• Início
  • Categorias

    Hot Categories

    • conversações

    • podcast

    • críticas

    • coberturas

    • entrevistas

    • dossiês

    • ensaios

  • Quem somos
  • Contato
  • Ações
  • Parceiros

Horizonte da Cena

Horizonte da Cena

críticas

A ignorância em indagação

— por Luciana Romagnolli —

Crítica da peça “Ignorância”, do grupo Quatroloscinco Teatro do Comum (Belo Horizonte/MG).

Em “Ignorância”, o Quatroloscinco Teatro do Comum coloca em questão as falhas de uma humanidade que se concebe como racional, civilizada e evoluída. O objeto cadeira surge como síntese simbólica que permite uma série de analogias a respeito dos modos como nos apropriamos do mundo, apontando para um processo de desenvolvimento que tem sua faceta utilitária e democrática, mas também persegue privilégios e distinções que produzem uma hierarquização entre sujeitos, compondo uma elite econômica, intelectual e/ou cultural.

Ignorancia_Divulg_Felipe-Messias-e1445030144854

Ignorancia_Divulg_Felipe-Messias-e1445030144854

ignorancia-guto2

ignorancia-guto2

Ignorância-guto

Ignorância-guto

ignorancia-guto

ignorancia-guto

Fotos de Felipe Messias e Guto Muniz.

A cadeira nos proporciona desde o elevar de nossos traseiros do chão, distinguindo-nos dos animais irracionais, à ostentação de adornos em ouro ou design exclusivo a preços proibitivos, distinguindo-nos de outras classes de seres humanos e justificando a segregação por um sentido a-histórico de meritocracia. Além, é claro, da cadeira sem assento: herança duchampiana e magritteana de uma arte conceitual e autorreflexiva acondicionada em museus turísticos ou vazios, a indagar sobre a função da arte na sociedade contemporânea.

Um solo da atriz Rejane Faria inicia o espetáculo trazendo a imagem da cadeira e suas possíveis implicações num discurso modulado pela ironia como recurso crítico. O texto a todo tempo refere-se a um “você” (exemplo: “você fica ali, no escuro”), sujeito indeterminado que pode designar tanto a própria mulher que fala quanto o seu interlocutor – no primeiro caso, transformando o “eu” dela em “outro”. Eis um jogo linguístico que torna mais complexas as relações entre os sujeitos ficcionais e reais envolvidos na apresentação. Quando o grupo decide tratar da ignorância humana, sobre quem fala? Ignorante é sempre outro?

A meu ver, esta indagação trespassa o espetáculo, escrito e dirigido por Marcos Coletta e Assis Benevenuto, e torna-se mais nítida quando observamos as escolhas de registro de atuação feitas a cada cena. À ironia da primeira, segue-se o tom farsesco das representações de mães e pais na reunião escolar. Com rigor e dinâmica na execução, Rejane e Ítalo revezam-se nas cadeiras dando corpo a seis personagens envolvidos em uma discussão sobre o comportamento de um aluno de sete anos, na qual subjazem questões relativas a moralismo, religião, sexo, educação, família e alteridade. A cena é construída para que se ria dessas figuras, expostas no que têm de patético. Meu questionamento é se a opção por uma atuação que mais cita essas personagens do que de fato as representa, e com tratamento farsesco, as distancia dos atores e dos espectadores, de modo que as olhemos de cima. Seriam “o outro”, a quem se deve criticar, ou é possível a identificação que provoque a autocrítica?

Os contornos dessa escolha ficam mais delineados quando se contrastam ao registro de atuação na cena que alude à imigração. Nesta, Rejane interpreta com carga dramática e gravidade uma mulher refugiada. A ironia já não cabe, sentimos o drama dela e associamos algumas das frases ao crime ambiental na cidade de Mariana (o real atravessa os sentidos previstos na escrita). A identificação, isto é, a projeção do eu do espectador nos sentimentos da personagem, é possível novamente.

A cena-esfinge, a meu ver, é a que contrapõe dois supostos tipos de ignorância no interior de um museu, esse espaço de culto à arte. A ignorância no sentido mais cru e ingênuo, do homem comum, que não detém as informações sobre algo, é contraposta à ignorância envernizada de quem se arroga muito saber. Rejane e Ítalo agora representam uma artista conceitual e um prestador de serviços que se encontram na primeira ida dele a um museu. Me parece haver uma escolha dramatúrgica que desestabiliza essa contradição ao tornar mais empático e cômico o homem que desconhece quase completamente o mundo da arte, direcionando a crítica à arrogância teórica da mulher artista, tecendo, assim, julgamentos sobre os personagens na cena do museu. Essa oposição perde complexidade com o tratamento desigual, ou seja, com a tomada de posição sobre um dos lados, porque endossa um discurso de descrédito em relação ao saber, ao pensamento, que num contexto de empobrecimento educacional como o do nosso país pode recair em um elogio à ignorância. Ao menos foi a sensação deixada pela interação palco e plateia nas duas apresentações a que assisti.

De que estratégias a dramaturgia poderia dispor para que a crítica,  nesta cena, recaísse sobre a arrogância da artista e não sobre o pensamento sobre arte? – se é que para o grupo essa distinção (que me parece essencial) faz sentido, é claro. Ao trabalhar com dois extremos, a cena tende também a subestimar o cidadão sem experiência de espectador como inábil para operações sensíveis e simbólicas. Creio que tanto o hermetismo quanto o subestimar do espectador são duas faces de um mesmo problema na relação da arte com o cidadão. Além disso, não há dúvida de que os ready-made de Duchamp inauguraram um território incerto e instável para a arte; meio século depois, ainda estamos com Ferreira Gullar questionando se seus desdobramentos são ou não arte? É preciso cuidado para, ao criticar formas vazias de discurso conceitual sobre arte, não rechaçar, junto, a própria reflexão sobre arte.

Tantas perguntas nesta crítica são, a meu modo, uma admissão de ignorância. Por vezes, é este o lugar em que a arte nos coloca, o de incerteza, o de desconforto com as conclusões previsíveis, o de indagação. Não se trata de um julgamento da obra em si, mas da problematização a partir de uma das possibilidades de relação que ela oferta a seus espectadores. A ignorância diz do incivilizado, do impensado e do violento em nós, por seu viés negativo. Comenta uma sociedade em que a idade das trevas não se dissocia tão facilmente da idade da luz. Porém, também é um estado socrático de recusa à presunção do saber, uma postura de descoberta perante um mundo que não se domina. Na potência dessa ambiguidade, disputam o gesto de apontar e o gesto de reconhecer. Ao espectador, cabe, mais do que a identificação e a reiteração do/com o que vê, um impulso à reflexão e a um posicionamento próprio.

*Espetáculo visto em duas ocasiões, no dia 29 de outubro de 2015, na Funarte-MG, e no dia 13 de novembro de 2015, no Teatro João Ceschiatti.

08/01/2016 TAGS: Belo Horizonte, Quatroloscinco, Quatroloscinco Teatro do Comum 1 COMMENT
SHARE
Leia mais

Comente Cancel Reply

O ativismo ‘patólico’ de Leo Bassi

Os caminhos de Ignorância revisitados em cena pelo Quatroloscinco – Teatro Comum

  • About Me

    Luciana Romagnolli

    Jornalista, crítica e curadora. Doutora em Artes Cênicas pela ECA/USP. Fundadora e editora do Horizonte da Cena. Pesquisa teatro, poesia e psicanálise.

Relacionados

críticas Diálogos cênicos – Derrame

críticas Uma dança para os sentidos

críticas Pormenor de Ausência

críticas eu queria que essa fantasia fosse eterna ou por uma performance queer do fim do fim da história

coberturas críticas 20º Festival Cenas Curtas // 2º e 4º dias- Cenas de Palco

capa críticas A Cena Preta e BH, BH e a Cena Preta – parte 2

Quem Somos

O Horizonte da Cena é um site de crítica de teatro criado em setembro de 2012 pelas críticas Luciana Romagnolli e Soraya Belusi, em Belo Horizonte. Atualmente, são editores Clóvis Domingos, Guilherme Diniz e Julia Guimarães. Também atuam como críticos Ana Luísa Santos, Diogo Horta, Felipe Cordeiro, Marcos Alexandre, Soraya Martins e Victor Guimarães. Julia Guimarães e Diogo Horta criaram, em 2020, o podcast do site. Saiba mais

Cadastre seu email

Mantemos os seus dados privados e os compartilhamos apenas com terceiros que tornam este serviço possível. Leia nossa política de privacidade.

Verifique sua caixa de entrada ou a pasta de spam para confirmar sua assinatura.

Siga-nos nas redes

Horizontedacena

Horizontedacena

Horizonte da Cena
Direitos Reservados © 2017 - 2019 Horizonte da Cena