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Nena Inoue em “Haikai”. Fotos de Daniel Sorrentino. |
para complexificar, e não finalizar, um tanto mais este exercício dialógico com a peça Haikai, ao qual me lanço a convite das críticas Luciana Romagnolli e Soraya Belusi, para o blog Horizonte da Cena, faço-me, no inesgotável, mais uma pergunta, embora a questão já tenha se dado acima. na especificidade desta obra, o que é isso o escuro em cena? em recente entrevista as duas críticas, Alvim fala da sensibilização do homem contemporâneo com a obliteração da visão. não o mergulho na cegueira, mas num modo de obliterar a visão com a criação de outra instância de visão, que tenha a ver com o crepúsculo, o lusco fusco, a luta entre o que se vê e o que não se vê, o nebuloso, onde os atravessamentos do imaginário. pode que seja da impotência do figurativo, fracassado como tal, que ele fale, daí a luz tão pouca e de sutilíssimo bruxulear, perseguindo a tentativa do apagamento do sujeito. pareceu-me, no entanto, que desta vez Alvim deu um passo a mais. neste desapareçapareça, ele foi resvalar o apagamento da matéria, ele foi próximo da descorporificação dos atores. se a face é máscara do vivido, do vivente e do ainda a se viver, não haver face é não haver vida, ou ao menos não haver vida tal qual a pensamos reconhecer. em Haikai, nem mais demônios e assunção no eterno jogo de uma imagem apaga a outra, que apaga outra, que apaga outra diante da percepção de nossos olhos e ouvidos e, mais, de nossa pele e alma profundamente inconscientes, com o que veremos e escutaremos para além dos sentidos.
por Fernando de Proença
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“Viúva, Porém Honesta”. Fotos de Sergio Silvestre. |
A subserviência não veio trabalhar na montagem do Grupo Magiluth de “Viúva, Porém Honesta”, a tal farsa irresponsável de Nelson . Tudo é tocado por um senso de liberdade e autonomia pelos criadores do trabalho, tudo é de um frescor e de uma juventude que não tem a ver com ser jovem no cronômetro.
A peça é um estado de espírito. É um teatro do jeito que eles gostam de fazer teatro. E me parece que eles gostam muito de fazer teatro.
Tudo acontece às claras, tudo releva a nudez: do torço dos homens, do jogo, da cena. Nudezes.
Em um jogo vivo (até parece futebol) e cheio de testosterona e tesão, a peça vai se construindo com possibilidades (muitas!) de apreciação. O público pode ter diferentes olhares e construir, em tempo real, todo tipo de aproximação com os atores e com a encenação – uma construção que se confunde com as vidas, todas ali naquele TEUNI em Curitiba, tudo coexistindo e colocando massa corpórea no espaço, movendo o ar.
Aerados.
Os personagens do Nelson e do Magiluth estão todos alí (Ivonete, Madame CriCri, as tias, …), circulando entre os atores em um ritmo tão frenético e bagunçado quanto articulado e claro. Os atores brincam a sério, como uma criança faz.
Um encontro real acontece no meio do caminho, quando um encontrador e o outro encontrador caminham para se encontrarem. Isso acontece na relação de quem assiste ao trabalho. Todos precisam estar atentos porque tudo se move, porque tudo na vida é movimento.
As perguntas que a encenação faz para si própria revelam um tabuleiro cheios de respostas. E perguntas: Como trabalhar com um texto rocambolesco agora, hoje? Como jogar o jogo realmente, sem ponderações e economias? Como a plateia olhará? Como os atores olharão para a plateia? Como os objetos de cena se integrarão e ganharão lógica dentro da lógica da encenação?
O contato de quem está no gramado, no palco, no ringue e de quem está na arquibancada ou espremido pra ver um show de rock, ou em casa (com o quarto se bagunçando) passa por infinitas direções, escolhe todas elas e segue. Como a vida.
A encenação soma e mistura.
A proposta aponta um rigor de execução tão direta e solar que dançar a famosa Locomia com leques, evocar um estado de espíríto Greetchen ou comer Ruffles quando um dos personagens fala o clássico Batata! Do Nelson, se faz coerente e rigoroso, está tudo previsto no jogo. Não são coincidências nem são redundâncias.
E terminar esse texto pelo começo da peça , quando os atores/personagens se apresentam em ações com a voz da La Lupe, cantora cubana, cantando Puro Teatro (que antes cantou também essa para Almodòvar em Mulheres a beira de um ataque de Nervos), diz tudo sobre a encenação. A apresentação está feita e as expectativas são as da própria encenação, ela nos aponta as possibilidades. E com o verso: “Tu drama no es necesario, Ya conozco ese teatro”, os criadores informam ao público o que vem pela frente e tudo começa a se ligar. Tudo se completa, tudo é direto e todos jogamos o jogo. Da vida. E lá, abraçados com o Nelson, O drama não se faz necessário.
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Fotos de Ernesto Vasconcelos |
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Antonio Salvador e… |
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… Eduardo Okamoto |
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“Circo Negro”. Fotos de Ester Gehlen. |
por Luciana Romagnolli
Nietzsche considera a má consciência um mal adquirido pelo ser humano ao se encerrar na “paz” da sociedade. Com ela, “foi introduzida a maior e mais sinistra doença, da qual até hoje não se curou a humanidade, o sofrimento do homem com o homem, consigo: como resultado de uma violenta separação do seu passado animal, (…) resultado de uma declaração de guerra aos velhos instintos nos quais até então se baseava sua força, seu prazer e o temor que inspirava”. Para o alemão, contudo, o prazer na crueldade não se extinguiu completamente no mundo de hoje; em vez disso, foi transposto ao plano imaginativo e psíquico, conformando sentimentos como a compaixão trágica.
“Circo Negro” coloca esses instintos em evidência numa encenação que joga com a condição do ator dentro de uma atmosfera circense estetizada, na qual os procedimentos e rituais tradicionais das grandes lonas e das feiras artísticas – portanto, da arte “baixa” em comparação à erudição dos salões de teatro literato – são citados com cinismo. Ao mesmo tempo, a crueldade humana, assim como a sujeição, a manipulação e a humilhação tornam-se objeto do humor negro.
O espetáculo exige do espectador uma disposição inusual de seus afetos para o reconhecimento de suas baixezas. E para, contra a má consciência adquirida, recobrar a experiência do prazer que o cruel pode lhe inspirar. O roteiro de ações concretizadas em cena demanda uma fruição distanciada, diante da qual o público pode adotar também uma postura cínica, caso aceite o pacto apresentado.
A direção de Sueli Araújo orquestra um estranhamento a pairar sobre a encenação, que contamina ritmos e humores do jogo entre os atores; e é reforçado pela música e pelos elementos cênicos, sobretudo os quadros vivos que espreitam ao fundo do cenário desenhado por Paulo Vinícius, à semelhança dos video portraits de Bob Wilson.
Minuciosa na comunicação visual tanto entre os próprios atores quanto entre eles e o público, a diretora refina as trocas de olhares e uma gestualidade expressiva, de modo a criar uma cumplicidade dentro da cena. Esse será um dos fundamentos da dramaturgia, inclusive para ser desconstruído quando necessário. Em paralelo, a relação que o elenco estabelece com o espectador é de tensão e incômodo, erguendo a base para que se reflita a condição de exposição inerente ao trabalho do ator.
A manipulação e a sujeição são reveladas nesse contexto metateatral dentro de cenas que reeditam a gramática de artes cênicas menos valoradas socialmente, como o show de hipnose; e de outras que evidenciam o contraste entre a presença do ator e a do boneco. Este, que era o mote do texto de Daniel Veronese quando escrito (em 1997) para seu então grupo Periférico de Objetos, torna-se mais sutil na opção da CiaSenhas por se concentrar no aspecto humano reduzindo os bonecos a um.
Pelo modo como faz a sério o escracho e se sustenta no estranhamento também como elemento organizador da dramaturgia, negando ao espectador uma história à qual se apegar, personagens empáticos ou respostas emocionais relativas a afetos elevados, que poderiam ser facilitadores da fruição, “Circo Negro” representa uma ousadia de linguagem e de conteúdo com a qual a CiaSenhas avança em sua trajetória, mantendo a coerência com sua história.
Em tempo, há de se dizer que o espetáculo perde nuances em um teatro maior, como o do HSBC, no qual se apresenta no Fringe, em comparação ao espaço intimista da Cia. dos Palhaços onde estreou. O jogo dos atores em relação ao espectador ressente de uma copresença mais próxima, embora isso não impeça a obra de transcender a condição cruel do artista para tangenciar a crueldade do humano.
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
por Luciana Romagnolli
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“O Espelho”. Fotos de Annelize Tozetto. |
Em sua empreitada para definir o teatro sem desconsiderar que essa arte passa por um processo de desdelimitação na contemporaneidade, o ensaísta e dramaturgo argentino Jorge Dubatti identifica uma estrutura matriz singular que o diferencia de outras manifestações culturais também fundadas na representação, como o cinema e a televisão: “o resgate do convívio”, isto é, “a reunião sem intermediação tecnológica – o encontro de pessoa a pessoa em escala humana”. Para ele, o teatro é um acontecimento da cultura vivente e concreta, de modo que “necessita participar da realidade e separar-se dela para ser”.
Em Curitiba, o local de apresentação (se é que o termo cabe neste caso) foi o gramado do Bosque do Papa. Em torno de uma mesa de café da manhã, o público e as atrizes convivem pelo tempo do espetáculo. A situação potencial é a de uma conversa conjunta à qual todos contribuam com memórias pessoais, estimulados pelas recordações narradas pelas atrizes. Essa é uma negociação difícil, complexa, porque demanda do espectador uma participação espontânea, que lhe exige tomar a palavra, e à qual ele está completamente desabituado, e até desautorizado, no teatro em geral. Como romper a hierarquia entre plateia e atores – esse “povo em pé”? Será possível? Ou será possível mesmo dentro do esquema hierárquico libertar a voz do espectador para que ele possa agir sem necessitar de um comando específico?
Sim, porque é notável como o grupo em nenhum momento inquire o espectador, não lhe direciona nem uma pergunta que pudesse autorizá-lo ou ordená-lo a responder. Abdica desse recurso que poderia disparar a conversa com muito mais facilidade para manter em questão a possibilidade de o público tomar por si essa iniciativa e tornar-se, também, metaforicamente, “o povo em pé”.
Na apresentação da manhã de sábado (30 de março de 2013) em Curitiba, a conversa tardou e se seguiu tímida, revelando a dificuldade de vencer essa convenção que interpõe uma imaginária quarta parede entre atores e espectadores mesmo quando partilham a mesma mesa.
Contudo, foi perceptível (por gestos, sorrisos, movimentos de cabeça, murmúrio) o quanto, mesmo calados, os espectadores mobilizavam recordações particulares e processavam, internamente, um diálogo mudo com o tecido sensível da memória familiar proposto pelo grupo. Essa capacidade de tornar o espectador emocional e intelectualmente ativo em meio a uma atmosfera afetuosa é um enorme feito do Opovoempé, como já havia demonstrado em “A Festa”.
“O Espelho” também desperta para o contraste da percepção e experiência do tempo cotidiano por aquela geração e pela nossa, usando para tanto obsoletas fitas K-7 que os espectadores ouvem em meio ao gramado, sensibilizando-se para as idades e individualidades que se expressam ali; e simultaneamente sendo confrontado com a diferença da passagem do tempo experienciada normalmente num espaço urbano e num espaço bucólico, como aquele para onde convida o público.
O que poderia ser melhor desenvolvido no espetáculo é o fim dado às perguntas que o espectador é incitado a escrever em papeizinhos. Embora a leitura por ondem cronológica de idade proporcione uma dimensão da trajetória de uma vida, torna as questões em si meramente anedóticas, desperdiçando um material pessoal que o espectador mobilizou.
*Espetáculo visto no 22º Festival de Curitiba, em 30 de março de 2013.
por Soraya Belusi (*)
Não há a soberania de uma única forma teatral. Se até poucas décadas bastava-nos a divisão entre dramático e épico, na cena contemporânea convivem as formas narrativa, dramática, lírica e performática, entre outras, o que torna os trabalhos, muitas vezes, inclassificáveis sob categorias pré-determinadas. Pelo menos três montagens que integram as Mostras Especiais e o Fringe 2013 lidam com esse rompimento de fronteiras, com a possibilidade de misturar referências distintas na composição do espetáculo.
Em O Diário do Último Ano, do coletivo Paisagens Poéticas, de Belo Horizonte, os dias derradeiros da vida da poeta portuguesa Florbela Espanca servem de mote à atriz e cantora Julia Branco. Um véu encobre a cena e um fado parece anunciar a morte que está por vir. Tendo o lírico como ponto de partida, a performer transita também entre as formas narrativa – quando apresenta a história que será contada e em outros breves momentos do espetáculo – e dramática, quando, ao mesmo tempo, busca criar uma espécie de “perfil psicológico” da personagem.
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Foto Annelize Tozetto |
Julia, com seu corpo e voz, constrói belas imagens, embora alguns dos elementos da cena tendam a reforçar um ideal de feminino um tanto esgarçado, com o uso de elementos já demasiadamente utilizados, como a camisola transparente, a lingerie e um colar de pérolas. A perturbação de Florbela assume a questão central, muitas vezes reforçando uma imagem de histeria, o que despotencializa o poder poético do que é dito. Os poemas são lançados como se aquelas palavras não fossem plenas de sentido, com um certo desiquilíbrio na junção entre a palavra e a cena. A multiplicidade de formas, neste caso, não potencializa as camadas de encenação e dramaturgia como poderia, causando certa irregularidade.
Cristiano, Cão Louco, do Grupo Obragem, de Curitiba, revela grande potência na relação de inversão de papéis que realiza entre dois homens de posições políticas e éticas distintas. Com um texto que beira o filosófico, Olga Nenevê proporciona um mergulho nos conflitos do humano, em que carceireiro e prisioneiro parecem estar presos a uma mesma sina, cujos lugares podem ser trocados a qualquer momento.
A encenação é baseada na relação entre os dois atores, Eduardo Giacomini e Leando Daniel, que, num jogo muitas vezes violento, conseguem sustentar em cena a complexidade do texto. Este, em alguns momentos, parece perder-se na tentativa de estabelecer frases de efeito poético, mas guarda em si grande potencial.
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Cena de Cristiano, Cão Louco (Lina Sumizono) |
Assim como a encenação, em que alguns signos são trabalhados num primeiro momento de maneira inventiva e sutil, mas que, ao decorrer do espetáculo, são excessivamente marcados e repetidos, entregando de bandeja ao espectador os sentidos que ele poderia criar. A edição do espetáculo busca fragmentar a cena de modo a desconectá-la de um tempo cronológico o que acaba não acontecendo já que as cenas são enumeradas, mesmo que fora de ordem, para o espectador.
Na Mostra Novos Repertórios, a Pausa Cia. de Teatro apresentou A História de Marileide e Michael Jackson, com texto de Fernando Bonassi. A peça traça um paralelo entre a vida desta mulher simples, trabalhadora e apaixonada pelo popstar, e o rumo trágico que o fim da vida deste levou. A direção de Rafael Camargo opta por narrar essas histórias paralelas, mas cruzadas, como se fosse um programa de rádio, gerando uma série de efeitos na relação com a plateia.
O primeiro deles é a não-identificação com os personagens. Os atores, sentados em uma mesa de transmissão, dão vida a esses locutores que não estabalecem a menor relação com o espectador e nem mesmo com os personagens que narram. Não há emoção visível. Isso gera uma frieza à encenação bastante instingante, permeada pela ironia que elementos como a trilha de fundo, destes programas de rádio da madrugada, são capazes de criar. Ao mesmo tempo, a manutenção dessa estrutura, marcada pela repetição, depois de um determinado tempo tende a se esgotar.
Os tons da encenação e da atuação dos atores, marcados por uma certa indiferença, destacam questões bastante pertinentes, como a solidão e a descrença não apenas de Marileide e Michael Jackson, mas de todos os que estavam presentes ali.
(*) A jornalista viajou a convite do evento
por Luciana Romagnolli
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“Uma História Radicalmente Condensada da Vida Pós Industrial”. |
O escritor norte-americano David Foster Wallace (1962-2008) é o elemento em comum entre “Uma História Radicalmente Condensada da Vida Pós Industrial” (SP) e “Em Breve nos Cinemas” (PR), dois espetáculos que se constroem no limiar do teatro com outras linguagens. No primeiro caso, a performance; no segundo, a cinematográfica. As semelhanças entre as escolhas éticas e estéticas, contudo, detêm-se aí. Diante dos espetáculos, a quem não conheça previamente sua literatura, D. F. W. parecerá dois artistas distintos, nas questões e formas.
“Uma História Radicalmente Condensada…” busca inserir-se na vida do espectador, abdicando dos códigos e lugares estabelecidos tradicionalmente pelo teatro, para confrontá-lo a trechos do livro “Breves Entrevistas com Homens Hediondos” nos quais as relações afetivas, românticas ou familiares, são afetadas pelo sexo. O espaço teatral tradicional é abandonado e, com ele, renuncia-se ao caráter de evento extracotidiano delimitado. A construção poética e expectatorial se desloca para o espaço urbano de um bar, onde os atores vão buscar modos de se aproximarem do público limítrofes com a ilusão da não atuação, do não teatral, do genuinamente cotidiano.
Esse é um grande feito de linguagem, uma vez que cria um mecanismo apto a preservar qualidades literárias que fundamentam o espetáculo, ao mesmo tempo em que as redimensiona espacializando e corporificando as imagens textuais. Como efeito, tem-se a fricção do cotidiano com a ficção, capaz de despertar para a ficcionalidade do que se toma por real, assim como para o lugar de espectador que se pode assumir nessa realidade.
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“Um História…” |
Dito isso, há de se considerar as variações proporcionadas pelo ambiente. Nesse sentido, embora o espetáculo pareça ter sido construído sobre uma noção genérica de bar, ele assume características de site specific às quais não demonstra ainda elaborar respostas. Tome-se duas apresentações como parâmetro. Em Belo Horizonte, a ação se realizou no bar Chef Túlio, um estabelecimento frequentado pela classe média e média-alta mineira, na zona Leste da Cidade. Aquele contexto ordenado — e sexualmente reprimido — é abalado em suas estruturas. Os contos de D. F. W. fazem do espectador testemunha dos abismos pessoais encontráveis transpondo-se a camada de moralismo e os ideais ascéticos com que a sociedade se protege do magma humano. Entre as micro-histórias, destaca-se a da mulher que só acessa sua própria sexualidade após desfazer-se da ilusão monogâmica da inocência sexual do marido.
O cenário, por sua vez, reedita um recurso que o cenógrafo Fernando Marés já havia usado de modo semelhante em “Oxigênio” (da Cia. Brasileira), tombando-o a certo momento para revelar um espaço de natureza que traz outra dimensão à narrativa vista até então em cena. Trata-se das versões ficcional e supostamente real do escritor, que compartilha suas ideias e inquietações ao mesmo tempo em que se acompanha uma de suas relações amorosas.
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“Em Breve nos Cinemas”. |
“Em Breve no Cinema” estende um terreno acidentado pelo qual os atores e o público vão transitar. Irregularidade esta que poderia ser apontada como um problema no espetáculo, mas também poderia significar a manifestação de uma crise com grande potencial transformador caso se instaure no trabalho da diretora Nina Rosa Sá e do grupo Teatro de Breque. Eis que a encenação se mostra no meio do caminho entre um fazer estabelecido desde outros espetáculos e um movimento expansivo de ruptura que aponta novos horizontes.
Isso se desenha pela concorrência de duas linhas de força. De um lado está o desenvolvimento de uma estética que se serve de códigos da cultura pop e da ilustração como recurso de linguagem: marcas recorrentes nas criações do grupo. Esse DNA se afina ao gosto do autor norte-americano por temas corriqueiros. Deste modo, o grupo assimila aspectos da linguagem dele, como as célebres notas de rodapé e as teorias matemáticas, e segue caminhos tortuosos povoados de saborosas referências clichês e ligeiras, como costumam ser as pop.
Do outro lado, está a pulsão contida por atingir a essência pelo conteúdo do que se diz, o tal ponto nevrálgico que, no caso de D. F. W., conduziu ao suicídio. O discurso do Teatro de Breque nega a si mesmo essa possibilidade, repelindo-a com a justificativa (deles ou só do escritor?) de que uma abordagem direta do que “realmente importa” tende ao descrédito. Prefere os meandros de quem fala como se não soubesse do que fala.
Por Soraya Belusi
Um grande salão de bar aguarda a entrada do público, que vai aos poucos ocupando seus lugares nas mesas espalhadas ao redor de uma pista. Ao fundo, uma banda toca boleros, ditando a atmosfera kitsch, reforçada pelos figurinos dos atores, que recebem o público naquele espaço um tanto quanto brega e decadente. Numa espécie de prólogo musical, indagam: “será que você vai ver o que você quer ver?”. Esta é a deixa para que Grace Passô e o Grupo Lume nos mostrem uma faceta completamente inesperada, longe daquilo que “esperemos ver” desse coletivo que tem sua trajetória marcada no teatro brasileiro pela dedicação à pesquisa continuada das artes e da formação do ator, com um apuro e rigor técnicos incomparáveis.
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Fotos Annelize Tozetto |
Somos apresentados a sete atores, personagens que funcionam como uma espécie de alterego dos próprios atores, como se fossem seus demônios mais secretos, seu lado mais clichê, a overdose do caricatural. O tom do excesso e do melodrama preenche a cena, reservando momentos de humor intenso, mas escondendo, sutilmente, questões acerca da própria condição do artista, de como ele se vê e é visto, como na brincadeira que insistem em fazer sobre o fato de possuírem um CNPJ, o que demonstraria seu profissionalismo.
Os personagens dizem enquanto apresentam uns aos outros: “um artista ainda sem saber como dar forma às suas boas intenções”. A partir daí, o que se testemunha é um processo de mascaramento das fragilidades que os personagens insistem em realizar ao longo do espetáculo, como se fossem paródias deles mesmos, apoiando-se em fantasias construídas como se para tornar a existência mais suportável. “Ele acordou com esperança porque nada melhor que um fim de semana para decorar um peito solitário. Essa mansão”, repetem.
Se falta competência ao coletivo ficcional, o mesmo não ocorre com o Lume, cujos atores demonstram vastos recursos e se lançam vertiginosamente nessa grande brincadeira de se desprenderem da imagem que construíram, o que, em momento nenhum, desmerece os lugares que conseguem alcançar em cena. Não é qualquer grupo que pode e consegue rir (e fazer o outro rir) de si mesmo. Ao mesmo tempo, a dramaturgia de Grace Passô parte dessa proposta da autoironia do próprio coletivo para, aos poucos, provocar uma virada completa no espectador através de um rito poético que revela um universo obscuro e sacrificial, ambos os lados da condição do artista celebrados com um brinde final.