqui? Será que vai virar de costas e sair correndo me amaldiçoando definitivamente? Se perguntar o que aconteceu com ele, o que eu vou dizer? Você não me deixou escolha, querida. Eu tinha que reagir de alguma maneira. Tinha que me vingar… Devido ao modo como a minha memória funciona, não consegui me apegar às boas lembranças que você – aparentemente – havia deixado para trás. Tudo o que ficava martelando na minha cabeça era essa final sem desfecho no qual fui abandonado sem qualquer informação. Ele me mordeu várias vezes, depois que você sumiu. O que, antes, era apenas uma ameaça – a vontade dele de me triturar – tornou-se real. Ele me culpava pelo seu desaparecimento – dava para ver isso naqueles olhos furiosos. Então… Eu mandei enterrá-lo vivo. Eu mandei enterrá-lo vivo. Paulo César. Paulo César… Eu mandei enterrá-lo vivo. Meu Deus, o que foi que eu fiz! Eu mandei enterrá-lo vivo! Eu paguei para que o enterrassem vivo… Se ela voltar, não vai mais poder me amar… (CARVALHO, 2015, sp, itálicos da autora)
Mais uma vez, o ato de enterrar se personifica como uma alegoria social, revelando a pisque deste sujeito: homem, animal, bicho-homem, homem-bicho, refugo de si e do Outro…
Voltando o olhar para a montagem, chama-me a atenção a qualidade do cenário e do figuro criados por Cícero Miranda. A riqueza de detalhes utilizada na concepção do cenário surpreende. O espectador é convidado a adentrar um espaço underground cheio de pequenos objetos cênicos – garrafas, ventilador velho, telefone quebrado, rádio, papéis espalhados pelo chão, pedaços de madeiras, tela de computador, molduras sem as pinturas, peneira, roda de carro, sucatas e quinquilharias de todas as espécies –, o chão coberto por pó de terra, uma pá etc. Esta ambiência também nos possibilita a leitura do refugo, do descarte. E é neste espaço com palco todo coberto, aos fundos, por uma tela (rede) de arame entrelaçado que o espetáculo vai sendo construído às vistas do espectador. Uma alusão à prisão, ao cárcere pessoal e simbólico? Assim, este espaço rico em detalhes se configura como o apartamento do dono do Cachorro, Paulo Vítor, como o canil de Paulo César, muito bem destacado e delineado no cenário por meio de um buraco feito na tela por onde o ator/personagem faz a transição do Cachorro para o Rapaz.
Vale a pena destacar que o cenário proposto potencializa também a ideia de uma dramaturgia do espaço para a configuração do texto espetacular. A peça estreia na Sala João Ceschiatti, palco que possui uma estrutura de semiarena e esta característica traz uma proximidade entre o ator e a plateia, contribuindo para que o público se sinta mais “dentro” da cena. Os detalhes tanto do cenário, quanto do desenho de luz (idealizados por Wladimir Medeiros), quanto da atuação do ator, podem ser mais delineados perante o olhar do espectador. Posso dizer que, de certa forma, estas nuanças também são mantidas nos outros espaços aos quais eu tive oportunidade de rever o trabalho. Se na FUNARTE – um espaço alternativo mais amplo –, o olhar do espectador teve que ser mais atento para recuperar e apreciar cada detalhe técnico; no Esquyna – por suas características físicas de uma caixa cênica menor e condensada –, a plateia se colocou ainda mais próxima do ator em cena. Esta relação de proximidade pode, em princípio, vir a possibilitar um maior envolvimento por parte do público. Não obstante, o que deve ser destacado é que o espectador não sai imune à dramaturgia do espaço de cada lugar de representação e isso só é viabilizado devido à atuação de Leonardo Fernandes, que surpreende o tempo todo com sua performance ao corporificar as três personagens-personas em cena, o Cachorro, o Rapaz e o Dono do Cachorro.
Diante do exposto, ressalto o excelente trabalho de Leonardo Fernandes. As partituras corporais e vocais do ator são utilizadas para composição cênica-visual visando diferenciar cada personagem [persona] de forma precisa. Logo no início do espetáculo, o espectador se depara com ator na “pele” do Cachorro. A gestualidade do ator – associada a uma maquiagem que destaca o rosto e os olhos do homem/cão e ao figurino composto por joelheiras e uma sunga em tom marrom “terra”, com uma tornozeleira que mantém a perna esquerda acorrentada – é bem demarcada, evidenciando particularidades que desvelam aos poucos as características do cão: grunhidos, tônus vocal, respiração entrecortada para demonstrar as distintas facetas do cão; do lamento, do choro, da agonia, do desprezo e da raiva sentida pelo Dono até a afecção que o leva ao estado de refugo. Ao mesmo tempo, o ator também trabalha com leves toques de humor ao compor a persona do Rapaz, que surge sem camisa, usando botas e dançando um hit dos anos 80. Vê-se em cena o uso de gestualidade mais rápida, um discurso ágil, verborrágico mesclado por uma linguagem inconclusa, revelando a pouca instrução e o lugar de enunciação deste sujeito pertencente à classe popular. E, por fim, o ator apresenta uma corporalidade mais tensa, com gestos mais desconexos, arrasta-se de uma perna (fruto dos vários ataques sofrido pelo Cachorro) e trabalha com um olhar “perdido” e, ao mesmo tempo, “mórbido”, demostrando certo caráter de bipolaridade que se casa perfeitamente com a persona do Dono do Cachorro.
Leonardo Fernandez com sua performance, quiçá, inaugura e evidencia uma interessante “tendência” que foi trazida para a cena teatral em Belo Horizonte, em 2015, e que diz respeito à relação entre o “real” e o “ficcional”. São urgências de vários coletivos que voltaram os seus olhares para a nosso cotidiano tendo como foco de análise todos os problemas sociopolíticos aos quais estamos sendo submetidos. O sujeito contemporâneo diante de tantos enfrentamentos não pode – ou pelo menos não deveria – passar ileso aos embates que vêm sendo produzidos por este “real”/“ficcional”. Diante de tudo isso, “Cachorro Enterrado Vivo” cumpre com o objetivo de trazer a reflexão para cena. Não há como sair ileso depois de assistir o espetáculo. Como sinalizado anteriormente, as análises podem ser distintas. Aqui, tratei da questão do “refugo humano” e indaguei sobre a minha leitura da peça baseada na assimilação e na aceitação de uma alegoria do sujeito contemporâneo, daquele que fecha os olhos para não ver quantos “cachorros” – leia-se crianças, mulheres, jovens, prostitutas, homossexuais etc. – têm sido enterrados vivos em nossa cidade, em nosso estado, em nossa nação. “Enterrar vivo”, esquecer, espancar, humilhar, invisibilizar, silenciar, subjugar, matar…
As perguntas e as afirmações continuam sendo ressignificadas e não se calam…
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
CARVALHO, Daniela Pereira de. Cachorro enterrado vivo. In: Ensaia: revista de dramaturgia, performance e escritas múltiplas. Edição Zero, junho 2015. Disponível em: http://www.revistaensaia.com/#!cachorro-enterrado-vivo/c11pc. Acesso: 18 dez. 15.
BANDEIRA, Manuel. O bicho. Disponível: http://www.jornaldepoesia.jor.br/manuelbandeira03.html.
[1] O ator informa que na página “Espetáculo Cachorro Enterrado Vivo”, no facebook, que “[o] “ponto de ignição” do texto do Espetáculo Cachorro Enterrado Vivo foi essa matéria Cachorro é resgatado após quase ser enterrado vivo pelo próprio dono” (disponível em http://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2014/04/cachorro-e-resgatado-apos-ser-enterrado-vivo-pelo-proprio-dono.html).
*Faculdade de Letras/UFMG – CNPq
– por Marcos Alexandre
Cadeira…
Cadeiras…
Cadeiras e mais cadeiras…
Um emaranhado de cadeiras…
Um cenário de cadeiras…
Dois atores, cadeiras…
Um casal de atores e cadeiras…
Ítalo Laureano e Rejane Faria, rodeado por cadeiras…
Esta é a cena com a qual nos deparamos, como espectadores, para assistir a Ignorância, o novo espetáculo do grupo Quatroloscinco – Teatro Comum[1], no Galpão 3 da Funarte – MG, e essa mesma cena/imagem se repete na sala do Teatro João Ceschiatti, do Palácio das Artes um mês depois da estreia oficial da montagem.
Já um pouco distanciado no tempo e no espaço, eis-me aqui sentado, na “cadeira” de minha sala, lugar onde estudo, reflito e produzo meus textos, e, a partir do qual, escrevo sobre Ignorância, este instigante novo texto dramático/espetacular do grupo Quatroloscinco, que estou tendo o privilégio de apresentar nestas linhas as minhas impressões.
Em primeiro lugar, devo agradecer a Marcos Coletta pelo convite e pela confiança que me foram depositados para deixar aqui impresso o meu olhar sobre o trabalho do coletivo que tanto admiro e a quem venho seguindo desde o seu surgimento. No primeiro momento, no espaço acadêmico, para, logo depois, ganhar os palcos da cidade, que os levou para outros estados e países apresentando suas montagens: É só uma formalidade (2009), trabalho gestado dentro do curso de teatro da UFMG, mas surgindo oficialmente, em 2008 como uma cena curta apresentada no Projeto Cenas Curtas do Galpão Cine-Horto; Nada Aconteceu (2010), que surge por meio de uma parceria com a Cia. Clara, com direção de Anderson Aníbal; Outro Lado (2011); Get Out! (2013), solo de Assis Benevenuto; e Humor (2014). Em segundo lugar, não posso deixar de parabenizar o grupo pelo esforço contínuo para realizar a publicação de suas peças[2] num contexto em que os editoriais brasileiros demonstram tão pouco interesse em investir em publicações teatrais, visto que a dramaturgia, quase sempre, não traz lucro para investidores e, muito menos, para as editoras.
Voltando o foco para o texto Ignorância, a dramaturgia de Assis Benevenuto e Marcos Coletta nos faz pensar em questões que estão eclodindo em nossa contemporaneidade: qual o lugar dos sujeitos em nossa sociedade? Como decodificar a “metáfora” da IGNORÂNCIA proposta? Como se entrecruzam os aspectos relacionados como o “real” e o “ficcional”? Quais as urgências que estão por detrás do subtexto da IGNORÂNCIA? As respostas a estas perguntas são trabalhadas no texto dramático – e, por sua vez, no espetáculo – em forma de provocações que propiciam que o leitor/espectador possa se ver representado por meio das cenas, estabelecendo as suas próprias reflexões.
Neste sentido, podemos afirmar que o texto dramático e a montagem realizada pelo Quatroloscinco abrem um leque de possibilidades de leituras. O texto está dividido em sete partes bem significativas: “As cadeiras”, grande mote do espetáculo e eixo norteador destas reflexões; “Negro amor”; “A reunião de pais”; “Os cientistas”; “A galeria de Arte”; “A fronteira” e “O homem da bola”. É interessante observar que estas partes – que também poderíamos nomear como “cenas”, “imagens”, “movimentos”, “percursos”, “quadros”, “[sub]atos” etc. –, em princípio, poderiam ser vistas como desconexas. No entanto, o que se nota é que o melhor do texto – característica que, na montagem, ainda se torna mais inerente – se “personifica” justamente nas conexões que o leitor/espectador precisa executar para estabelecer a tessitura dramatúrgico-cênica proposta por ambas as linguagens, ou seja, a dramatúrgica e a espetacular.
É a partir desta premissa que considero fundamental “ler” a peça em sincronia, e em sintonia, com a sua montagem; e este privilégio é o que me permite compreender como, neste trabalho do Quatroloscinco, o texto se enaltece com a proposta espetacular realizada pelos seus integrantes. Se Assis Benevenuto e Marcos Coletta, por meio de uma escrita a quatro mãos, dão vozes às latentes “ignorâncias” sociais às quais nos submetemos e das quais somos partícipes, seja agentes ou pacientes; Ítalo Laureano e Rejane Faria corporificam e presentificam[3] as inúmeras “cenas” em que momentos de “insensatez” são trazidos para o espaço cênico, remetendo-nos a algumas passagens de nonsense e que se aproximam da estética do absurdo.
Esta construção dramatúrgica e cênica aparece, a título de exemplo, na cena “A reunião de pais”, a partir da qual os atores simulam um jogo ágil e performativo em que várias “cadeiras” são ressignificadas, assumindo, assim, as supostas identidades de diferentes pais e mães. O que se vê e é reverberado no jogo cênico/textual é, de um lado – “cadeira” – a figura de um pai que conversa ao telefone, e, do outro, uma mãe (que se desdobra em várias outras mães) que participa de uma reunião escolar em que o tema é o comportamento do filho. Buscando ressignificar e decodificar as metáforas da[s] “cadeira[s]”, poderia argumentar que tudo parte da angústia de uma das mães que vê um desenho de seu filho e, nesta suposta reunião escolar, se dá conta de que não “conhece” o seu filho, que tem hábitos, no mínimo, estranhos e que beiram a psicopatia. De forma bem-humorada – lembremos que o humor é uma característica comum nos textos/montagens do Quatroloscinco –, o leitor/espectador vai se inteirando que há um desvio de caráter nas atitudes supostamente “inocentes” da[s] criança[s] ali presente[s] e tudo isso vai sendo desvelado com uma leve pitada de ironia que vai se delineando nos discursos pronunciados pelas personagens/“cadeiras”.
MÃE DE ÍCARO – Ícaro sempre foi um garoto tranquilo e normal. Somos uma família normal, linda, presente, não temos problema com álcool, doenças, essas coisas.
PSICOPEDAGOGA – Vocês pertencem a alguma religião?
MÃE DE ÍCARO – Não, quer dizer, não especificamente, mas isso não é um problema para nós. A gente convive com amigos de diversas religiões, que frequentam nossa casa, os filhos dos amigos… aqui mesmo na escola, que é uma escola…
PSICOPEDAGOGA – Católica.
MÃE DE ÍCARO – Católica. (Chora). Não sei por que Ícaro começou a fazer esses desenhos… (Olha para um desenho em suas mãos e chora de desespero)
PSICOPEDAGOGA – Calma, estamos aqui para conversar sobre isso, não é mesmo gente? É fato que esses desenhos têm assustado um pouco alguns de nós. Esse desenho do gato sacrificado?
MÃE DE ÍCARO – (Ela se assusta) Eu não sei o que dizer.
PSICOPEDAGOGA – Vocês têm animais em casa?
MÃE DE ÍCARO – O nosso gato de estimação desapareceu… Procuramos por toda a vizinhança. Pensamos em tudo… Gatos são animais de alma selvagem, talvez pudesse ter ido embora, ou um atropelamento… Nessa semana eu fui arrumar umas coisas na garagem encontrei o gato.
PSICOPEDAGOGA – Que bom!
MÃE DE ÍCARO – Ele estava morto. Será que esse desenho… Oh meu Deus, será que foi Ícaro que/
PSICOPEDAGOGA – Olha, senhora, crianças matam animais de estimação. Digo, acidentalmente, claro. Eu mesma quando era crian… Mas o que parece um tanto estranho são esses desenhos do Ícaro. Todos envolvem pedaços de corpo, ou tipos de carne, ou sangue… Ele desenha quase tudo com o lápis da cor vermelha, ou tons parecidos.
MÃE DE ÍCARO – Ele adora artes.
PSICOPEDAGOGA – A professora de artes elogiou bastante seu filho. Mas esses desenhos são da disciplina do ensino religioso.
MÃE DE FLÁVIO – Olhe para este.
PSICOPEDAGOGA – Sim. Uma criança bebendo um copo de leite tirado de uma vaca. No entanto, a cor do leite que sai das tetas da vaca é vermelha.
MÃE DE ÍCARO – Da mesma cor do líquido que está dentro do copo que a criança bebe!
PSICOPEDAGOGA – E esta vaca?
MÃE DE ÍCARO – O que tem? (Ela observa o desenho) Parece que falta uma perna nessa vaca!
Neste hipotético jogo de “troca de cadeiras” a partir do qual as várias mães passam a discutir a atitude o garoto Ícaro, são trazidas para a cena ações do cotidiano escolar que não encaixam com o modelo social pré-estabelecido. Como naquele jogo de retirar as “cadeiras”, vai sendo trazido à tona parte “obscura” daqueles sujeitos que preferem fazer vistas grossas às evidências que se personificam à sua frente: a mãe que não conhece o seu filho, os pais que não se importam com a educação dos filhos, pois têm outras prioridades para preencherem o seu cotidiano – trabalho, dinheiro, poder etc. – impossibilitando que voltem o olhar para a família; a escola que não consegue cumprir com o papel de “educar” e acaba sendo omissa, negligenciando o seu lugar de fala. IGNORÂNCIAS?…
Outro momento primoroso do texto/espetáculo se concretiza no quadro[4] “A galeria de Arte”. Mais uma vez, o grupo recorre ao uso do humor como estratégia de composição dramatúrgica e espetacular. Não obstante, o riso aqui é mais exacerbado. O leitor/plateia se delicia com o encontro de duas personagens representantes de duas classes sociais distintas e que acabam imprimindo as suas “origens” por meio dos discursos: “Ruídos de móveis que se arrastam pelo chão. Os atores manipulam cadeiras e transformam a cena em uma galeria de arte. Uma das cadeiras está em destaque. Duas pessoas que não se conhecem observam as obras expostas no espaço.” (BENEVENUTO, COLETTA, 2015, sp). Uma Artista e um Eletricista.
Ela é excêntrica, “antenada”, inteligente, viajada, escritora, fotógrafa, ativista, conhecedora de Arte e frequentadora de museus. Ele é simples, humilde, de pouca instrução, pinta como hobby e é a primeira vez que se atreve a entrar num museu, por acreditar que aquele lugar tem algo de “sagrado” que, em princípio, não condizia com a condição social. Por meio de um diálogo rápido e cheio de “desencontros discursivos”, a dramaturgia vai nos colocando diante de duas representações de mundo completamente antagônicas. Ela o depositário dos “saberes”, do “conhecimento”; Ele o prospecto da “ingenuidade”.
ARTISTA – Me desculpe, eu não queria te chatear! É que essa artista me inspira muito. E eu fico assim… empolgada!
ELETRICISTA – Você trabalha aqui?
ARTISTA – Não. Mas venho sempre, você já deve ter me visto nos corredores.
ELETRICISTA – Não. É a primeira vez que eu entro aqui.
ARTISTA – Sério? Que legal!
ELETRICISTA – É. Eu passo aqui em frente todos os dias e nunca entrei.
ARTISTA – E por quê?
ELETRICISTA – Por que eu trabalho no quarteirão de cima.
ARTISTA – Não. Porque nunca entrou?
ELETRICISTA – Não sei… Hoje eu saí mais cedo. E decidi entrar. Eu achava que pagava para entrar.
ARTISTA – E está gostando?
ELETRICISTA – É… É legal.
ARTISTA – Legal?! (para o público) Legal… Victoria Bergman, legal. Uma das artistas mais inventivas e provocativas da arte contemporânea nos últimos vinte anos, legal…
ELETRICISTA – (…)
ARTISTA – Eu estou pensando em fazer um mestrado sobre ela…
ELETRICISTA – Mestrado?
ARTISTA – Realizando um recorte temático de sua fase mais política, que começa com a série de não objetos pictóricos, em relação às tensões sociais ocorridas na Europa na última década, imigração, ataques terroristas, estas coisas.
ELETRICISTA – Eu não entendo o que a senhora diz… (BENEVENUTO, COLETTA, 2015, sp)
Neste jogo de um suposto diálogo diante de um objeto de arte, uma instalação digna de uma artista de renome internacional – uma cadeira calçada por uma folha de papel dobrada em várias partes –, os diálogos vão se estreitando e, por sua vez, as diferenças vão se aguçando e, neste atrito discursivo e irônico, o humor vai em um crescendo delineando a cena:
ARTISTA – Não você, exatamente, mas gente como você. (Para o público) É que é muito bom quando um lugar como esse, a princípio tão específico, para alguns até elitista, coisa que eu não concordo, não mesmo, é visitado por pessoas comuns, ordinárias, que nada têm a ver com a arte. É neste momento que este lugar mostra sua missão, a sua funcionalidade, afinal, para que serve a arte se não para interferir diretamente na vida das pessoas comuns, não é?
ELETRICISTA – E fica assim sempre vazio?
ARTISTA – Vazio?
ELETRICISTA – É… eu não contei nem 40 pessoas. Para um espaço tão grande… (BENEVENUTO, COLETTA, 2015, sp)
As palavras e os discursos da Artista que, em princípio podem ser associadas com elucubrações sobre o seu olhar diante do objeto obra de arte, “cadeira”, vão tomando ares de derrisão. “Isso não é uma cadeira”[5], o Eletricista não tem “propriedade intelectual” para vê-lo e, muito menos para apreender todo o discurso hermético e verborrágico que lhe é despejado:
ARTISTA – Você entende… Você é incapaz de diferenciar significado de significante, obra de objeto. Você não sabe o que é reprodução, mímesis, mediação simbólica. Arte não é matéria, arte é conceito e isso você nunca vai entender. E se você não consegue compreender isso, você nem deveria ter entrado nesse museu. Você jamais será um artista… Jamais. Artistas são pessoas diferenciadas, brilhantes, iluminadas, e você jamais será um. E se você não sair daqui agora, eu vou fazer um escândalo. Eu vou dizer que você queria roubar esta obra. Não, pior, vou dizer que você tentou me obrigar a sentar nesta obra para abusar sexualmente de mim em cima dela.
Ela se senta na obra e simula uma relação sexual com a cadeira, criando uma situação embaraçosa para todos os presentes até o limite do constrangimento.
ELETRICISTA – Senhora… Senhora… Senhora… (BENEVENUTO, COLETTA, 2015, sp)
Não posso deixar de destacar que o humor aqui busca reflexão e autocrítica: quantos de nós não nos prendemos a discursos construídos pelo Outro sem nenhum questionamento e saímos propagando, muitas vezes, opiniões equivocadas, sexistas, ingênuas, não fundamentadas e por aí vai… “A[O] artista está presente” já nos provocou e nos levou a muitas ponderações, com suas obras performáticas, Marina Abramovic[6]. O que significaria na nossa contemporaneidade “estar presente”? Em que sentido estamos e nos vemos presentes? Até que ponto se legitima e é legitimado o conhecimento? Quando ignora a reciprocidade de resposta do Outro? IGNORÂNCIA?!…
Dentro desta perspectiva, o riso do leitor e/ou da plateia vai sendo também ressignificando. Se, em princípio, durante a representação da peça, escutamos risadas tímidas que se tornam fortes até se converterem em gargalhadas da plateia; em seguida, escutamos risos esparsos, nervosos, incomodados… A metáfora da “ignorância” é decodificada.
Não posso deixar de retomar a importância do cenário, que é construído basicamente por cadeiras. Deparar-se com todos os tipos e formatos de “cadeiras” – novas, usadas, sem pés, semidestruídas – e poder observar a sua ressignificação no espaço cênico, de objeto a personagem; de signo a macrossigno: “sujeitos cadeira”, “identidades [em forma de] cadeiras, cadeiras memória, “cadeiras sociais”, “cadeiras da vida”. A “cadeira” potencializa as ações e as partituras dos atores, que, utilizando um figurino simples – jeans e camisa “casual” –, se integram ao cenário e demonstram a que vieram. Ambos os atores executam um ótimo trabalho em cena. Chamam-me a atenção o trabalho vocal e as partituras corporais, os momentos de entrada nas personagens “cadeira” e delas se distanciarem. Ítalo Laureano revela sua potência vocal na cena “Negro Amor”, momento em que canta a versão de Caetano Veloso e Péricles Cavalcanti de “It’s all over now, Baby Blue”, de Bob Dylan. Por sua vez, Rejane Faria emociona o público quando empresta a sua voz e talento interpretando um gospel – canção negro spiritual – norte-americano tradicional. O mais interessante é que esta música integra, no texto, o quadro “A fronteira”, momento em que os dois atores personificam duas personagens – um Homem Branco e uma Mulher Negra – que discutem sobre os seus “lugares no mundo”: “Ítalo deita todas as cadeiras no chão, como um grande mar de entulho (ou corpos). Ele se senta no fundo do palco lateralmente, Rejane se senta à frente, virada para o público.” O Homem Branco, por meio de um discurso interrogatório, demonstra à Mulher que Ela não cabe naquele “lugar”. As perguntas são excludentes, repletas de preconceitos e de juízo de valores conservadores, tudo para reafirmar que os espaços ali já estão delimitados, legitimados e têm donos. A dramaturgia assume um posicionamento étnico e de gênero quando os autores dão voz à personagem feminina, indicando, na rubrica do texto, que se trata de uma Mulher Negra.
MULHER NEGRA – Nós esperamos o pior.
Há séculos, nós sempre esperamos o pior.
Nós estamos à deriva.
Nós não podemos, não queremos esperar mais.
Nossos filhos estão mortos.
Nossos animais foram abatidos.
Nossas terras estão desertas.
Nossos recursos, nossos meios de sobrevivência. Não existe mais nada.
Mas ainda estamos vivos.
Nós ainda estamos vivos.
Nós sabemos de tanta coisa que vocês nem imaginam. Vocês ignoram.
Atrás de nós existem milênios.
A memória… A memória dói, mas ensina.
E eis-nos aqui de novo…
As coisas mudam, e estamos aqui outra vez.
Passivos como os espelhos, no tear da nossa existência.
O nosso amanhecer, a nossa perseverança é como a erva daninha que lentamente desponta na pedra.
A dor que mora em mim, é a que vejo no corpo dos outros.
Zeca, Ernesto, Calembera, Silva, Chimutengue, Dunduma, Zuzé, Tafari, Juana, Arlindo, Naguimba, os Tavares, os Muteias…
Existe um mar cheio de corpos.
Você tem medo de nós?
Vocês têm medo de nós?
Steal Away.
Steal Away.
Steal Away to Jesus.
Steal Away.
Steal Away home.
I ain’t got long to stay here.
My lord, he calls me.
He calls me by the thunder.
The trumpet sounds within my soul.
I ain’t got long to stay here. (BENEVENUTO, COLETTA, 2015, sp)
Memórias e identidades são recuperadas no discurso da personagem/atriz – Mulher Negra/Rejane Faria (atriz e negra), demonstrando a preocupação dos dramaturgos e do grupo com as questões sociopolíticas. Assim, mais uma vez, os presentes são convocados para colocar as suas experiências pessoais e coletivas em jogo. O “real” e o “ficcional” se entrecruzam, ou seja, a ficção invade e interage com o factual…
Ao final do texto/espetáculo o ator/personagem, Ítalo Laureano, indaga: “Foi difícil chegar até aqui?”
Um longo black out.
O espetáculo se encerra, mas a dramaturgia se propaga… Todos são convidados a deixarem as suas “cadeiras” para tomar os seus destinos: ir para casa ou para onde quer que seja. A ideia que fica é que cada um possa refletir sobre como o texto/espetáculo chegou para…
Como para mim, seguindo e corroborando os argumentos de Patrice Pavis, texto e montagem são nada mais que linguagens que integram o texto espetacular, daqui, de minha “cadeira”, só posso ratificar a qualidade do trabalho e convidar o leitor a chegar da forma mais profícua que lhe for conveniente – reflexiva, mas também prazerosa – a esta nova criação do Quatroloscinco – Teatro Comum…
[1] Coletivo formado por Assis Benevenuto, Ítalo Laureano, Marcos Coletta, Rejane Faria e Maria Mourão. Mais informações sobre o grupo estão disponível no site http://www.quatroloscinco.com/.
[2] Há que se destacar que as peças É só uma formalidade, Get out! e Humor já foram, anteriormente, editadas pelo grupo.
[3] No sentido de “presentação”, aqui entendido, na linguagem da performance, como um processo em que o mote criativo dos performers se dá por meio da manifestação de suas subjetividades em cena, em tempo real. Trata-se da construção de personas, e não de personagens, já que estes estão circunscritos no tempo-espaço da ficção.
[4] Proponho, aqui, o uso deste vocábulo “quadro” para fazer alusão à cena/ato representada[o].
[5] Não posso deixar de associar tudo isso com a série de pinturas do belga René Magritte (1898-1967) intitulada A Traição das Imagens (La Trahison des Images), fazendo menção a seu trabalho mais famoso, Isto não é um Cachimbo (Ceci n’est pas une Pipe), que causou tanta polêmica devido a um olhar de um aparente nonsense: vê-se um cachimbo e se afirma que o que ali se vê não se trata de um cachimbo.
[6] Uma das influências mais marcantes e polêmicas quando tratamos das artes performáticas. Vale a pena conferi o documentário da artista/perfomer disponível em https://www.youtube.com/watch?v=6FOfFW7AjLc (acessado em 11/12/15).
— por Luciana Romagnolli —
Crítica da peça “Ignorância”, do grupo Quatroloscinco Teatro do Comum (Belo Horizonte/MG).
Em “Ignorância”, o Quatroloscinco Teatro do Comum coloca em questão as falhas de uma humanidade que se concebe como racional, civilizada e evoluída. O objeto cadeira surge como síntese simbólica que permite uma série de analogias a respeito dos modos como nos apropriamos do mundo, apontando para um processo de desenvolvimento que tem sua faceta utilitária e democrática, mas também persegue privilégios e distinções que produzem uma hierarquização entre sujeitos, compondo uma elite econômica, intelectual e/ou cultural.
Fotos de Felipe Messias e Guto Muniz.
A cadeira nos proporciona desde o elevar de nossos traseiros do chão, distinguindo-nos dos animais irracionais, à ostentação de adornos em ouro ou design exclusivo a preços proibitivos, distinguindo-nos de outras classes de seres humanos e justificando a segregação por um sentido a-histórico de meritocracia. Além, é claro, da cadeira sem assento: herança duchampiana e magritteana de uma arte conceitual e autorreflexiva acondicionada em museus turísticos ou vazios, a indagar sobre a função da arte na sociedade contemporânea.
Um solo da atriz Rejane Faria inicia o espetáculo trazendo a imagem da cadeira e suas possíveis implicações num discurso modulado pela ironia como recurso crítico. O texto a todo tempo refere-se a um “você” (exemplo: “você fica ali, no escuro”), sujeito indeterminado que pode designar tanto a própria mulher que fala quanto o seu interlocutor – no primeiro caso, transformando o “eu” dela em “outro”. Eis um jogo linguístico que torna mais complexas as relações entre os sujeitos ficcionais e reais envolvidos na apresentação. Quando o grupo decide tratar da ignorância humana, sobre quem fala? Ignorante é sempre outro?
A meu ver, esta indagação trespassa o espetáculo, escrito e dirigido por Marcos Coletta e Assis Benevenuto, e torna-se mais nítida quando observamos as escolhas de registro de atuação feitas a cada cena. À ironia da primeira, segue-se o tom farsesco das representações de mães e pais na reunião escolar. Com rigor e dinâmica na execução, Rejane e Ítalo revezam-se nas cadeiras dando corpo a seis personagens envolvidos em uma discussão sobre o comportamento de um aluno de sete anos, na qual subjazem questões relativas a moralismo, religião, sexo, educação, família e alteridade. A cena é construída para que se ria dessas figuras, expostas no que têm de patético. Meu questionamento é se a opção por uma atuação que mais cita essas personagens do que de fato as representa, e com tratamento farsesco, as distancia dos atores e dos espectadores, de modo que as olhemos de cima. Seriam “o outro”, a quem se deve criticar, ou é possível a identificação que provoque a autocrítica?
Os contornos dessa escolha ficam mais delineados quando se contrastam ao registro de atuação na cena que alude à imigração. Nesta, Rejane interpreta com carga dramática e gravidade uma mulher refugiada. A ironia já não cabe, sentimos o drama dela e associamos algumas das frases ao crime ambiental na cidade de Mariana (o real atravessa os sentidos previstos na escrita). A identificação, isto é, a projeção do eu do espectador nos sentimentos da personagem, é possível novamente.
A cena-esfinge, a meu ver, é a que contrapõe dois supostos tipos de ignorância no interior de um museu, esse espaço de culto à arte. A ignorância no sentido mais cru e ingênuo, do homem comum, que não detém as informações sobre algo, é contraposta à ignorância envernizada de quem se arroga muito saber. Rejane e Ítalo agora representam uma artista conceitual e um prestador de serviços que se encontram na primeira ida dele a um museu. Me parece haver uma escolha dramatúrgica que desestabiliza essa contradição ao tornar mais empático e cômico o homem que desconhece quase completamente o mundo da arte, direcionando a crítica à arrogância teórica da mulher artista, tecendo, assim, julgamentos sobre os personagens na cena do museu. Essa oposição perde complexidade com o tratamento desigual, ou seja, com a tomada de posição sobre um dos lados, porque endossa um discurso de descrédito em relação ao saber, ao pensamento, que num contexto de empobrecimento educacional como o do nosso país pode recair em um elogio à ignorância. Ao menos foi a sensação deixada pela interação palco e plateia nas duas apresentações a que assisti.
De que estratégias a dramaturgia poderia dispor para que a crítica, nesta cena, recaísse sobre a arrogância da artista e não sobre o pensamento sobre arte? – se é que para o grupo essa distinção (que me parece essencial) faz sentido, é claro. Ao trabalhar com dois extremos, a cena tende também a subestimar o cidadão sem experiência de espectador como inábil para operações sensíveis e simbólicas. Creio que tanto o hermetismo quanto o subestimar do espectador são duas faces de um mesmo problema na relação da arte com o cidadão. Além disso, não há dúvida de que os ready-made de Duchamp inauguraram um território incerto e instável para a arte; meio século depois, ainda estamos com Ferreira Gullar questionando se seus desdobramentos são ou não arte? É preciso cuidado para, ao criticar formas vazias de discurso conceitual sobre arte, não rechaçar, junto, a própria reflexão sobre arte.
Tantas perguntas nesta crítica são, a meu modo, uma admissão de ignorância. Por vezes, é este o lugar em que a arte nos coloca, o de incerteza, o de desconforto com as conclusões previsíveis, o de indagação. Não se trata de um julgamento da obra em si, mas da problematização a partir de uma das possibilidades de relação que ela oferta a seus espectadores. A ignorância diz do incivilizado, do impensado e do violento em nós, por seu viés negativo. Comenta uma sociedade em que a idade das trevas não se dissocia tão facilmente da idade da luz. Porém, também é um estado socrático de recusa à presunção do saber, uma postura de descoberta perante um mundo que não se domina. Na potência dessa ambiguidade, disputam o gesto de apontar e o gesto de reconhecer. Ao espectador, cabe, mais do que a identificação e a reiteração do/com o que vê, um impulso à reflexão e a um posicionamento próprio.
*Espetáculo visto em duas ocasiões, no dia 29 de outubro de 2015, na Funarte-MG, e no dia 13 de novembro de 2015, no Teatro João Ceschiatti.
— por Julia Guimarães —
Crítica das missas patólicas do bufão Leo Bassi (Madri, Espanha)
Na última crítica que escrevi para o HdC, me perguntava sobre como analisar acontecimentos cênicos que estariam no meio do caminho entre uma prática artística e uma atividade social. A pergunta parece servir para uma série de criações contemporâneas que se propõem a “importar” dispositivos presentes na sociedade para o contexto teatral.
Operação visível na já citada performance-palestra da croata Vlatka Horvat ou nos espetáculos participativos do catalão Roger Bernat, é também ela que aparece nas entrelinhas do projeto mais recente do bufão italiano-espanhol Leo Bassi. Presença constante nos festivais cênicos pelo mundo (em Belo Horizonte, se apresentou no Festival Mundial de Circo em 2001 e no Galpão Cine Horto em 2002), Bassi criou, há três anos, uma ‘religião’ própria, o Patolicismo. Desde então, se dedica a celebrar casamentos e missas dominicais em sua Igreja Patólica, que ganha esse nome por substituir a adoração a Deus pelo louvor aos banalíssimos patinhos amarelos de borracha usados para decorar banheiras.
Situada em Lavapiés, emblemático bairro da cultura dissidente de Madri, a Igreja Patólica de Leo Bassi é herdeira dos valores iluministas, defensora do ateísmo e da dimensão sagrada do riso. Embora a teatralidade barroca que adorne a capela seja um ponto comum com o catolicismo, os “santos” presentes no altar não deixam dúvida quanto ao projeto político-artístico do espaço: seus ícones são pessoas que, na visão de Bassi, colaboraram para a humanidade, como Chaplin, Voltaire, Gandhi, Nietzsche, Mae West.
A crítica às igrejas, em especial à Católica, é elemento que acompanha a trajetória do bufão, expoente da sexta geração de uma família de palhaços. Por conta dela, Leo Bassi já foi alvo de polêmicas, agressões, boicotes e tentativa de um atentado terrorista por parte de religiosos fundamentalistas.
Sobre o assunto, já havia criado o espetáculo “A Revelação” (2005), no qual criticava religiões monoteístas. Contudo, o projeto da Igreja Patólica sinaliza um caminho em que os hibridismos de linguagem projetam novas potencialidades críticas.
Nesse contexto, gostaria de retomar a pergunta que abre o texto: como analisar um espetáculo que é também uma missa? De que maneira a importação desse dispositivo interfere na percepção do público e projeta uma dimensão crítica? São perguntas com as quais pretendo fazer dialogar minha própria experiência de ter frequentado duas missas dominicais.
Em primeiro lugar, há um fator que talvez distinga a atividade de outros trabalhos cênicos: o projeto de Leo Bassi pressupõe uma dinâmica de continuidade. Trata-se de um espaço aberto à visitação periódica, no qual – assim como uma missa – embora haja repetição do rito, há um novo assunto a cada semana. Até a data, foram realizadas 113 missas patólicas.
No formato explorado por Bassi, a primeira parte da missa dialoga com a trajetória dos homenageados e a segunda aborda temas atuais. Na missa realizada em 6/12, por exemplo, o feriado nacionalmente celebrado na Espanha dedicado à Imaculada Conceição (e também em Belo Horizonte) é desconstruído para atentar-nos aos valores presentes em suas entrelinhas: exaltação à “pureza” da mulher, o ato sexual como sacrifício e a condenação do prazer.
Em contraposição a esse modelo católico, Bassi homenageou, na mesma missa, a escritora francesa Amandine Aurore Lucile Dupin, que viveu a Paris do século XIX e assinava suas obras com pseudônimo masculino George Sand, como ficou conhecida. Considerada uma das percussoras do feminismo, gostava de usar trajes masculinos pouco habituais para a época e, segundo conta Bassi, colecionou amantes famosos, como Chopin, Liszt e Victor Hugo.
Nesse contexto, a possibilidade de frequentar semanalmente a ‘igreja’ parece funcionar tanto como ação direta, mas também como projeção simbólica. Se, de um lado, privilegia um devir comunitário de pessoas que se encontram em torno da exaltação do espírito crítico-cômico-humanista, por outro, se oferece como contraponto ao fortalecimento da intolerância e dos conservadorismos verificados nos últimos anos em escala mundial.
Do ponto de vista simbólico, a importação do dispositivo-missa dá visibilidade a uma operação simples, porém polêmica: se durante tantos séculos a reunião de pessoas em torno da transmissão cristã esteve presente como um dos principais pilares das sociedades ocidentais, por que não valer-se de estrutura semelhante para gerar a defesa de valores muitas vezes condenados/sufocados por essa mesma igreja?
Por outro lado, a proposta de Leo Bassi opera sob uma teatralidade discursiva, racionalista e ensaística que parece muito pertinente como estratégia artístico-ativista em um momento no qual a partilha de informações e reflexões em um contexto de presença parece ser resposta potente à urgência dos acontecimentos atuais.
Sobre esse aspecto, é curioso observar inclusive que o projeto artístico do bufão o desloca, de certa forma, da teatralidade observada em espetáculos anteriores, como os trabalhos aportados em Belo Horizonte. Neles, o caráter anárquico de Leo Bassi e a provocação sensorial do público, no intuito de ativar experiências como medo, crueldade e catarse, configuravam-se como aspecto dominante, assim como o privilégio da comicidade.
Já no projeto atual, o viés do humor parece transferir-se para o espaço em si da igreja, ou para a ideia mesma de uma celebração “patólica”, enquanto as palavras de Bassi operam em um sentido crítico mais sóbrio, o que novamente pode ser entendido como uma teatralidade que deseja afirmar-se numa lógica de ação mais direta. No limite, o projeto patólico acentua a liberdade radical do bufão, a quem é permitido tudo dizer e fazer.
Daí surgem outras perguntas: se, afinal, o objetivo das missas é fomentar esse espírito crítico-humanitário a um coletivo de espectadores que, possivelmente, já trazem consigo tal perspectiva, haveria então uma efetiva potencialidade política nesse formato? Ou ainda, de que maneira é possível aproveitar-se da estrutura da missa sem importar também o viés doutrinário?
É aí que parece entrar novamente a dimensão da experiência. Há uma transformação que diz respeito à performatividade do acontecimento ‘missa patólica’. Que está relacionada ao fato de existir um espaço aberto – ainda que pequeno e talvez com pouca visibilidade no contexto geral da cidade – onde se pode, a cada domingo, experienciar a reafirmação pública e presencial de determinados valores. Nesse sentido, a importação do dispositivo missa revela a potencialidade contida na ação de “escutar juntos”, em um sentido comunitário de reconhecimento mútuo.
Talvez seja esse o potencial político de operar a crítica a uma instituição através da importação de sua estrutura. E ainda que junto com o dispositivo surja também a relação de poder característica da igreja – ‘padre’ no plano alto, detentor único do discurso – Bassi explora alguns recursos que colaboram para desconstruir a perspectiva doutrinária.
Uma de suas primeiras afirmações ao iniciar as missas, por exemplo, é de que ficaria contente se as pessoas saíssem dali criticando o que acabaram de ouvir. Nesse sentido o humor, embora presente numa escala menor que em trabalhos anteriores, é outro mecanismo que colabora para subverter tais representações. Durante a missa, Bassi põe em prática a clássica premissa clownesca de cair no ridículo e perder a dignidade em público: na sua igreja, o ‘nome-do-pai’ transforma-se no gesto coletivo de imitar um pato e seu característico ‘quá-quá-quá’.
Além disso, ao que parece, a hibridez do formato também favorece uma desestabilização perceptiva muito fértil para estranharmos as estruturas que nos cercam, na missa e fora dela. Dessa forma, o dispositivo cênico opera politicamente ao colocar o público nesses espaços fronteiriços tão explorados pela arte contemporânea, que, no limite, tangenciam as reiteradas imbricações entre arte e vida.
Assim, o trabalho aponta para uma perspectiva da teatralidade como campo expandido. Pois tanto contribui para ampliar o horizonte da própria linguagem cênica quanto faz dialogar a noção de teatralidade com outras atividades da esfera social.
— por Daniel Toledo —
Crítica do espetáculo Cubalândia, do grupo Teatro El Cervo Encantado (Cuba)
Conforme o próprio nome já sugere, o espetáculo Cubalândia, realizado pelo grupo cubano Teatro El Cervo Encantado, apresenta aos espectadores um curioso programa de turismo na terra de Fidel , chamando atenção às contradições de um país que, mesmo apontado por muitos como o último reduto anti-capitalista do mundo, progressivamente se converte em uma atraente mercadoria a ser consumida. Temos acesso, então, por meio da Cubalandia Excursiones, a uma nação gradativamente iniciada ao que se costuma chamar de ideologia liberal, testemunhando, a esse respeito, a disseminação de estratégias e práticas relacionadas ao empreendedorismo e à ampliação de supostos mercados consumidores.
É justamente como potenciais consumidores, aliás, que somos tratados ao longo de todo o espetáculo. Recebidos pela hiperativa e hipermaquiada agente turística Yara La China, conhecemos um amplo programa de turismo que envolve diferentes partes da ilha. Habana, Varadero, Viñales, Trinidad y Santiago de Cuba são alguns dos destinos oferecidos aos espectadores no decorrer de uma encenação bastante despojada, na qual as luzes da platéia estão permanentemente acesas e a cenografia – mínima – é armada diante do público.
Conduzida por uma profissional extremamente liberal que, sem qualquer tipo de pudor, coloca à venda o próprio país, tal qual suas paisagens e sua história peculiar, Cubalândia destaca o caráter predatório que recorrentemente caracteriza o turismo abaixo da linha do Equador. Tal predação, conforme percebemos no decorrer da montagem, estende-se desde o meio ambiente da ilha até a própria tradição cultural cubana, ali condensada em algumas faixas de reggaeton “tipo-exportação” que nossa entusiasmada anfitriã não se cansa de dançar, em breves interlúdios que separam as negociações com o público.
Aos poucos, no entanto, revela-se certa precariedade do programa oferecido ao público, ao mesmo tempo em que se reforça o lema “fazemos qualquer negócio” que parece lhe mover. É aí que Yara dá início a um quadro composto por negociações durante as quais sempre ressalta aos clientes a ideia de recuperar o dinheiro investido na viagem.
Percebemos, então, que, independentemente do destino, na Cubalândia Excursiones o turista é sempre tratado como empreendedor e a viagem, como investimento. E entre as táticas de capitalização recomendadas ao público, vale ressaltar, figuram a extração ilegal de minerais preciosos, corais raros e outros patrimônios do país, instantaneamente submetido, então, a ordem capitalista e exploradora que rege boa parte do mundo.
Considerando especificamente a sessão que gerou essa crítica, vale ressalvar que a intermediação das legendas durante as interações entre atriz e público parece consistir um desafio à apresentação da obra em países de língua não-espanhola, como o Brasil. Por conta dessa intermediação quase sempre necessária, comprometeu-se, em alguns momentos, a acelerada dinâmica imprimida em cena pela atriz, provocando certo desgaste em relação à repetição que caracteriza a estrutura dramatúrgica da peça.
Elemento central de uma obra na qual a convivialidade entre a personagem e o público constitui-se como um dos pilares da encenação, a personagem se mostra, logo de início, como uma carismática e confiante vendedora. Capaz de cativar a plateia ainda na entrada do teatro, ela rapidamente deixa ver o despojamento, a irreverência e a ironia que, entre outras qualidades, permeiam o trabalho. Como numa típica obra de Brecht, é ao público que Yara se dirige durante boa parte da peça, sendo brevemente interrompida, em algumas ocasiões, por chamadas telefônicas vindas de supostos colaboradores.
É durante uma dessas ligações, aliás, que o público toma consciência de que os pacotes turísticos oferecidos podem se mostrar não somente nocivo ao país, mas também aos próprios turistas, e a festiva fachada inicialmente criada pela personagem finalmente se esvai. Anunciada aos espectadores desde o início da obra, as contraditórias ofertas da Cubalandia Excursiones precisam, então, ser reconhecidas pela própria vendedora, gerando um saudável desvio em relação ao tom leve, cúmplice e bem-humorado que permeia o trabalho.
(Texto escrito no âmbito da II Bienal Internacional de Teatro da USP. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Críticos para a cobertura do festival, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.)
— por Luciana Romagnolli —
Crítica de “Notas de Cocina”, do grupo Teatro do Embuste (Colômbia).
No acúmulo das cenas de “Notas da Cocina”, o grupo colombiano Teatro do Embuste segue linhas do texto do dramaturgo argentino Rodrigo García para percorrer alguns dos desvios do desejo numa sociedade de capitalismo tardio, cujo imperativo consumista, em tensão com a extrema desigualdade econômica, produz aspirações de ostentação para distrair do vazio da experiência cotidiana. Ícones mais ou menos decadentes dessa high society, como Eike Batista ou o restaurante Fasano, apontam para um modo de vida reconhecível no imaginário do brasileiro, arrolados num discurso cênico modalizado pelo cinismo.
A atitude de desprezo pelas convenções sociais e morais gera uma sequência desconcertante logo de início: a mãe que, para proteger a filha da mediocridade padronizadora do sistema de ensino, embebeda-a antes de ir à escola. A presença de uma criança como rastro do real em cena tensiona ainda mais uma construção ficcional que, em si, já é conflituosa pelo choque entre a razão crítica e o despautério. Esse impasse abre uma primeira indagação possível de ser formulada a partir do trabalho: qual a potência política do cinismo como crítica social?
Esta pergunta se reforça no contexto em que o espetáculo é apresentado no Brasil, integrando a programação da II Bienal Internacional de Teatro da USP, cuja curadoria propõe um olhar para dramaturgias transgressoras sob o mote “A Esquerda do Sol: poéticas e políticas Latino-Americanas”. E a ela não se pretende, nesta crítica, dar uma resposta conclusiva, senão ensaiar alguns apontamentos.
O cinismo seria uma distorção estilística correspondente, na linguagem, ao diagnóstico de uma distorção na forma de vida contemporânea em relação às expectativas sustentadas pelas normas sociais. Entre as muitas reflexões apresentadas por Vladmir Safatle no livro “Cinismo e Falência da Crítica”, consta a ideia de que o padrão de racionalidade de nossa sociedade, no atual estágio do capitalismo, seria o do cinismo. O modo cínico de operação estaria relacionado a uma sociedade em processo de “crise de legitimação”. “Para o cínico, não é apenas racional ser cínico, só é possível ser racional sendo cínico”, diz. Um ponto interessante da argumentação do autor é que, na chave cínica, não só o sistema de lei, mas também a própria transgressão, são anunciados como normativos.
Pensando isso em relação a “Notas de Cocina”, interessa observar as transgressões àquilo que se estaria criticando à primeira vista. Tal como o disparatado embebedar da criança contra o sistema de ensino, há o casal que desafia os salamaleques gastronômicos de um restaurante de luxo comendo, enquanto bebe a champagne mais cara da casa, uma porção de batatas fritas trazidas de algum boteco. Está clara a provocação contra ambições sociais que são como balões de ar, invólucros de pouco ou nada.
Então as transgressões recaem em outro extremo da estupidez (pelo vazio) da conduta humana. O cinismo seria esse lugar da falência da crítica? O espetáculo aponta para o insustentável desses desejos fúteis, debocha deles; ao mesmo tempo em que os absorve na ironia sobre a indignação, talvez ela mesma um modo de satisfação das angústias derivadas da falta de autenticidade, significado ou experiência que legitime nossos modos de viver.
O comercial da marca de jeans que se apropria de imagens e discursos de protesto para vender seu produto vem atestar que nada sobra como potência crítica. É uma posição indubitavelmente defensável, embora atinja o solo brasileiro justo no momento em que, ante uma hipocrisia generalizada, a potência crítica apareça rediviva pela força da mobilização política estudantil. Tempo e geografia estão sempre a interferir nos sentidos e afetos produzidos por um acontecimento teatral.
Há outro desdobramento para essa discussão, que surge da reflexão à luz da obra de Rodrigo García. Longe de querer atar um espetáculo ao texto do qual partiu, cabe pensar o que distintas escolhas no modo de apropriação geram em termos de efeito.
Em peças como “Gólgota Picnic”, apresentada no Brasil em ocasião do FIT-BH 2012 e da MITsp 2014, García concebe dramaturgias transgressoras dispostas a deslocar o espectador de sua zona de conforto e criar rupturas na percepção, desestabilizando sentidos, provocando reações físicas, sensoriais, emocionais, intelectuais. Isso se constrói numa intrincada rede de imagens e discursos que não convergem para um ponto pacífico, antes criam nódoas, furos, abalos na experiência de quem está na plateia e precisa redescobrir os modos de se relacionar com o que o palco lhe oferece. Determinante, para isso, tanto quanto essa forma polissêmica de tensão entre linguagens, é a postura dos performers, numa espécie de distância crítica em relação aos conteúdos expressos e ao público.
A criação do Teatro do Embuste dispensa o maior investimento em uma camada imagética e recorta o texto, concentrando a dramaturgia em cenas que apresentam situações de conflito. Estas são representadas pelos atores com um reforço na composição de personagens, o que se vê pelos figurinos, registros vocais e virtudes de interpretação distintas da fluidez performativa de encenações de García.
A opção do grupo colombiano é por um tratamento mais dramático, ainda que em sua forma expandida e fraturada, afinal, estão em cena elementos de uma gramática teatral contemporânea, como o vídeo e o skype, a irrupção do real nas participações da criança e de um cachorro (notadamente bem adestrado) e o trânsito dos espectadores por lugares de figurante ou testemunha. Disso resulta, talvez, uma postura menos transgressora, que, se não fura o tecido social do qual debocha, a seu modo esgarça-o, cria dobras, enquanto busca a adesão do público por meio da identificação, do gesto relacional e do humor.
(Texto escrito no âmbito da II Bienal Internacional de Teatro da USP. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Críticos para a cobertura do festival, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.)
— por Daniel Toledo —
Crítica do espetáculo “Anatomia do Fauno”, do Teatro da Pomba Gira (São Paulo)
Parece importante despir-se de eventuais preconceitos e julgamentos morais para assistir ao espetáculo Anatomia do Fauno, trabalho realizado pelo coletivo Teatro da Pomba Gira, de São Paulo, que traz como importante elemento inspirador o desregramento que permeia a vida e a obra do “mal-comportado” poeta francês Artur Rimbaud (1854-1891). Dedicada a reunir e converter em cena diferentes fisionomias do homoerotismo, a montagem praticamente dispensa a palavra e encontra na linguagem visual da performance o seu esteio, constituindo-se a partir de uma série de quadros ao mesmo tempo independentes e articulados, sobretudo quando consideramos o universo temático que igualmente os envolve.
Conduzida por mais de uma dezena de atores, a peça se insere em um amplo conjunto de espetáculos recentes que recusam moralismos sobre corpo e sexualidade, articulando-se em certo sentido, como uma resposta artística ao crescimento do conservadorismo no cenário sócio-político brasileiro. Em Anatomia do Fauno, no entanto, o que se experimenta é uma improvável combinação entre atmosferas míticas, sem tempo ou lugar, das quais o fauno mencionado no título rapidamente se apresenta como símbolo central e um dos eixos da peça, e contornos bastante concretos e essencialmente contemporâneos, reforçados, por exemplo, pelo uso de aparelhos e aplicativos eletrônicos em determinados momentos da encenação.
Imersos, logo de início, em uma espécie de “açougue-underground”, assistimos à chegada do fauno – meio homem, meio bicho – a uma cidade povoada por numerosos corpos masculinos. Somos convocados, então, a reconhecer em nós mesmos certa curiosidade sobre o corpo do outro, assim como sobre as possibilidades de encontro e troca entre esses corpos. Testemunhamos, então, a sucessivos embates que de um modo geral remetem a paixões intensas, violentas e fugazes, traduzidas em vigorosas relações de atração e repulsa estabelecidas entre os corpos que se movem diante de nós.
Desprovidos de personagens ou ainda de uma narrativa a ser contada, tais corpos se alinham em um estado performático e pouco humanizado, aparentemente mais propício a tensões do que propriamente a afetos – ainda que as fronteiras entre tais noções muitas vezes se borrem, claro. E mesmo que boa parte dessas acontecimentos culminem em encontros entre dois ou mais performers, o que se tem ali, ao menos num primeiro momento, são corpos autocentrados e guiados sobretudo pelos próprios desejos, mostrando-se pouco interessados na verticalização das relações estabelecidas com os outros corpos que encontram em cena.
Seja, portanto, a partir de metáforas ou situações bastante concretas, tais quais as que remetem aos aplicativos já mencionados, mas também a encontros fortuitos em banheiros públicos, por exemplo, o espetáculo não raro nos apresenta vestígios de um sistema social que impele à competição, à comparação e ao individualismo, deslocando, em certo sentido, a vigorosa ideia de obsolescência programada também ao campo dos desejos.
Se as relações entre os performers são quase sempre fugazes, o mesmo não acontece com boa parte dos quadros que estruturam o espetáculo, os quais frequentemente se estendem até o ponto de se esgotarem. Enquanto algumas vezes esse recurso denota justamente a perda – ou a falta – de sentido das ações trazidas à cena, em outros momentos, o que se verifica é um certo desgaste do recurso, provocando uma sensação de repetição ou permanência em um mesmo estado de coisas.
Desse modo, apesar da liberdade e da libertinagem que desde o início dão o tom do espetáculo, o caminho construído pela sucessão de quadros que integram Anatomia do Fauno talvez não encontre – e nem procure – a atmosfera de plenitude e esplendor um dia almejada por Rimbaud. Pelo contrário: mesmo quando se organizam em um grande grupo, substituindo os iniciais embates por composições coletivas situadas entre a festa, a orgia e o ritual, os múltiplos corpos que habitam a cena parecem ser colocados, ali, como equivalentes. Com isso, mesmo após a impactante entrada de um corpo feminino em cena, parece haver pouco espaço para a emergência de singularidades ou perspectivas que atribuam nuances mais complexas ao coletivo de corpos então formado.
Criação repleta de significados abertos, na qual mais se apresenta um contexto do que se entrega crítica ou reflexões sobre ele, Anatomia do Fauno deixa ao público o papel de experimentar, testemunhar ou julgar o que vê em cena. Enquanto alguns espectadores podem torcer o nariz para o excesso de “imoralidade” trazida ao palco, outros decerto saem ressentidos pelos raros momentos de efetiva presentificação do público, sobretudo quando consideramos a recorrente tensão estabelecida entre palco e plateia.
Sendo assim, àqueles minimamente familiarizados a práticas e imagens homoeróticas, o espetáculo termina por oferecer uma justaposição de acontecimentos visuais bastante potentes, mas pouco propícios a gerar deslocamentos de perspectiva em relação ao universo investigado. Àqueles menos familiarizados ao mesmo universo, o espetáculo pode, de fato, impressionar, mas corre o risco de apenas reiterar, sem acusar, defender ou adensar, características e comportamentos estereotípicos associados ao já bastante mal-compreendido e simplificado “universo gay”.
(Texto escrito no âmbito da II Bienal Internacional de Teatro da USP. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Críticos para a cobertura do festival, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.)
— por Daniel Toledo —
Crítica do espetáculo “O que fazíamos em 1985?”, das companhias [pH2| Estado de Teatro (Brasil), La Maldita Vanidad (Colômbia) e Lagartijas Tiradas al Sol (México)
Há, decerto, uma lógica perversa que permeia a prática de empréstimos e a contração de dívidas, recurso tão familiar ao Estado quanto ao cidadão brasileiro e, quiçá, latino-americano. Filhos de nações que já nascem endividadas por um passado-presente de intensa exploração, há muito naturalizamos também a subordinação a modos de vida vindos de fora. Contraímos, então, por vias bastante distintas, dívidas que se referem tanto àquilo que éramos e tentamos deixar de ser, quanto aos modelos externos que tomamos como objetivos que jamais alcançaremos. E, enquanto permanece esse imperativo, parece não haver, de fato, muitos caminhos para que tais dívidas sejam superadas.
Pois é justamente a temática da dívida que serve como eixo do espetáculo O que fazíamos em 1985?, trabalho que se organiza em três episódios caracterizados por recursos e linguagens artísticas bastante distintos, ligados a pesquisas dos grupos [pH2| Estado de Teatro (Brasil), La Maldita Vanidad (Colômbia) e Lagartijas Tiradas al Sol (México). Formados, em sua maioria, por artistas nascidos ao longo dos anos 1980, os grupos não por acaso tomam as trajetórias de seus pais, mães e governantes – ou seja, quase sempre de integrantes de uma geração anterior – como universo de análise sobre a perpetuação de dívidas recentes que claramente ainda pairam sobre nós.
Somos apresentados, ao longo do espetáculo, a pais, mães e governantes, constantemente desafiados por economias em crise, Estados enfraquecidos e a permanente sombra do imperialismo estadunidense – ou, como é comum aos nossos dias, de um imperialismo internacional. Testemunhamos, assim, a momentos históricos e contextos sociais cujos complexos sentidos, se é que existem, até hoje nos demandam grandes esforços de reconstrução.
Atravessados por histórias que remetem a desastres políticos, econômicos e também naturais, os três episódios nos põem diante de desafios e soluções encontradas por esses países e seus povos no decorrer de caminhos marcados pelo desejo de galgar alguns degraus no que se costumava chamar de “ordem mundial”. Desafiados por processos tardios de industrialização e urbanização, assim como pela abertura econômica a produtos, mercados e eventos “internacionais”, os contextos apresentados pelos quadros de O que fazíamos em 1985? parecem trazer como traço comum, seja nos níveis pessoal ou nacional, constantes processos de readequação a relações de subordinação e colonização que se estendem às esferas econômica, cultural e comportamental.
Intitulado “O Retrato da Mulher Endividada”, o primeiro episódio é composto por um filme no qual imagens ficcionais ganham tratamento documental, reunindo mulheres que foram mães nos anos 1980 e que constroem, juntas, a história da personagem Helena Fracasso, uma espécie de síntese da experiência da dita classe média brasileira ante o contexto que sucedeu a redemocratização do país. Chama bastante atenção, nesse caso, a escolha de um ponto de vista feminino para tratar do tema, a partir de cômicas provocações sobre a tardia inserção da mulher no precário mercado de trabalho brasileiro, concomitantemente à aceleração do consumismo no país – tudo isso sob a onipresença da televisão e da publicidade entre os meios de (des)informação da população.
No segundo episódio, “O Retrato do Homem Endividado”, passamos da linguagem audiovisual a moldes bastante tradicionais do teatro, a partir de uma narrativa conduzida por três irmãos que se encontram após a morte do pai, o qual deixa-lhes como herança uma casa em ruínas e uma dívida difícil de se pagar. Aos poucos, no entanto, o contexto familiar é perturbado pela presença de uma vizinha rica, “americanizada” e bastante ambígua, responsável por cobrar dos irmãos certa dívida que não contraíram, mas, sim, lhes pertence. Também contribuem para a desestabilização da encenação recorrentes e impactantes aparições de um bombeiro que alerta tanto os atores quanto o público sobre uma iminente catástrofe de amplo significado.
Ainda que atravessadas por aviões, táxis e até mesmo uma curiosa e resistente tartaruga de estimação, a direção e a dramaturgia deste episódio parece apostar na imobilidade dos personagens – e da própria situação – como questão a ser problematizada. Pressionados pelas catástrofes anunciadas por seus visitantes, assim como pela entrada de “duplos” que lhes servem como canais mais brutos de expressão, os três irmãos gradativamente deixam escapar traumas e revelam, entre outras coisas, certo complexo de inferioridade em relação a vizinhos de dentro e fora do país.
Deixando de lado a linguagem ficcional e as múltiplas metáforas presentes no quadro anterior, a sequência que encerra o espetáculo, intitulada “O Retrato do País Endividado”, recorre a uma linguagem bastante direta para estabelecer um interessante paralelo entre experiências de endividamento compartilhadas por Brasil e México durante os anos que precederam grandes eventos como as Olimpíadas e a Copa do Mundo. Frequentemente defendidos pela mídia e pelo Estado como signos de certa ascensão internacional, tais eventos são associados, em cena, a desastres naturais de incontestáveis consequências sociais.
Ao combinar elementos do teatro documentário e da performance, o quadro que encerra O que fazíamos em 1985? ganha força nas imagens e ações construídas diante do espectador. A construção textual, por outro lado, ainda parece carecer de um tratamento mais aprofundado em relação à questão do endividamento no contexto latino-americano. Organizada como uma sucessão de depoimentos, notícias e comentários sobre a história recente de Brasil e México, tal construção apoia-se – sobretudo no caso brasileiro – em informações e reflexões já conhecidas por boa parte do público, assim como parece perder contundência ao simplesmente citar recentes acontecimentos do noticiário nacional, sem indicar ou problematizar, de fato, suas relações com a relevante reflexão que serve como eixo ao ambicioso projeto artístico que constitui este trabalho.
(Texto escrito no âmbito da II Bienal Internacional de Teatro da USP. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Críticos para a cobertura do festival, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.)