
Em linhas gerais, a peça se inspira livremente na vida e obra de Caio Fernando Abreu para abordar ditaduras de ontem e de hoje. Tanto essa que já está instalada em cotidianos atos de repressão da Polícia Militar, quanto outra, recentemente convocada por manifestantes a revisitar nos nossos dias e por aqui se instaurar.
Exatamente por isso, traçar vínculos históricos para sacudir memórias perdidas parece ser um motor fundante e coerente do espetáculo. Não foi à toa, aliás, que o trabalho nasceu de testemunhos do ator e do diretor em relação às recentes manifestações do país. Não por acaso, de igual modo, as pesquisas que empreenderam caíram nas letras do escritor gaúcho. Os elos e as linhas paralelas, no entanto, ganham certo aspecto didático, sendo narrados por gritos de um militar que ora posiciona o público nos históricos anos 1960, ora nos deixa no aqui e agora.
Os paralelos entre ontem e hoje, ator e personagem, real e ficção também se estabelecem, logo no princípio do espetáculo, como ferramentas ou estratégias de aproximação. “Quem foi às ruas se manifestar recentemente? O que achou e o que sentiu?”, pergunta, sem solenidades, o ator, a quem o público responde com suas impressões. A proposta se faz contundente em um trabalho que busca na performance o norte de uma criação marcada pela presença de corpos, tanto o do ator quanto os do público. Ao fim da conversa, no entanto, a chave vira-se abruptamente. O ator torna-se personagem, a ficção se instala, e o distanciamento é promovido sem que isso pareça ser uma estratégia ou opção estética. A conversa até então compartilhada quase ao pé do ouvido converte-se em texto decorado até encontrar novo ritmo.
Com exceção dos momentos em que a narrativa ganha tom direto e convida o público a estabelecer conexões entre distintos períodos históricos, todo o resto está afirmado no corpo, e, mesmo quando as palavras são ditas, é a angustia psicológica retratada na voz que nos faz refletir, ou, ainda melhor, nos faz sentir o que é viver em tempos de opressão e censura.
O corpo torna-se, portanto, o principal elemento cênico, frente a outros poucos que são trazidos à cena e que carregam na “pele”, de modo comum, o sentido e a sensação da opressão. O palco pode até ser amplo, mas o espaço do ator/personagem é um pequeno círculo formado e coberto por carvões, e esse é todo o espaço que tem para passar os próximos minutos – ou dias de uma vida.
Sem mais nada para ver, pegar ou se apegar além da tormenta de seus pensamentos, resta ao personagem apenas o seu próprio corpo, que ganha relevo pela pouca luz de uma lanterna. São, assim, iluminadas algumas partes dos braços, das pernas e do tronco do ator, trazendo à tona a experiência de uma pele que se suja e não se intimida às pontiagudas arestas do carvão. Ali, o corpo passeia, caminha, cai, pula, pisa, com medo e com coragem, em momentos de grande vigor e indignação, ao mesmo tempo em que se percebem mínimos gestos de medo, saudade e cansaço.
Quase completamente em torno de si, em uma das cenas mais belas do espetáculo, Caio está no breu claustrofóbico de um porão onde se esconde. Ali, ele toca o próprio corpo para sentir que ainda existe, que a materialidade ainda resiste e que a pele consegue sentir alguma coisa.
Em “EuCaio”, o corpo também é elemento de transposição de papeis e lugares sociais. Por exemplo: um mesmo homem de braços atados para trás, trazendo portanto o mesmo gesto e a mesma postura, pode gerar sentidos bastante distintos. Um é o oprimido, e o outro, o opressor – o único que consegue fugir aos limites do círculo. O que determina essas posições? O que determina essas relações?
De Caio Fernando, além de reflexões sobre o fazer artístico e as formas de se manifestar por meio desse fazer, vem a inquietação psicológica, o tormento de uma mente que tem medo até dos próprios pensamentos, assim como de imaginar o que estaria acontecendo fora do porão em que se esconde.
O que parece, no entanto, ser local de proteção e segurança é o retrato de tantos outros círculos, hierarquias e regras determinadas que reprimem, engessam e tolhem individualidades, liberdades e diferenças. São os porões do preconceitos e da intolerância, dos jogos de poder que circulam fora do bem comum.
Dentro desse espaço de isolamento que fecha e aprisiona, que apequena e atormenta, resta o mergulho vertical em um drama psicológico sem espaços abertos para o respiro. Não se respira, afinal, com a faca da censura na garganta.
De Caio Fernando vem também, em uma espécie de segundo plano, a questão da homossexualidade (assumida pelo escritor). E a partir desse tema, a reflexão se estende a outras dimensões: não guardariam o preconceito e a intolerância semelhanças àquela tortura que persegue, inibe, impede e mata? Não teríamos, já, alguns elementos da ditadura atuando na sociedade do século XXI?
Se “viver é constantemente construir e não derrubar”, como diz a frase de Caio Fernando citada ao fim do espetáculo, retumba aos ouvidos que há muito caminho para se retirar da sociedade os vestígios da dita ditadura, e essa é a construção a se dedicar, penso eu.

— por Julia Guimarães —
Crítica do espetáculo “Rosa Choque”, do coletivo Os Conectores (Belo Horizonte/MG).
Logo que o público adentra o teatro, duas filas dividem os espectadores por gênero. Em duas arquibancadas, dispostas frente a frente, homens sentam-se de um lado, mulheres sentam-se de outro. Na primeira fileira de cada arquibancada, a atriz Cris Moreira e o ator Guilherme Théo estão ali, sentados e nus. Algum tempo depois, vestem roupas – azuis e rosas. E começam a jogar com papéis historicamente definidos do homem e da mulher.
A cena que abre o espetáculo “Rosa Choque”, do coletivo Os Conectores (BH/MG), com direção de Cida Falabella – e que integrou recentemente a programação do Verão Arte Contemporânea – antevê alguns caminhos possíveis para sua reflexão em diálogo com desdobramentos do feminismo no último ano, especialmente no Brasil.
Dentro de um primeiro vetor, que parece ser o eixo central do trabalho, estaria a ideia de expor os lugares que a linguagem, a tradição e a história destinam aos papéis de homem/mulher, e construir distintas apostas cênicas para desnaturalizá-los.
Vinculado a esse, há um diálogo com o espectador, no qual o convite a refletir sobre seus próprios papéis surge de maneira espacial, pela divisão das arquibancadas. E, ainda, a presença dos atores nus sinaliza uma vivência que passa pelo corpo e não será ignorada no decorrer da apresentação.
Junto a estas, é possível acrescentar outras questões de fundo: como o teatro é capaz de lidar com um tema reiteradamente debatido ao longo dos últimos séculos e que, além disso, no último ano, tem acumulado uma infinidade de novos significados? Como a linguagem cênica pode manter-se porosa a tais renovações constantes? E quais seriam estratégias potentes para dialogar com um assunto cuja complexidade é sempre um desafio às representações?
Logo nas primeiras cenas, a desnaturalização dos gêneros surge pelo viés da linguagem. Um exercício trivial – ler os verbetes de ‘homem’ e ‘mulher’ do Dicionário Michaelis Online 2015 – expõe depreciações surpreendentes, dada a “objetividade” que um dicionário poderia pressupor. Definições do tipo “Mulher: Pessoa adulta do sexo feminino; rabo de saia, racha, rachada” já indicam a capilaridade com que a opressão de gênero está introjetada na nossa cultura.
De forma semelhante, diante de um recurso de luz que projeta o desenho da gestação de um bebê no chão do palco, os atores intercalam frases-feitas que revelam a construção de papéis implícita na educação dos filhos.
Se as entrelinhas de frases como “Deixa ele pelado”/“Bota um vestidinho nela” revelam a repressão do corpo feminino, em outras como “Um grande homem”/“Uma boa mãe”, evidencia-se uma redução do papel da mulher ao da maternidade.
A desconstrução é também operada pela inversão de papéis, na cena em que um homem chega a uma delegacia para prestar queixa por ter sido estuprado por uma mulher. A delegada que o recebe se presta a condutas típicas verificadas nesse tipo de ambiente: questiona o fato de um ‘homem’ andar sozinho na rua, de ter chegado à delegacia desacompanhado de sua ‘esposa’ e insinua que sua roupa justa seja um convite à violência e ao assédio, culpabilizando-o pelo crime sofrido.
O nonsense gerado pela inversão de papéis – já que a vítima, no caso, é um homem – colabora para acentuar sua desnaturalização. No entanto, como os personagens, a cada situação, mais reforçam que subvertem os lugares-comuns de seus papéis, passada a estranheza inicial gerada pela troca, a proposta se torna previsível – inclusive quando os papéis surgem destrocados.
Além disso, a considerar a complexidade que o tópico feminista conquistou nas redes sociais – após disseminarem vídeos, desenhos e montagens com revistas femininas criados sob lógica semelhante de inversão/desconstrução de papéis – o recurso em “Rosa Choque” opera um estranhamento menor do que quando o trabalho foi apresentado pela primeira vez, em 2014, no formato de cena curta, dentro do projeto Cena-Espetáculo do Galpão Cine Horto.
Acrescenta-se ainda a impressão de um tratamento dos personagens nesta cena que confere uma ambiguidade pouco esclarecedora sobre qual estratégia crítica estaria colocada sobre a situação.
Isso porque, por vezes, há uma ironia pela qual os personagens parecem tratados como vetores de um riso crítico distanciado. Já em outros momentos, a crueza de um realismo cotidiano – por exemplo, na descrição do ato em si do estupro – ainda que sob o filtro da inversão, sugere, ao revés, uma crítica da violência pelo choque, por uma narrativa traumática. E o efeito de choque, que costuma atingir o espectador muito mais por uma via sensorial, pressupõe normalmente a eliminação da distância para funcionar, o que não ocorre. Com isso, parece que o diálogo entre os personagens e o público nesta cena fica no meio do caminho entre uma construção e outra, o que desfavorece seu potencial crítico.
A desnaturalização dos gêneros alcança outros desdobramentos no decorrer do espetáculo. Numa cena que critica e denuncia o machismo através de uma imagem paradoxal, o personagem de Guilherme Théo, um noivo abandonado no altar, surge cantalorando a letra romântica, supostamente despretensiosa, de uma canção de Vinícius de Moraes, enquanto arrasta o corpo de um cadáver.
Ao sobrepor a canção – que, entre outras coisas, reitera a noção do amor masculino como sinônimo de posse sobre a mulher – com a frieza do cadáver ensacado da noiva, revela-se uma violência potencial. Uma violência que surge em diálogo com construções idealizadas do feminino e do amor ‘romântico’, inclusive em lugares pouco evidentes, como num repertório da Bossa Nova, tão identificada à identidade da cultura brasileira.
Mas é, sobretudo, quando o vetor da desnaturalização alia-se à realidade do próprio teatro que a discussão parece surgir mais colada ao feminismo atual. E nessa proximidade, a valorização da experiência e do lugar de fala aparece como construção de linguagem privilegiada, justamente porque estabelece um elo entre representação e ação.
Tais aspectos são visíveis, por exemplo, na relação com o espectador, citada no início deste texto. Se, no começo do espetáculo, o público é “impostamente” posicionado em uma das arquibancadas destinadas à separação por gênero, em outra passagem sua posição é questionada. Isso acontece quando a atriz Cris Moreira pergunta aos espectadores se eles desejariam mudar de arquibancada – já que “essa divisão (…) não foi a gente que inventou”.
Ainda que seja um recurso simples, o convite aberto a questionar os próprios papéis a partir de um deslocamento físico – e diante de outros espectadores – sugere uma camada a mais à proposta da desnaturalização. Nesse caso, parece ser o fato do convite irromper a ficção e trazer o espectador para a sua própria experiência o fator que potencializa outras camadas de entendimento das questões tratadas, surgidas de uma reflexão-em-ação.
Também da ordem da experiência são os momentos em que os atores se dirigem ao público em primeira pessoa, numa perspectiva testemunhal sobre o tema abordado. Nesse contexto, seus lugares da fala acentuam questões sobre violência e privilégio que existe por trás da “naturalização” dos papéis.
Nesse sentido, o depoimento de Cris Moreira é delicado e difícil, pois trata-se de uma revelação pública de abusos sofridos na adolescência. E tanto no ato corajoso de se expor junto à plateia – repetido a cada apresentação – quanto na reflexão que o sucede, surge um diálogo com o momento de denúncia/compartilhamento de experiência que ocorreu coletivamente no espaço das redes sociais, em 2015, através da campanha #meuprimeiroabuso.
Não parece ser por acaso que a versão mais recente do espetáculo, apresentada no Verão Arte Contemporânea, incorpora depoimentos publicados nessas redes. O recurso surge aliado à prática, já anteriormente presente, de ler notícias de jornais sobre violência contra a mulher. Tal estratégia poderia ser entendida como uma atualização temática performativa que também aparece em outros trabalhos da diretora Cida Falabella, como “Esta Noite Mãe Coragem” e é fértil para aproximar a discussão ao tempo característico do teatro: o presente.
Já o depoimento de Guilherme Théo, que encerra o espetáculo, expõe a complexidade da questão em pelo menos dois aspectos. Primeiro, por vir de um homem que inverte a dinâmica das denúncias e questiona, em um diálogo diretamente dirigido aos espectadores, seus privilégios cotidianos vinculados ao gênero. Segundo, porque identifica um machismo mais sutil, não necessariamente transmitido por outro homem, mas presente nas entrelinhas de sua relação com a própria mãe.
“É estranho ser machista sem perceber. Mas eu sou. E não tinha dado conta disso”, diz o ator num determinado momento. A imagem que parece dialogar com a frase de Théo é o próprio ato de queimar uma cueca em cena – em referência à histórica queima de sutiãs, icônica do feminismo no século XX.
Nela, surge uma percepção, muito atual, que talvez não estivesse tão presente nas ondas feministas anteriores: para se combater o machismo, é necessário tanto que a causa diga respeito também aos homens, como também ocorra em ação, numa autorreflexão diária que seja cada vez mais performativa e micropolítica, não apenas teórica e discursiva.
E é por isso que o teatro, em seu incessante tensionamento entre representação e ação, merece ser um lugar privilegiado para uma reflexão-em-convívio, que busque dar conta, a cada novo encontro com o público, de um tratamento cênico condizente com o passado e o presente do feminismo, à altura de sua complexidade.
Ficha técnica:
Concepção e atuação: Cris Moreira e Guilherme Théo
Direção: Cida Falabella
Dramaturgia: Assis Benevenuto e Marcos Coletta
Colaboração artística: Rogério Araújo
Criação audiovisual: André Veloso
Iluminação: Cristiano Araújo

— por Soraya Belusi —
Crítica do espetáculo “Real”, do Grupo Espanca! (Belo Horizonte)
Há sempre uma tensão entre a realidade e a ficção no teatro, quaisquer sejam os lugares e o tempo em que ele se concretiza. Tal tensionamento, conforme a teórica Erika Fischer-Lichte, permitiu ao longo da história, e mais potencialmente na cena contemporânea, uma série de transgressões entre o que entendemos pelo real e pelo fictício. O novo trabalho do Espanca!, que estreou em dezembro de 2015, evidencia esse embate entre vida e arte e propõe uma experiência teatral que afete o espectador anestesiado no cotidiano.
A realidade não é só o tema de “Real – Teatro de Revista Política”. Ela invade a cena, o processo, o espetáculo. Não são atores que se apresentam primeiramente ao público, mas sim a produtora Aline Vila Real, que compartilha com o público as condições com as quais o grupo teve que lidar durante o percurso criativo da obra. Uma realidade que eles não esperavam nunca ter que lidar; embora a vida real sempre estivesse bem pertinho deles, ali, no centro da cidade, do outro lado da porta. De alguma maneira, é disso que também fala todo o trabalho, e a ficção então se apresenta como única possibilidade de existência para aquilo que consideramos não existir mais.
Ao longo de sua trajetória, o coletivo mineiro busca em seus trabalhos desenvolver o que eles conceituam como “poética da violência”. Mais do que responder a esse conceito, me proponho a refletir o que ele nos pergunta como espectadores. Como afetar o espectador? Como traduzir o horror da realidade em uma experiência equivalente em sua potência na ficção? Como gerar uma obra em que esses dois elementos, poética e violência, tenham certa comunhão? “Real” nos responde a isso não na teoria, mas na relação que estabelece com os fatos que lhe serviram de pontapé inicial e com as linguagens criadas pelos dramaturgos que assinam os textos das quatro peças curtas que compõem o programa: “Inquérito”, de Diogo Liberano, “O Todo e as Partes”, de Roberto Alvim, “Parada Serpentina”, a partir de texto de Byron O’Neill, e “Maré”, com dramaturgia de Marcio Abreu.
É como se os textos fortalecessem a poética que acompanha a trajetória do grupo, assim como a encenação potencializa as linguagens que levam as assinaturas dos dramaturgos. “Inquérito” funciona como síntese/cartão de visitas à proposta de “Real”. Diogo Liberano volta à estrutura familiar, que caracteriza “Sinfonia Sonho”, para lidar com aquilo que não tem explicação, e constrói uma dramaturgia que cria diferentes planos ficcionais, como se houvesse a possibilidade de criar furos na ficção para que outra ficção dialogasse com ela. Quem fala diretamente ao público é o personagem mais irreal da cena, a mãe morta, a fantasma de Fabiane Maria de Jesus, mulher que foi espancada e linchada até a morte após ser confundida com uma sequestradora de crianças para cultos religiosos.
“Isso aqui é teatro”, nos alerta a personagem, interpretada por Gláucia Vandeveld, que parece nos lembrar, por meio de sua atuação, o caráter ficcional de sua Fabiane. É justamente um fantasma – quer algo mais não real que uma assombração? – que se dirige ao espectador. O caráter irreal é reforçado pela maquiagem, pelo caminhar de Glaucia, pelas brincadeiras com o cobertor, pelo tom quase canastrão com que o fantasma é construído. Tudo isso só potencializa o tensionamento entre real e ficção, desaguando no momento em que a fantasma nos recorda que Fabiane, este sim, é um nome real.
Esse furo na ficção, que sobrepõe outra camada ficcional, se dá em cenas como as simulações de linchamento feitas pelos personagens, quando seres que estão extracampo, fora da cena, invadem o espaço real da cena para incentivar e/ou apartar o ato violento.
A encenação assinada por Gustavo Bones enfatiza o constante deslocamento entre corpo real e corpo fenomenal, como caracteriza Erika Fischer-Lichte, à medida que dois atores homens interpretam duas meninas ainda crianças, sem para isso mudarem o tom de voz ou a movimentação corporal. Mais uma vez, encontramos nesta dramaturgia referências que podem estar conectadas a “Sinfonia Sonho”, como o jogo como uma saída lúdica para tratar daquilo que não somos capazes, e a inversão de papéis entre crianças e adultos, estes muito mais infantilizados e escapistas que os primeiros.
Em “O Todo e as Partes” o que entra em discussão é o nosso conceito de justiça. O “drama” da primeira peça curta cede lugar à construção de um jogo de duplos opostos, em que não são mais os indivíduos e as relações pessoais que estão no centro da ação, mas justamente a relação entre eles e a sociedade, entre seus atos e seus desdobramentos. A princípio, me parecia o maior desafio para o Espanca! traduzir, à sua maneira, a poética singular proposta por Roberto Alvim em suas obras. Um universo que, aparentemente, se contrapunha às premissas até então trabalhadas pelo grupo mineiro. Mas, assim como em “Inquérito”, esse encontro parece potencializar ambas as poéticas.
O convite a Eduardo Félix, criador e diretor do Pigmaleão Escultura que Mexe, me parece a grande virada para que tais mundos artísticos encontrassem um diálogo possível e potente. À sua maneira, o encenador conseguiu criar um tempo e um espaço que fogem das referências realistas, assim como seres transfigurados, quase inumanos, o que se vê com mais ênfase no ser deformado, meio boneco meio gente, da criatura interpretada por Gustavo Bones – espécie de juiz-voz suprema. O que se vê é um mundo de escuridão, em que os atos não têm motivos aparentes, em que não cabe mais a lógica de causa e consequência. Uma sociedade em que as coisas são assim porque são, e assim continuarão sendo.
Alvim teve como inspiração para seu texto o atropelamento de um jovem que teve seu braço arrancado no acidente, membro que depois foi arremessado na água. É o braço arrancado, com vida e desejos próprios, o verdadeiro personagem da dramaturgia criada pelo artista carioca radicado em São Paulo. Independentemente das escolhas técnicas e de manipulação feitas por Eduardo Félix, algumas das quais poderia criticamente questionar – como a excessiva demonstração da artificialidade do braço e, consequentemente, do próprio ato teatral –, o que busco ressaltar aqui é que a pertinência das opções conceituais diante do material textual a ele oferecido para a construção espetacular.
“Parada serpentina” materializa um desejo antigo do grupo mineiro: criar um espetáculo cuja linguagem referencial fosse a dança contemporânea – que já aparece, em maior ou menor proporção, em outros trabalhos do grupo, entre eles, “Congresso Internacional do Medo”.
Em seu texto “Coreopolícia e Coreopolítica”, o pesquisador André Lepecki, a partir da reflexão sobre a relação entre o estético e o político, os corpos e a cidade, propõe a noção de coreopolítica, na qual, de maneira extremamente resumida, poderíamos entender como a capacidade que a coreografia tem de ser usada “simultaneamente como prática política e um enquadramento teórico que mapeia performances de mobilidade e mobilização em espaços urbanos de contestação”.
A proposta não é encaixar a criação do Espanca! em uma definição/conceituação, mas utilizar esse referencial teórico para com ela dialogar, pensando “Parada Serpentina” como uma performance que compartilha com a política as características de efemeridade, precariedade, de sua ação final ser idêntico ao próprio processo, de não ser uma metáfora do político, mas uma forma de se pensar a relação estético-política.
É o urbano, a polis contemporânea, o material e o fim da coreo-política. “Parada Serpentina”, a partir dos seus modos de composição, busca refletir sobre a relação entre os corpos e a cidade, as forças de poder nela inserida. Uma revolução dos e pelos corpos, em que a carnavalização e motins/montinhos são formas de desestabilizar, problematizar e reconfigurar o urbano e seus sujeitos. A praia da Estação, o Carnaval de rua de Belo Horizonte, a batalha do passinho, experiências estético-políticas que se dão a ver na capital mineira ali na vizinhança do Espanca!, são rearranjadas na composição coreográfica de “Parada Serpentina”, um manifesto político que tem o corpo como via e como destino.
Em “Maré”, Marcio Abreu ofereceu ao grupo mineiro um material caracterizado por uma textualidade performativa, em que as possibilidade de organização espetacular são múltiplas, numa tessitura de vozes, tempos e espaços capazes de explodir a percepção do leitor/espectador.
“Maré” é música. É fluxo. Rima. Melodia. Ação verbal. Rap. Pode ser pagode, quase bolero. É material textual de caráter performativo. As palavras são imagens. Vemos quando escutamos. Estouro. São várias vozes em uma fala. É ao mesmo tempo close e panorâmica. É narração, mas é tragédia. Familiar e social. Fato e ficção. Som no espaço. Estouro. É tempo expandido, espaço reduzido. Entre o privado e o público. O dentro e o fora da porta de casa. O caminho entre um ponto e outro. É Marcio Abreu, mas muito Espanca!. Um encontro entre o material dramatúrgico equivalente à potência para encená-los, criando, sem dúvidas, uma de suas obras mais violentamente poéticas, daquelas que espancam, mas não são mais tão doces assim.
BIBLIOGRAFIA:
LEPECKI, André. “Coreopolícia e Coreopolítica”. Revista Ilha, v13, n1, artigo 3. Santa Catarina, 2011.
FISCHER-LICHTE, Erika. “O real e a ficção no teatro”. Revista Sala Preta, v. 13, n2. São Paulo, 2013.

— por Mariana Lage — Um ensaio e/ou algumas reflexões.
Fotos de Mirela Persichini (1), Mariana Lage (2) e Luiza Palhares (3, 4 e 5)
“O queer não é. Assim como a performance não é”, escrevem Ana Luisa Santos e Fernanda Branco Polse, em prólogo para a edição revista do zine O Que Você Queer. O queer e a performance seriam formas de “pensar o mundo como lugar em que o estranhamento é o nosso habitat, onde toda familiaridade passa a ser suspeita. O objetivo da poesia que fazemos é remover a película de familiaridade que cobre o mundo. É uma poesia-despertador”, escrevem mais adiante. Juntas em diversos âmbitos vivenciais e artísticos, Fernanda e Ana Luisa colocam em prática as proximidades entre o queer e a performance. “A performance é queer”, sintetiza Fernanda em entrevista.
Das múltiplas aproximações entre a performance e o queer há o fato de que ambos se comportam da maneira que menos se espera. Tratam-se de práticas que não se fixam, que questionam e testam os limites e ampliam as bordas do possível e do experienciável, práticas que são imprevisíveis e, por que não, também indomáveis. O queer e a performance estão juntos(as), nesse sentido, como potência criativa.
Pra começar, o queer divide com a performance uma característica basilar: o fato de designarem uma ação em movimento, ou algo sempre transitório e aberto a múltiplas, diversas e, por vezes, contraditórias interseções e/ou atravessamentos. Parecem comportar-se como conceitos que apontam para espaços de trânsito. Mais do que delimitar, de forma estanque e estável, uma definição, uma poética, uma prática, um comportamento, apontam para um desejo de realização cujo resultado não se fecha, não se resolve ou não se pereniza; não dá respostas únicas e/ou unívocas. Mais uma dinâmica e um experimento sempre se realizando do que uma fixação e/ou atualização contingente de uma forma-fórmula já dada.
Se há uma fórmula para o queer e para a performance é a do aberto, da realização em ato, aqui agora, de uma faceta do desconhecido – do ainda não conhecido e/ou colonizado. Sugiro, ainda, como característica basilar que a performance divide com o queer essa potência de realizar em ato o “e/ou”. Sendo uma coisa e outra, ao mesmo tempo, uma e o seu contrário, vivendo, encarnando, os paradoxos de uma forma majestosa (queen and kings queer – drags, faux e/ou whatever) e ampliando o campo do possível.
No que concerne a performance, se não todos, a maioria dos livros que tratam do assunto anunciam, seja de forma breve ou demorada, a dificuldade de delimitar em poucas linhas e características o que seja essa linguagem. Enunciam também o paradoxo que é erigir um conceito que seja maleável o bastante para conter tantas manifestações e tantos empregos diversos para a palavra, a poética, a ação concreta cotidiana ou artística. Há quem critique a performance – como linguagem e como conceito – por isso; desqualificando-a, depreciando-a e/ou descartando-a como indigna de atenção e/ou seriedade. Há quem encontre nessa maleabilidade a sua potência.
Judith Butler, em uma de suas inúmeras entrevistas e palestras, simplificando a explicação do termo queer, disse que “o queer não é uma identidade”, antes, é mais “um movimento que toma uma direção diversa da que é esperada” (1). Queer, em resumo, são formas de vida, identidades de gênero, vivência da sexualidade, atos de fala etc. que contestam normas dominantes. A tradução literal, e cujo emprego por tanto tempo foi pejorativo, é: estranho. Mais do que a fixação de uma identidade (“eu sou isso e tão somente isso”), o queer está no campo da ação, cotidiana, reiterante. “Não só dizemos quem somos, mas fazemos quem somos e pedimos ao mundo que aceite. Eu diria que isso é performatividade”, resume Butler simplificando, mais uma vez, o insimplificável (2).
Nesse sentido, embora haja toda uma discussão sobre a adequação do uso dos termos performatividade e performance para se referir ao queer e/ou às identidades de gênero, é também no campo da ação e dos gestos que o queer compartilha outra característica basilar com a performance. Ambos somente existem em ato. “Performance é reconhecimento. A performance realiza, concretiza, faz passar algo que reconheço, da virtualidade à atualidade”, escreveu Paul Zumthor, em uma de suas definições/descrições da performance. Num outro momento ele disse que a performance implica uma competência específica que se traduz como um saber-ser. “É um saber que implica e comanda uma presença e uma conduta, um Dasein comportando coordenadas espaço-temporais e fisioquímicas concretas, uma ordem de valores encarnada em um corpo vivo” (ZUMTHOR, 2007, p. 31).
Queer na ação concreta e diária – e por que não na performance artística –, contesta as normas sociais de gênero e de sexualidade que são construídas, atualizadas e mediadas linguística e corporalmente. Como a performance, o queer é uma movência. É aquilo que/onde não está. É o lugar do experimento, do inapreensível mas experienciável, do imprevisivel, do mutante. Seu núcleo é o movimento que, como explica Butler, “toma uma direção diversa da esperada”.
Fernanda Branco Polse, proponente ao lado de Ana Luisa Santos, Guilherme Morais e Igor Leal do(a) Trans Residência Experimento Queer, disse num dos dias de conversa com o público durante a programação do 16º Festival Cenas Curtas Galpão Cine Horto: “o queer não me tranquiliza. Ele tira meu sono. Eu não tenho respostas, eu não concordo sempre comigo. O meu desejo muda o tempo inteiro, o meu corpo muda, o meu sexo muda, o meu cabelo muda. Então, o queer veio para mim como uma pulga atrás da orelha, depois como um cão que late, como um despertador. O queer é um tipo de crise, uma lente, um jeito de enxergar o mundo: tudo muda”. No início da fala, a artista já dava o tom da relação constante com a alteridade e a diversidade: “Eu não quero ser um corpo que ameniza as diferença, corpo que alivia as consciências, corpo aspirina, maracugina”. “Saí do armário para ser um ser que se coloca”, pontua.
Se o “queer não te define”, mas “te expande”, como defende Ana Luisa Santos (3), é preciso constante coragem nesse processo sempre presente de estar atento ao próprio desejo, à própria organização maleável, mutante, selvagem da psique, aos impulsos e aos atravessamentos com os quais a sexualidade e a identidade se movimentam e se (re)organizam. É preciso, diria, paz de espírito e clareza mental, e, por que não, um certo tônus da presença (mindfulness), aqui e agora, para assumir e atualizar no plano da ação, do gesto e dos quereres, as diversas formas com que a identidade se atualiza cotidianamente, ao longo dos tempos.
Assim, pois, o drama do queer – um dos tópicos do título desse ensaio – tem múltiplas facetas. O primeiro, sem pensar que há uma hierarquia, é a ausência de reconhecimento social e coletivo da maleabilidade e complexidade das identidades. A negação de reconhecimento social, e portanto, de direito de existência, para aquilo que diverge do estabelecido e do normatizado. E nesse sentido, toda a obra filosófica de Judith Butler se inscreve nessa senda: não só dos estudos e teorias queer, mas das minorias, da luta contra a precariedade, por dignidade e reconhecimento, e das relações de poder e políticas aí envolvidas. Como demonstra o excelente livro de Sara Salih (4), desde sua tese de doutorado em Hegel e em seus trabalhos posteriores claramente influenciados por Foucault e Derrida, a escrita filosófica de Butler mantém, como uma preocupação de fundo, discussões relacionadas ao desejo, à alteridade e à luta por reconhecimento.
O queer pode ser um drama, sem intenção pejorativa com essa palavra, justamente porque uma parte da sociedade nega ao outro o seu direito de ser sua própria identidade. Trata-se da anulação a inúmeros outros da possibilidade de se autointitularem, autodenominarem etc; anulação da capacidade de cada um de ser livre, autônomo(a) e soberano(a). Pode ser um drama também na medida em que se acredita que o queer é uma panaceia para todos os males: pensar que o queer é algo dado, uma fórmula a ser adotada. Não, o queer é (re)inventado na medida em que é vivido por cada um, que deseja mais do que se identificar no estilo “isto é aquilo”, experimentar e deixar-se aberto ao movimento de suas descobertas. Este é aliás um dos aspectos do seu darma. É drama na medida em que se pensa que o queer é uma sombrinha sobre a qual se pode alojar comodamente enquanto chove canivete (de ausência de reconhecimento) lá fora. Se é uma sombrinha, é apenas como campo de partilha e encontro e diálogo das múltiplas investigações das configurações identitárias.
O queer é dármico porque ele lança luz sobre um caminho que apenas uma pessoa – e tão somente uma pessoa – pode traçar: o caminho de sua própria identidade. Elke Maravilha, quando perguntada se se identificava como faux queen (5), respondeu: “Eu sou Elke”. No drama (queen) queer, escolhe-se a palavra queer como um adjetivo, um predicado fixo, como se por si só já provesse as respostas e o caminho. É drama por não entender que o queer é assumir seu próprio ser desviante, único e irrepetível. (“Vai ser gauche na vida” – poderia ser um imperativo queer, retirado do poeta mineiro). E, ao adotar tal adjetivo ou predicado, querer se submeter ou encaixar ou ainda criar uma nova norma, com a qual seria produzido um petit (e falso) conforto de pertença. Se somos semelhantes é na diversidade e na movência. E também na ação de reconhecer e lutar pela identidade, dignidade e liberdade alheia, de todos. Este é o caminho do darma (6).
No darma (queen) queer, você diz: “eu sou, eu sou”, e isso deveria ser o bastante para afirmar sua identidade livre, autônoma e soberana. Mas o darma também não está dado, e é preciso colocá-lo como uma luta diária – por si próprio e pelo outro. Soberania para dizer: “eu sou”. É queer por se recusar a encaixotar-se ou reduzir-se a uma norma ou a uma expectativa. Nesse caminho, contudo, nada é entregue de mão beijada, pois a experiência de descoberta e realização do self só pode ser feita pelo próprio indivíduo. Com todos os seus erros, acertos, percalços, desafios e conquistas. É drama quando se escolhe livremente submeter-se. É darma quando a escolha é “ser, ser”, “eu sou, eu sou”.
Nesse sentido, vale lembrar que o nome dado por Ana Luisa Santos e Fernanda Branco Polse ao zine que desenvolvem é também uma pergunta em aberto: o que você queer? A pergunta que aproxima queer de querer e/ou quereres ilumina essa chamada à responsabilidade no norteamento das próprias ações e escolhas. É chamar para o protagonismo da ação concreta e cotidiana essa liberdade, autonomia e soberania de ser quem se é. Ponto. Sem adjetivações ou predicados. “Eu sou”. É por exemplo testar as bordas do feminino e/ou masculino, criando e performando na vida novas formas de ser, existir, coexistir, relacionar, gozar, amar, reconhecer e respeitar. É se colocar à margem das normas simplesmente porque as normas do que é aceito e reconhecido como masculino, feminino e/ou como sexualidade (hetero, papai/mamãe) não lhe são confortáveis. A diversidade só pode existir posta em prática. E, claro também, respeitando-se o direito à vida, à dignidade e à liberdade.
Experimento Queer
No texto “Por uma performance queer ou a diferença entre desigualdade e diferença”, publicado no terceiro zine O Que Você Queer, Ana Luisa escreve “eu sou uma interrogação”. Esse campo do aberto que o queer divide com a performance ajuda a descrever bem as propostas e os resultados da(o) Trans Residência Experimento Queer (TREQ), acontecido em setembro de 2015 no Galpão Cine Horto e que deve ter uma segunda edição em 2016. “O principal objetivo da trans residência não existe. Porque são vários, somos vários, sem hierarquização, um exercício de abertura entre os integrantes e seus espaços. Em convocatória aberta a qualquer pessoa, artista ou não, ativista ou não, interessada em experimentar, conhecer e discutir sobre arte, política e gênero, colocando a cara e o corpo no sol, porque acreditamos ser uma questão prática. Gerando dispositivos de afetações críticas entre arte e ativismo, explorando estruturas alternativas nas artes visuais e cênicas, ampliando toda e qualquer tipo de categoria”.
Ocorrido ao longo de uma semana, o(a) TREQ se configurou de múltiplas formas: uma sessão de bate-papo em parceria com o site Nada Errado, uma residência artística em performance, “apresentações” de “atos entre” as cenas curtas, uma oficina de zine e uma participação na feira de publicações independentes. Entre todas as ações, o norte se dava pelo desejo de propor um espaço de investigação – coletiva e individual – do que é o queer e, em especial, de como é vivenciado por cada um. Dinâmicas de corpo, estratégias de sensibilização, striptease maré e oficina de pós-pornô foram guiadas com o intuito de deslocar o estranho e o familiar. Estratégias de tentar/testar naturalizar a diversidade a ponto de esgarçar as noções de estranho. E colocar as diferentes formas de viver a sexualidade e o gênero no centro das ações, investigações e conversas cotidianas.
Ricardo Miskolci disse, em palestra do I Seminário Queer: Cultura e Subversão das Identidades (7), que a utopia seria a chegada de um tempo histórico em que a diversidade seria tão socialmente reconhecida e aceita que a adoção do termo queer se tornaria redundante e desnecessária. Mas, até lá, a dimensão política de ações como o(a) Trans Residência Experimento Queer, o zine O Que Você Queer, o espetáculo Trans, e outras vivências como o Campeonato InterDrags de Gaymada, os Afazeres Queer, o Beijo no Seu Preconceito, as festas Miss Dengue e Duelo de Vogues, ações dos coletivos Toda Deseo e Montarya entre outros, além de filmes, performances e bandas musicais, assim como a vivência prática cotidiana, consciente e reflexiva, é tornar visível e concreta a diversidade e lutar por seu reconhecimento. O direito de ser – sem submissões, sem necessidade de permissão ou justificações, sem constrangimentos, sem violências de qualquer ordem.
E a questão salutar do reconhecimento é que ele envolve e deve engajar a todos. Não adianta eu ter meu direito de existência, de liberdade e dignidade reconhecido e respeitado se há inúmeros outros que ainda são alijados desse direito básico. Esse é o caminho do darma e é por isso que o queer é dármico, pois, como se diz comumente no Sikh Dharma, “a minha vitória é a vitória de todos”. E essa vitória então, quem sabe, poderia realizar a utopia vislumbrada por Miskolci.
*Este ensaio, sem pretensão acadêmica, é resultado de frequentes conversas com as artistas e performers Fernanda Branco Polse e Ana Luisa Santos, surgido, em especial, do desejo em dialogar sobre o queer a partir da performance como linguagem artística, dos zines O que você queer? e do(a) Trans Residência Experimento Queer (TREQ).
REFERÊNCIAS:
(1) Conferência magna de Judith Butler no I Seminário Queer: Cultura e Subversões das Identidades, disponível em: http://youtu.be/S7g22OlSFK4
(2) Entrevista de Judith Butler a Folha de São Paulo, disponível em: http://m.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/09/1683172-sem-medo-de-fazer-genero-entrevista-com-a-filosofa-americana-judith-butler.shtml?mobile
(3) POLSE, Fernanda Branco; SANTOS, Ana Luisa. O que você queer. Belo Horizonte (formato revista). 2015. www.oquevocequeer.com
(4) SALIH, Sara. Judith Butler e a teoria queer. Belo Horizonte: editora Autêntica, 2014.
(5) Faux queen: mulheres que adotam o estilo de montação das drag queen. Drag queen, por sua vez, designa a montação fabulosa dos homens. Segundo o Wikipedia, uma faux queen também é descrita jocosamente como “uma drag queen presa num corpo feminino”.
(6) Darma: segundo Yogi Bhajan (mestre de Kundalini Yoga), darma significa “confiança prática”. Darma geralmente designa estilo de vida e ações que visam ultrapassar o jogo das dualidades (bom ou ruim, certo ou errado). Darma também é comumente descrito como: para além de qualquer dogma, prática e estilo de vida onde a realidade é a lei. Literalmente, a palavra em sânscrito significa “aquilo que sustenta, que mantém”. “O significado profundo de dharma não está nas palavras, mas na experiência, na observação verdadeira e na compreensão”, segundo definição oferecida pelo site Dharmalog, que também resume: “Se o universo fosse um rio, o fluxo desse rio seria o Dharma”. Darma seria, assim, ao contrário do carma ou do drama, a vivência e a realização da verdadeira realidade de cada um em consonância com um todo mais universal. Veja uma lista de definições e a palestra The Meaning of Dharma, de Yogi Bhajan.

O Verão Arte Contemporânea 2016 já começou e, como tem feito nesses dez anos de atuação sobre a cena artística de Belo Horizonte, apresenta ao público uma curadoria de trabalhos de pesquisa em diversas linguagens. Abaixo, destacamos nossas indicações da cena teatral.
Confira aqui informações detalhadas sobre essas e outras apresentações da programação do festival.
JANEIRO
“Ignorância” (Quatroloscinco Teatro do Comum) | Quarta a domingo, até 17 de janeiro
Por que ver? Com dramaturgia própria, o grupo coloca em questão as falhas de uma humanidade que se concebe como racional, civilizada e evoluída. O objeto cadeira surge como síntese simbólica que permite uma série de analogias a respeito dos modos como nos apropriamos do mundo, apontando para um processo de desenvolvimento que tem sua faceta utilitária e democrática, mas também persegue privilégios e distinções que produzem uma hierarquização entre sujeitos, compondo uma elite econômica, intelectual e/ou cultural. O melhor do texto – e da montagem – se “personifica” nas conexões que o leitor/espectador precisa executar para estabelecer a tessitura proposta por ambas as linguagens, ou seja, a dramatúrgica e a espetacular. Leias as críticas de Luciana Romagnolli e Marcos Alexandre.
“Rosa Choque” (Coletivo os Conectores) | Quinta a domingo, até 17 de janeiro
Por que ver? A atriz Cris Moreira e o ator Guilherme Théo expõem em cena mecanismos de perpetuação da desigualdade entre os gêneros e situações de violência contra a mulher, invertendo e subvertendo comportamentos naturalizados, de modo a convidar o espectador a um deslocamento do olhar. Com direção de Cida Fallabela e dramaturgia assinada por Assis Benevenuto e Marcos Coletta, o espetáculo conjuga momentos ficcionais e documentais com a força do relato pessoal, e abre-se também à perspectiva masculina, sugerindo que para combater o machismo é preciso também “queimar cuecas”.
“Real – Teatro de Revista Política” (Espanca!) | 21 a 24 de janeiro
Por que ver? O grupo cria representações cênicas para quatro fatos reais contundentes (o linchamento de um mulher; o atropelamento de um ciclista; uma greve de garis; e uma chacina no Complexo da Maré), unindo a força concreta desses acontecimentos a aspectos universais da tragédia humana, como a impossibilidade da explicação da violência e o questionamento das formas de justiça concebíveis, e com o olhar voltado às camadas sociais desfavorecidas. Assim, o Espanca! reconfigura o teatro político contemporâneo e encontra novos direcionamentos artísticos, apropriados às inquietações da sua formação atual e ao contexto presente do país.
4º Janela de Dramaturgia | 23 e 24 de janeiro
Por que ver? O projeto tem sido responsável por fomentar a produção e a experimentação dramatúrgica na cidade especialmente entre jovens artistas, grande parte deles cuja experiência teatral maior vem do trabalho como atores/atrizes. Nesses dois dias, serão lidos os textos de Marcos Coletta (“Origami“), Henrique Vertchenko (“Massa Sonora de Sujeitos em Movimento nº1“), Julia Branco (“Exercício para o Fracasso”), apresentados ao longo de 2015, e Raysner de Paula (“A Menina de Lá“), de 2014. Leia as críticas nos links sobre os títulos.
“Migrações do Tennessee” (Companhia Absurda) | 27 a 31 de janeiro
Por que ver? Tennessee Williams escreveu alguns dos maiores clássicos da dramaturgia, entre eles “A Margem da Vida” e “Um Bonde Chamado Desejo”. A dramaturgia de Eid Ribeiro entrelaça personagens das principais obras do autor, incluindo seus poemas, à vida real do autor americano, em uma atmosfera underground e decadente do início do século passado. Além de ser um belo cartão de visitas para o universo do escritor, já que o espetáculo evidencia alguns dos principais traços e temas de sua escrita, vale a pena conferir o minucioso trabalho de construção dos personagens feito pelo elenco sob a direção de Eid Ribeiro.
“Clínica do Sono” + “Controle de Estoque” (TAZ) | 28 a 31 de janeiro
Por que ver? Os dois espetáculos, escritos e dirigidos por Daniel Toledo (um dos editores do “Horizonte da Cena”), encerram a Trilogia do Trabalho, iniciada com “Fábrica de Nuvens”. Nessa trilogia, o convívio em ambientes de trabalho é problematizado com humor, em tramas que incorporam ainda outras questões urgentes dos tempos atuais, relativas à ecologia humana, desigualdade e exploração. As criações do coletivo TAZ têm se notabilizado por uma dramaturgia que inclui o espectador, fazendo com que ele se coloque em relação à situação ficcional, aproximando o absurdo da cena com a crueza da realidade que vivemos.
FEVEREIRO
“Calor na Bacurinha” (Bacurinhas) | 1º e 3 a 5 de fevereiro
Por que ver? Num momento em que as questões feministas aparecem com força na cena teatral belo-horizontina, o coletivo Bacurinhas faz o espetáculo mais empoderador. Investe na potência da performance dos corpos, libertos das amarras de códigos de apresentação restritivos do comportamento da mulher na sociedade, unindo o festivo ao político. Sob a direção de Marina Viana, o trabalho (que estreou como cena curta) ganhou em interseccionalidade e discurso, acolhendo (em distintos graus) especificidades relativas ao corpo da negra e da trans. Leia a crítica de Joyce Athiê.

Frequentemente associada a numerosas produções cômicas que, ano após ano, atraem muita gente aos teatros de Belo Horizonte, a Campanha de Popularização do Teatro e da Dança, nos últimos tempos, vem também se tornando uma boa oportunidade para acompanhar criações recentes de artistas e coletivos de outros campos da cena teatral da cidade, mais relacionados à pesquisa e experimentação de linguagens.
Reunindo um grupo bastante diversificado de artistas, grupos e coletivos artísticos locais, o Horizonte da Cena elaborou um pequeno calendário com recomendações e apostas dentro da programação da 42ª Campanha de Popularização do Teatro e da Dança. Entre os principais destaques deste ano, figuram o espetáculo “Madame Satã” (Grupo dos Dez) e “Dente de Leão” (Espanca!).
Para informações sobre horários, endereços e ingressos de espetáculos, clique aqui.
Fotos de Letícia Souza e Gabriel Caram.
Janeiro
“Cachorro Enterrado Vivo” | 7 a 18 de janeiro
O texto da autoria carioca Daniela Pereira de Carvalho justapõe três pontos de vista, três subjetividades sobre as quais o ator Leonardo Fernandes cria uma gestualidade animal que vai além da imitação e vira dramaturgia corporal. Pronta a deslocar nosso olhar sobre o animal humano. Leia a crítica de Marcos Alexandre.
“Matinê” | 15 a 31 de janeiro
Com dramaturgia e direção de Rita Clemente, o espetáculo propõe um jogo cênico entre teatro e cinema, e surge como desdobramento da primeira turma do curso de formação de atores e diretores do Sesc Palladium.
“EuCaio” | 15 a 31 de janeiro
O diretor Juarez Guimarães Dias e o ator Matheus Soriedemr refletem sobre o período da Ditadura Militar no Brasil a partir de cartas e contos do escritor Caio Fernando Abreu.
“Os Gigantes da Montanha” (Grupo Galpão) | 28 a 31 de janeiro
Reencontro do grupo Galpão com o diretor Gabriel Villela (de “Romeu e Julieta”) para encenar a peça derradeira de Luigi Pirandello, que escreve sobre o lugar da arte na sociedade. Destaque para o trabalho musical.
Fevereiro
“Dente de Leão” (Espanca!) | 11 a 22 de fevereiro
Escrito por Assis Benevenuto e dirigido por Marcelo Castro, o espetáculo do grupo Espanca! adentra o ambiente escolar para tratar das relações entre alunos, professores e pais, iluminando as engrenagens da repetição/representação de papéis no teatro e na vida, desde a infância. Leia a crítica de Joyce Athiê e Soraya Martins.
“Memorias de Bitita” (Grupo Circo Teatro Olho da Rua) | 11 a 21 de fevereiro
Espetáculo investiga a história da escritora mineira Carolina Maria de Jesus (1914-1977), trazida à cena por três atrizes que que a representam em diferentes fases da vida.
“Do Lado Esquerdo de Quem Sobe” (Mimulus Cia. de Dança) | 12 e 13 de fevereiro
Embora não seja novidade na programação da Campanha, o espetáculo que integra o repertório da Mimulus Cia. de Dança tem ainda apelo para surpreender o espectador em um diálogo singular, divertido e altamente sofisticado entre a dança de salão e elementos da dança contemporânea.
“Ópera de Sabão” (Maria Cutia) | 14 de fevereiro
Com texto de Raysner de Paula e direção de Eduardo Moreira (do Galpão), o grupo Maria Cutia encena um folhetim de rádio e retrata o período de decadência de um meio de comunicação.
“Retina” (Grupo Camaleão) | 19 a 21 de fevereiro
O espetáculo parte da reflexão sobre a dificuldade de reter o excesso de informações visuais do mundo contemporâneo.
“Till, a Saga de um Herói Torto” (Grupo Galpão) | 19 a 21 de fevereiro
Para quem ainda não viu ou quiser rever a atuação de Inês Peixoto como o anti-herói protagonista dessa comédia estreada em 2009, em que o grupo Galpão percorre o território da linguagem popular e de rua com o qual se consagrou.
“Como a Gente Gosta” (Maria Cutia) | somente 20 de fevereiro
O grupo Maria Cutia, sob direção de Eduardo Moreira (do Galpão), conquista a atenção do público da rua com uma versão da comédia romântica shakespeariana costurada por música ao vivo. Leia a crítica de Luciana Romagnolli.
“Thácht” (Armatrux) | 20 e 21 de fevereiro
Dirigido por Eid Ribeiro, é uma construção delicada dos irmãos Rogério e Cristiano Araújo e Eduardo Machado, que têm como referência o universo clownesco de Chaplin e os cabarés do início do século. O espetáculo combina um universo melancólico e absurdo, que marcam a linguagem do encenador com os números populares de variedades e musicais.
“Num Ano com Treze Luas”| 24 a 29 de fevereiro
“Num ano com treze luas” é uma livre adaptação do filme do diretor alemão Fassbinder, dirigida por Lira Ribas e o também cineasta Ricardo Alves Jr. A personagem em foco é Elvira, uma trans que lida com suas questões de gênero e amores não correspondidos.
“Get Out” (Quatroloscinco) | 27 e 28 de fevereiro
Espetáculo-solo de Assis Benevenuto, do repertório do Quatroloscinco Teatro do Comum, coletivo que que tem investido na construção de uma dramaturgia própria e contemporânea. Leia crítica de Luciana Romagnolli sobre o texto.
“Carolina de Lorca” (Grupo dos Dois) | 27 e 28 de fevereiro
Neste solo, a atriz e performer Carolina Correa compartilha reflexões e sentimentos sobre a maternidade, a partir de material autobiográfico e documental. O trabalho conta com projeções de Leonardo Barcelos, do coletivo Teia.
“Primeira Pessoa do Plural” (Cia de Dança do Palácio das Artes) | 27 e 28 de fevereiro
Com direção de Tuca Pinheiro, o espetáculo promete pelo encontro entre a alta capacidade técnica e artística dos bailarinos com a ousadia e a forma peculiar de criação do coreógrafo.
Fevereiro & Março
“Dois Perdidos Numa Noite Suja, Um Drama Musical Brasileiro” | 25 de fevereiro a 6 de março
Dirigido por Fernando Bustamante, que há alguns anos se dedica à pesquisa do teatro musical, em parceria com Poliana Horta. A proposta inusitada de transformar a obra de Plínio Marcos em uma montagem musical gera curiosidade, além da possibilidade de conhecer a produção mineira de um gênero que conquistou o público e o mercado brasileiros.
“Heróis – Uma Pausa para David” | 25 de fevereiro a 6 de março
O solo de Samira Ávila marca o reencontro com seu ex-parceiro de Espanca!, Paulo Azevedo, e a parceria com o estilista e figurinista Martielo Toledo. O espetáculo aborda o universo da música pop e questões existenciais de um grande astro de rock.
“Mamá!” (Zula Cia. de Teatro) | 25 de fevereiro a 6 de março
Dirigido por Grace Passô, “Mamá!” dá continuidade à pesquisa do teatro documentário empreendida pela Zula Cia de Teatro, tendo como ponto de partida relatos reais colhidos ao longo do processo de criação do espetáculo sobre o tema da maternidade.
“Pas de Deux para 2 Mulheres” | 25 de fevereiro a 6 de março
Estreia do dramaturgo e diretor Henrique Vertchenko em espetáculo que se inspira no universo literário da escritora Virginia Woolf.
“Madame Satã” (Grupo dos Dez) | 5 e 6 de março
A montagem do Grupo dos Dez, com supervisão de João das Neves, narra a história do personagem da boemia carioca do início do século 20, Madame Satã. Com composições originais de grande qualidade, o espetáculo conduz um espectador a reflexões sobre racismo, homofobia e desigualdades sociais, convocando posicionamentos sobre violências históricas das quais somos ao mesmo tempo algozes, vítimas e cúmplices. Leia crítica de Marcos Alexandre.

— por Marcos Antônio Alexandre* —
Crítica do espetáculo “Cachorro Enterrado Vivo”, de Daniela Pereira de Carvalho e Leonardo Fernandes.
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Três histórias, três vivências, três “mundos” paralelos… Três seres: um Cachorro, um Rapaz e o Dono do cachorro. Os três em um? Incompreensão dos seres humanos… Os sujeitos e as suas identidades, o “real” transborda no “ficcional”, memória e dor, subjetividades latentes…
“Cachorro Enterrado Vivo”, com Leonardo Fernandes. Fotos de Lia Soares.
Todos os questionamentos e as possíveis assertivas, anteriormente sinalizadas, são trazidos para cena na montagem “Cachorro enterrado vivo. O espetáculo estreou no dia 3 de abril de 2015 no Teatro João Ceschiatti, do Palácio das Artes, sob a direção de Marcelo Fonseca, com dramaturgia de Daniela Pereira de Carvalho e atuação de Leonardo Fernandes. Sabe-se que a dramaturgia tem, em uma notícia jornalística[1], o mote que levou a autora a escrever o texto especialmente para ser interpretado por Leonardo Fernandes, que, em seu primeiro solo como ator, conduz a plateia a experienciar sentimentos múltiplos: autoidentificação, purgação, asco, riso, choro, dor, reflexão.
Após a sua estreia, o ator levou o espetáculo para outros espaços, apresentando-o na “Mostra Tiradentes em Cena”, em maio; no “Festival de Inverno” de Ouro Preto; no “Projeto Ocupação Diálogos” na FUNARTE, em agosto; no Teatro Capucho em Vespasiano, em setembro; no “BH in Solos”, no Esquyna Espaço Coletivo Teatral, em outubro; e no “Encontro SESI de Artes Cênicas”, novembro em Araxá. Retomar os caminhos percorridos por Leonardo Fernandes até o presente momento serve-me como justificativa para que eu possa corroborar a relevância de seu trabalho, o potencial e a abrangência da obra que, aqui, busco comprovar.
Na página da rede social Facebook, “Espetáculo Cachorro Enterrado Vivo”, o artista descreve uma breve sinopse do espetáculo, a partir da qual são trazidos alguns questionamentos para discussão:
Até onde nos vemos de dentro pra fora? O que difere instinto e razão? Até onde nossa blindagem emocional não é subvertida e desorienta nossas escolhas? A memória não é uma especificidade humana – a noção de perda existe em várias espécies. Um cão e um homem que dividem uma vida dividem a mesma dor. “Cachorro Enterrado” Vivo é um texto baseado em fatos reais e reflete sobre os limites da crueldade humana.
Refletir sobre os limites da crueldade humana… Como?
A dramaturgia proposta é dividida em “três monólogos subsequentes que devem ser interpretados pelo mesmo ator” (indica uma rubrica da autora). Cada um desses monólogos tem uma voz que é personificada: a do Cachorro – composta por brados, grunhidos, lamentos –; que dá lugar à voz – histórias, subjetividades, memórias – do Rapaz; que, por sua vez, acaba sendo concretizada nas falas do Dono do Cachorro. Isso se dá a partir de um enredo aparentemente simples: um cão ladra/“fala” de sua situação de abandono depois que sua dona deixa a casa onde vivia “feliz” na sua companhia e de seu esposo (Paulo Vítor), que passa a odiá-lo por ter sido abandonado pela mulher, que deixa o lar sem maiores explicações, fazendo com que ele fosse obrigado a cuidar do cachorro de estimação (Paulo César) e que, por conseguinte, ele passa a julgar como o responsável pela separação. Por isso, o Marido contrata o Rapaz para dar fim ao animal, enterrando-o vivo.
No texto inicial da peça, enuncia-se a perspectiva do Cão, que denuncia a sua condição de maus tratos do dono, relevando um triângulo de afetos e desafetos e explicitando o porquê da rivalidade entre ele e o seu Dono:
São 250 milhões de células olfativas. A memória entra pelo nariz – junto com o oxigênio. O cheiro dos pés, das mãos, da parte entre as pernas dela… O que eu era capaz de enxergar nunca passou de uma mínima fração daquilo tudo o que eu podia sentir, pelo focinho, quando ela se aproximava. Está tudo ficando distante agora. Sumindo… Junto com ela que, simplesmente, desapareceu do mundo. […] Há cinco dias, ou cinquenta anos, que estou acorrentado aqui e ele só entra e sai pela porta da sala. Para me evitar, provavelmente… É… Eu não devia ter tentando pulverizar a panturrilha dele e rasgar em tirinhas o tendão! Não consegui me controlar – ele chegou perto demais. Ele tem aquele cheiro horrível! Ele tem aquela cara horrível! Ele costumava esfregar a cara horrível e o corpo fedido dele, nela – o que me deixava puto. Quando eu ia me deitar no colo dela, ela estava cheirando a ele. Porra! Esse idiota a contaminava. Foram quatro os ataques realmente graves que promovi contra ele – desde que ela se foi. Teve sangue em todos. Antes, eu só rangia os dentes. Ela me acalmava, me aquietava. Achava graça da minha embocadura. Mas agora, uma vez sozinhos por tanto tempo, eu e ele, nesse convívio de odores detestáveis, mandei ver, com toda força, minha mandíbula, na primeira vez, em seu antebraço. Em uma segunda ocasião, na mão dele. E, aí então, depois, nas costas, altura do rim. Agora, por último, na panturrilha – tentando chegar ao tendão para destroçá-lo e o aleijar. (CARVALHO, 2015, sp)
Por que e o que representa dar voz ao cachorro? Similitudes vividas pelo cão-homem e pelo homem-cão? Quais são os limiares de correspondências semânticas entre os seres “racionais” e “irracionais”? Quem é “irracional” nesta história? Vários outros questionamentos poderiam ser feitos como resposta a uma tentativa de leitura da dramaturgia proposta por Daniela Carvalho.
Ciente desta polifonia de ressignificações cênicas e diante das múltiplas possibilidades de repensar a peça e a sua versão espetacular, o “discurso” do cão me chama a atenção, pois parto do princípio de que o mesmo possa ser visto como uma alegoria social, a partir da qual são discutidas questões relacionadas à memória, ao sofrimento, às subjetividades dos sujeitos e, sobretudo, acerca de um tema presente em nossa sociedade e que vai ao encontro de minhas urgências pessoais enquanto sujeito – indivíduo social, professor, pesquisador –, a ideia de “refugo humano”. Por isso que as associações propostas pelo poema de Manuel Bandeira ainda se fazem latentes há mais de sessenta anos após a sua escrita. O “bicho homem” continua presente nos pátios, nas ruas dos grandes centros urbanos e em todos os espaços sociais.
O tempo passou, mas a enunciação é a mesma? Neste sentido, enterrar o cachorro vivo representa, também, “enterrar” – sepultar, omitir, esconder, destruir, invisibilizar – tudo aquilo (e aquele) que não “merece” ser visto a partir do olhar de parte da sociedade. Trata-se de um grupo visto como excedente, dispensável, como o Cachorro que, para o Dono, não tem mais nenhuma função, a não ser reforçar o sentimento de isolamento e solidão deixado pelo vazio que se formou em si com a partida da esposa; ou seja, a memória pessoal insiste em não cumprir com o rito mnemônico impossibilitando qualquer tipo de esquecimento. Zygmunt Bauman corrobora a ideia de uma população que não integra à ordem do dia e que é composta por sujeitos invisibilizados por distintas questões:
A “população excedente” é mais uma variedade de refugo humano. Ao contrário dos homini sacri, das “vidas indignas de serem vividas”, das vítimas dos projetos de construção da ordem, seus membros não são “alvos legítimos” excluídos da proteção da lei por ordem do soberano. São, em vez disso, “baixas colaterais”, não intencionais e não planejadas, do progresso econômico. (BAUMAN, 2005, p. 53)
Ou seja, a esses indivíduos não lhes são [foram] permitido gozar das benesses de uma sociedade tida como globalizada. Ratificando os seus argumentos, Bauman ainda acrescenta:
As pessoas supérfluas estão numa situação em que é impossível ganhar. Se tentam alinhar-se com as formas de vida de hoje louvadas, são logo acusadas de arrogância pecaminosa, falsas aparências e da desfaçatez de reclamarem prêmios imerecidos – senão de intenções criminosas. Caso se queixem abertamente e se recusem a honrar aquelas formas que podem ser saboreadas pelos ricos, mas que, para eles, os despossuídos, são mais como veneno, isso é visto de pronto como prova daquilo que a “opinião pública” (mais corretamente, seus porta-vozes eleitos ou auto-proclamados) [sic] “já tinha advertido! – que os supérfluos não são apenas um corpo estranho, mas um tumor canceroso que corrói os tecidos sociais saudáveis e inimigos jurados do “nosso modo de vida” e “daquilo que respeitamos” (BAUMAN, 2005, p. 55, grifos meus)
Nesta mesma linha, temos o testemunho do Rapaz que é contratado para dar cabo no Cachorro, enterrando-o vivo e, a partir dele, nos deparamos com outros conflitos: receber vinte e cinco reais para enterrar o “animal”:
Vinte reais paga o serviço? Eu respondi – Vinte e cinco. Vinte e cinco paga! E ele disse simplesmente – Pode ir abrindo a cova que eu vou lá pegar o bicho… […] E eu cavei o buraco. Então, ele voltou. Me entregou o cachorro pela coleira, me deu a grana, virou de costas e se mandou. Eu não entendi nada… Fiquei sem reação. É para enterrar o cachorro vivo, então? É isso? Porra, eu devia ter pedido umas cem pratas! Olha para esse bicho… Tá no osso. Deve estar com alguma doença e, ao invés de sacrificá-lo, o dono resolveu o problema me pagando vinte cinco reais por um enterro de corpo vivente… (CARVALHO, 2015, sp, itálicos da autora)
Enterrar o Cachorro vivo é a maneira que o marido, Paulo Vítor, encontra para vingar-se do “bicho” pelos ataques sofridos, mas, sobretudo, por ter dividido o coração de sua esposa com ele. Para o Rapaz, representa rememorar os momentos de felicidade que vivenciou com o seu cachorro Porshe, cão pretinho, pretinho como o carro de seus olhos. O ato de “enterrar” o animal aflora a memória e é leitmotiv para fazer reverberar as piores ações do “bicho homem”, desvelando a potência da imagem do refugo.
Eu gostava do meu cachorro. Ele era gordinho, limpinho… Não era, assim, um farrapo canino como você. Que tipo de animal você deve ser para merecer esse tratamento? Ou, então, que tipo de animal era aquele cara que cuidou de você como se fosse… Sei lá! Um pano de chão. O Porsche e eu, nós éramos assim… Muito ligados. Ele era meu companheiro! (CARVALHO, 2015, sp, grifos meus)
Os sentimentos evocados atravessam o espectador, que se sente tocado tanto pelas palavras do Rapaz quanto pela sina do Cachorro: “Você mal parece um ser da sua espécie. Que tipo de monstro é você, hein? E eu? Será que eu sou o tipo de monstro capaz de te enterrar vivo?” (idem). A situação de refugo, de rejeito, é ressignificada por meio das imagens e do discurso impresso que se potencializam cenicamente na interpretação do ator, Leonardo Fernandes. As vozes do Cachorro e do Rapaz abrem espaço para as vozes do Dono do Cachorro que vão completando as “lacunas” deixadas ao longo da dramaturgia. Exige-se do espectador uma postura atenta, um estar disposto a dar sentido a todo discurso verborrágico daquele homem – um sujeito de classe média, que em algum momento foi um marido atencioso e feliz com sua esposa e com o seu cachorro, mas que também acaba se transformando em “refugo humano”:
Você pode medir a distância através do espaço ou através do tempo. Quantos mais dias se passam, mais longe um do outro nós ficamos. E se ela entrar por essa porta agora e perceber que aquele filho da puta de quatro patas não está mais aqui? Será que vai virar de costas e sair correndo me amaldiçoando definitivamente? Se perguntar o que aconteceu com ele, o que eu vou dizer? Você não me deixou escolha, querida. Eu tinha que reagir de alguma maneira. Tinha que me vingar… Devido ao modo como a minha memória funciona, não consegui me apegar às boas lembranças que você – aparentemente – havia deixado para trás. Tudo o que ficava martelando na minha cabeça era essa final sem desfecho no qual fui abandonado sem qualquer informação. Ele me mordeu várias vezes, depois que você sumiu. O que, antes, era apenas uma ameaça – a vontade dele de me triturar – tornou-se real. Ele me culpava pelo seu desaparecimento – dava para ver isso naqueles olhos furiosos. Então… Eu mandei enterrá-lo vivo. Eu mandei enterrá-lo vivo. Paulo César. Paulo César… Eu mandei enterrá-lo vivo. Meu Deus, o que foi que eu fiz! Eu mandei enterrá-lo vivo! Eu paguei para que o enterrassem vivo… Se ela voltar, não vai mais poder me amar… (CARVALHO, 2015, sp, itálicos da autora)
Mais uma vez, o ato de enterrar se personifica como uma alegoria social, revelando a pisque deste sujeito: homem, animal, bicho-homem, homem-bicho, refugo de si e do Outro…
Voltando o olhar para a montagem, chama-me a atenção a qualidade do cenário e do figuro criados por Cícero Miranda. A riqueza de detalhes utilizada na concepção do cenário surpreende. O espectador é convidado a adentrar um espaço underground cheio de pequenos objetos cênicos – garrafas, ventilador velho, telefone quebrado, rádio, papéis espalhados pelo chão, pedaços de madeiras, tela de computador, molduras sem as pinturas, peneira, roda de carro, sucatas e quinquilharias de todas as espécies –, o chão coberto por pó de terra, uma pá etc. Esta ambiência também nos possibilita a leitura do refugo, do descarte. E é neste espaço com palco todo coberto, aos fundos, por uma tela (rede) de arame entrelaçado que o espetáculo vai sendo construído às vistas do espectador. Uma alusão à prisão, ao cárcere pessoal e simbólico? Assim, este espaço rico em detalhes se configura como o apartamento do dono do Cachorro, Paulo Vítor, como o canil de Paulo César, muito bem destacado e delineado no cenário por meio de um buraco feito na tela por onde o ator/personagem faz a transição do Cachorro para o Rapaz.
Vale a pena destacar que o cenário proposto potencializa também a ideia de uma dramaturgia do espaço para a configuração do texto espetacular. A peça estreia na Sala João Ceschiatti, palco que possui uma estrutura de semiarena e esta característica traz uma proximidade entre o ator e a plateia, contribuindo para que o público se sinta mais “dentro” da cena. Os detalhes tanto do cenário, quanto do desenho de luz (idealizados por Wladimir Medeiros), quanto da atuação do ator, podem ser mais delineados perante o olhar do espectador. Posso dizer que, de certa forma, estas nuanças também são mantidas nos outros espaços aos quais eu tive oportunidade de rever o trabalho. Se na FUNARTE – um espaço alternativo mais amplo –, o olhar do espectador teve que ser mais atento para recuperar e apreciar cada detalhe técnico; no Esquyna – por suas características físicas de uma caixa cênica menor e condensada –, a plateia se colocou ainda mais próxima do ator em cena. Esta relação de proximidade pode, em princípio, vir a possibilitar um maior envolvimento por parte do público. Não obstante, o que deve ser destacado é que o espectador não sai imune à dramaturgia do espaço de cada lugar de representação e isso só é viabilizado devido à atuação de Leonardo Fernandes, que surpreende o tempo todo com sua performance ao corporificar as três personagens-personas em cena, o Cachorro, o Rapaz e o Dono do Cachorro.
Diante do exposto, ressalto o excelente trabalho de Leonardo Fernandes. As partituras corporais e vocais do ator são utilizadas para composição cênica-visual visando diferenciar cada personagem [persona] de forma precisa. Logo no início do espetáculo, o espectador se depara com ator na “pele” do Cachorro. A gestualidade do ator – associada a uma maquiagem que destaca o rosto e os olhos do homem/cão e ao figurino composto por joelheiras e uma sunga em tom marrom “terra”, com uma tornozeleira que mantém a perna esquerda acorrentada – é bem demarcada, evidenciando particularidades que desvelam aos poucos as características do cão: grunhidos, tônus vocal, respiração entrecortada para demonstrar as distintas facetas do cão; do lamento, do choro, da agonia, do desprezo e da raiva sentida pelo Dono até a afecção que o leva ao estado de refugo. Ao mesmo tempo, o ator também trabalha com leves toques de humor ao compor a persona do Rapaz, que surge sem camisa, usando botas e dançando um hit dos anos 80. Vê-se em cena o uso de gestualidade mais rápida, um discurso ágil, verborrágico mesclado por uma linguagem inconclusa, revelando a pouca instrução e o lugar de enunciação deste sujeito pertencente à classe popular. E, por fim, o ator apresenta uma corporalidade mais tensa, com gestos mais desconexos, arrasta-se de uma perna (fruto dos vários ataques sofrido pelo Cachorro) e trabalha com um olhar “perdido” e, ao mesmo tempo, “mórbido”, demostrando certo caráter de bipolaridade que se casa perfeitamente com a persona do Dono do Cachorro.
Leonardo Fernandez com sua performance, quiçá, inaugura e evidencia uma interessante “tendência” que foi trazida para a cena teatral em Belo Horizonte, em 2015, e que diz respeito à relação entre o “real” e o “ficcional”. São urgências de vários coletivos que voltaram os seus olhares para a nosso cotidiano tendo como foco de análise todos os problemas sociopolíticos aos quais estamos sendo submetidos. O sujeito contemporâneo diante de tantos enfrentamentos não pode – ou pelo menos não deveria – passar ileso aos embates que vêm sendo produzidos por este “real”/“ficcional”. Diante de tudo isso, “Cachorro Enterrado Vivo” cumpre com o objetivo de trazer a reflexão para cena. Não há como sair ileso depois de assistir o espetáculo. Como sinalizado anteriormente, as análises podem ser distintas. Aqui, tratei da questão do “refugo humano” e indaguei sobre a minha leitura da peça baseada na assimilação e na aceitação de uma alegoria do sujeito contemporâneo, daquele que fecha os olhos para não ver quantos “cachorros” – leia-se crianças, mulheres, jovens, prostitutas, homossexuais etc. – têm sido enterrados vivos em nossa cidade, em nosso estado, em nossa nação. “Enterrar vivo”, esquecer, espancar, humilhar, invisibilizar, silenciar, subjugar, matar…
As perguntas e as afirmações continuam sendo ressignificadas e não se calam…
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
CARVALHO, Daniela Pereira de. Cachorro enterrado vivo. In: Ensaia: revista de dramaturgia, performance e escritas múltiplas. Edição Zero, junho 2015. Disponível em: http://www.revistaensaia.com/#!cachorro-enterrado-vivo/c11pc. Acesso: 18 dez. 15.
BANDEIRA, Manuel. O bicho. Disponível: http://www.jornaldepoesia.jor.br/manuelbandeira03.html.
[1] O ator informa que na página “Espetáculo Cachorro Enterrado Vivo”, no facebook, que “[o] “ponto de ignição” do texto do Espetáculo Cachorro Enterrado Vivo foi essa matéria Cachorro é resgatado após quase ser enterrado vivo pelo próprio dono” (disponível em http://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2014/04/cachorro-e-resgatado-apos-ser-enterrado-vivo-pelo-proprio-dono.html).
*Faculdade de Letras/UFMG – CNPq

– por Marcos Alexandre
Cadeira…
Cadeiras…
Cadeiras e mais cadeiras…
Um emaranhado de cadeiras…
Um cenário de cadeiras…
Dois atores, cadeiras…
Um casal de atores e cadeiras…
Ítalo Laureano e Rejane Faria, rodeado por cadeiras…
Esta é a cena com a qual nos deparamos, como espectadores, para assistir a Ignorância, o novo espetáculo do grupo Quatroloscinco – Teatro Comum[1], no Galpão 3 da Funarte – MG, e essa mesma cena/imagem se repete na sala do Teatro João Ceschiatti, do Palácio das Artes um mês depois da estreia oficial da montagem.
Já um pouco distanciado no tempo e no espaço, eis-me aqui sentado, na “cadeira” de minha sala, lugar onde estudo, reflito e produzo meus textos, e, a partir do qual, escrevo sobre Ignorância, este instigante novo texto dramático/espetacular do grupo Quatroloscinco, que estou tendo o privilégio de apresentar nestas linhas as minhas impressões.
Em primeiro lugar, devo agradecer a Marcos Coletta pelo convite e pela confiança que me foram depositados para deixar aqui impresso o meu olhar sobre o trabalho do coletivo que tanto admiro e a quem venho seguindo desde o seu surgimento. No primeiro momento, no espaço acadêmico, para, logo depois, ganhar os palcos da cidade, que os levou para outros estados e países apresentando suas montagens: É só uma formalidade (2009), trabalho gestado dentro do curso de teatro da UFMG, mas surgindo oficialmente, em 2008 como uma cena curta apresentada no Projeto Cenas Curtas do Galpão Cine-Horto; Nada Aconteceu (2010), que surge por meio de uma parceria com a Cia. Clara, com direção de Anderson Aníbal; Outro Lado (2011); Get Out! (2013), solo de Assis Benevenuto; e Humor (2014). Em segundo lugar, não posso deixar de parabenizar o grupo pelo esforço contínuo para realizar a publicação de suas peças[2] num contexto em que os editoriais brasileiros demonstram tão pouco interesse em investir em publicações teatrais, visto que a dramaturgia, quase sempre, não traz lucro para investidores e, muito menos, para as editoras.
Voltando o foco para o texto Ignorância, a dramaturgia de Assis Benevenuto e Marcos Coletta nos faz pensar em questões que estão eclodindo em nossa contemporaneidade: qual o lugar dos sujeitos em nossa sociedade? Como decodificar a “metáfora” da IGNORÂNCIA proposta? Como se entrecruzam os aspectos relacionados como o “real” e o “ficcional”? Quais as urgências que estão por detrás do subtexto da IGNORÂNCIA? As respostas a estas perguntas são trabalhadas no texto dramático – e, por sua vez, no espetáculo – em forma de provocações que propiciam que o leitor/espectador possa se ver representado por meio das cenas, estabelecendo as suas próprias reflexões.
Neste sentido, podemos afirmar que o texto dramático e a montagem realizada pelo Quatroloscinco abrem um leque de possibilidades de leituras. O texto está dividido em sete partes bem significativas: “As cadeiras”, grande mote do espetáculo e eixo norteador destas reflexões; “Negro amor”; “A reunião de pais”; “Os cientistas”; “A galeria de Arte”; “A fronteira” e “O homem da bola”. É interessante observar que estas partes – que também poderíamos nomear como “cenas”, “imagens”, “movimentos”, “percursos”, “quadros”, “[sub]atos” etc. –, em princípio, poderiam ser vistas como desconexas. No entanto, o que se nota é que o melhor do texto – característica que, na montagem, ainda se torna mais inerente – se “personifica” justamente nas conexões que o leitor/espectador precisa executar para estabelecer a tessitura dramatúrgico-cênica proposta por ambas as linguagens, ou seja, a dramatúrgica e a espetacular.
É a partir desta premissa que considero fundamental “ler” a peça em sincronia, e em sintonia, com a sua montagem; e este privilégio é o que me permite compreender como, neste trabalho do Quatroloscinco, o texto se enaltece com a proposta espetacular realizada pelos seus integrantes. Se Assis Benevenuto e Marcos Coletta, por meio de uma escrita a quatro mãos, dão vozes às latentes “ignorâncias” sociais às quais nos submetemos e das quais somos partícipes, seja agentes ou pacientes; Ítalo Laureano e Rejane Faria corporificam e presentificam[3] as inúmeras “cenas” em que momentos de “insensatez” são trazidos para o espaço cênico, remetendo-nos a algumas passagens de nonsense e que se aproximam da estética do absurdo.
Esta construção dramatúrgica e cênica aparece, a título de exemplo, na cena “A reunião de pais”, a partir da qual os atores simulam um jogo ágil e performativo em que várias “cadeiras” são ressignificadas, assumindo, assim, as supostas identidades de diferentes pais e mães. O que se vê e é reverberado no jogo cênico/textual é, de um lado – “cadeira” – a figura de um pai que conversa ao telefone, e, do outro, uma mãe (que se desdobra em várias outras mães) que participa de uma reunião escolar em que o tema é o comportamento do filho. Buscando ressignificar e decodificar as metáforas da[s] “cadeira[s]”, poderia argumentar que tudo parte da angústia de uma das mães que vê um desenho de seu filho e, nesta suposta reunião escolar, se dá conta de que não “conhece” o seu filho, que tem hábitos, no mínimo, estranhos e que beiram a psicopatia. De forma bem-humorada – lembremos que o humor é uma característica comum nos textos/montagens do Quatroloscinco –, o leitor/espectador vai se inteirando que há um desvio de caráter nas atitudes supostamente “inocentes” da[s] criança[s] ali presente[s] e tudo isso vai sendo desvelado com uma leve pitada de ironia que vai se delineando nos discursos pronunciados pelas personagens/“cadeiras”.
MÃE DE ÍCARO – Ícaro sempre foi um garoto tranquilo e normal. Somos uma família normal, linda, presente, não temos problema com álcool, doenças, essas coisas.
PSICOPEDAGOGA – Vocês pertencem a alguma religião?
MÃE DE ÍCARO – Não, quer dizer, não especificamente, mas isso não é um problema para nós. A gente convive com amigos de diversas religiões, que frequentam nossa casa, os filhos dos amigos… aqui mesmo na escola, que é uma escola…
PSICOPEDAGOGA – Católica.
MÃE DE ÍCARO – Católica. (Chora). Não sei por que Ícaro começou a fazer esses desenhos… (Olha para um desenho em suas mãos e chora de desespero)
PSICOPEDAGOGA – Calma, estamos aqui para conversar sobre isso, não é mesmo gente? É fato que esses desenhos têm assustado um pouco alguns de nós. Esse desenho do gato sacrificado?
MÃE DE ÍCARO – (Ela se assusta) Eu não sei o que dizer.
PSICOPEDAGOGA – Vocês têm animais em casa?
MÃE DE ÍCARO – O nosso gato de estimação desapareceu… Procuramos por toda a vizinhança. Pensamos em tudo… Gatos são animais de alma selvagem, talvez pudesse ter ido embora, ou um atropelamento… Nessa semana eu fui arrumar umas coisas na garagem encontrei o gato.
PSICOPEDAGOGA – Que bom!
MÃE DE ÍCARO – Ele estava morto. Será que esse desenho… Oh meu Deus, será que foi Ícaro que/
PSICOPEDAGOGA – Olha, senhora, crianças matam animais de estimação. Digo, acidentalmente, claro. Eu mesma quando era crian… Mas o que parece um tanto estranho são esses desenhos do Ícaro. Todos envolvem pedaços de corpo, ou tipos de carne, ou sangue… Ele desenha quase tudo com o lápis da cor vermelha, ou tons parecidos.
MÃE DE ÍCARO – Ele adora artes.
PSICOPEDAGOGA – A professora de artes elogiou bastante seu filho. Mas esses desenhos são da disciplina do ensino religioso.
MÃE DE FLÁVIO – Olhe para este.
PSICOPEDAGOGA – Sim. Uma criança bebendo um copo de leite tirado de uma vaca. No entanto, a cor do leite que sai das tetas da vaca é vermelha.
MÃE DE ÍCARO – Da mesma cor do líquido que está dentro do copo que a criança bebe!
PSICOPEDAGOGA – E esta vaca?
MÃE DE ÍCARO – O que tem? (Ela observa o desenho) Parece que falta uma perna nessa vaca!
Neste hipotético jogo de “troca de cadeiras” a partir do qual as várias mães passam a discutir a atitude o garoto Ícaro, são trazidas para a cena ações do cotidiano escolar que não encaixam com o modelo social pré-estabelecido. Como naquele jogo de retirar as “cadeiras”, vai sendo trazido à tona parte “obscura” daqueles sujeitos que preferem fazer vistas grossas às evidências que se personificam à sua frente: a mãe que não conhece o seu filho, os pais que não se importam com a educação dos filhos, pois têm outras prioridades para preencherem o seu cotidiano – trabalho, dinheiro, poder etc. – impossibilitando que voltem o olhar para a família; a escola que não consegue cumprir com o papel de “educar” e acaba sendo omissa, negligenciando o seu lugar de fala. IGNORÂNCIAS?…
Outro momento primoroso do texto/espetáculo se concretiza no quadro[4] “A galeria de Arte”. Mais uma vez, o grupo recorre ao uso do humor como estratégia de composição dramatúrgica e espetacular. Não obstante, o riso aqui é mais exacerbado. O leitor/plateia se delicia com o encontro de duas personagens representantes de duas classes sociais distintas e que acabam imprimindo as suas “origens” por meio dos discursos: “Ruídos de móveis que se arrastam pelo chão. Os atores manipulam cadeiras e transformam a cena em uma galeria de arte. Uma das cadeiras está em destaque. Duas pessoas que não se conhecem observam as obras expostas no espaço.” (BENEVENUTO, COLETTA, 2015, sp). Uma Artista e um Eletricista.
Ela é excêntrica, “antenada”, inteligente, viajada, escritora, fotógrafa, ativista, conhecedora de Arte e frequentadora de museus. Ele é simples, humilde, de pouca instrução, pinta como hobby e é a primeira vez que se atreve a entrar num museu, por acreditar que aquele lugar tem algo de “sagrado” que, em princípio, não condizia com a condição social. Por meio de um diálogo rápido e cheio de “desencontros discursivos”, a dramaturgia vai nos colocando diante de duas representações de mundo completamente antagônicas. Ela o depositário dos “saberes”, do “conhecimento”; Ele o prospecto da “ingenuidade”.
ARTISTA – Me desculpe, eu não queria te chatear! É que essa artista me inspira muito. E eu fico assim… empolgada!
ELETRICISTA – Você trabalha aqui?
ARTISTA – Não. Mas venho sempre, você já deve ter me visto nos corredores.
ELETRICISTA – Não. É a primeira vez que eu entro aqui.
ARTISTA – Sério? Que legal!
ELETRICISTA – É. Eu passo aqui em frente todos os dias e nunca entrei.
ARTISTA – E por quê?
ELETRICISTA – Por que eu trabalho no quarteirão de cima.
ARTISTA – Não. Porque nunca entrou?
ELETRICISTA – Não sei… Hoje eu saí mais cedo. E decidi entrar. Eu achava que pagava para entrar.
ARTISTA – E está gostando?
ELETRICISTA – É… É legal.
ARTISTA – Legal?! (para o público) Legal… Victoria Bergman, legal. Uma das artistas mais inventivas e provocativas da arte contemporânea nos últimos vinte anos, legal…
ELETRICISTA – (…)
ARTISTA – Eu estou pensando em fazer um mestrado sobre ela…
ELETRICISTA – Mestrado?
ARTISTA – Realizando um recorte temático de sua fase mais política, que começa com a série de não objetos pictóricos, em relação às tensões sociais ocorridas na Europa na última década, imigração, ataques terroristas, estas coisas.
ELETRICISTA – Eu não entendo o que a senhora diz… (BENEVENUTO, COLETTA, 2015, sp)
Neste jogo de um suposto diálogo diante de um objeto de arte, uma instalação digna de uma artista de renome internacional – uma cadeira calçada por uma folha de papel dobrada em várias partes –, os diálogos vão se estreitando e, por sua vez, as diferenças vão se aguçando e, neste atrito discursivo e irônico, o humor vai em um crescendo delineando a cena:
ARTISTA – Não você, exatamente, mas gente como você. (Para o público) É que é muito bom quando um lugar como esse, a princípio tão específico, para alguns até elitista, coisa que eu não concordo, não mesmo, é visitado por pessoas comuns, ordinárias, que nada têm a ver com a arte. É neste momento que este lugar mostra sua missão, a sua funcionalidade, afinal, para que serve a arte se não para interferir diretamente na vida das pessoas comuns, não é?
ELETRICISTA – E fica assim sempre vazio?
ARTISTA – Vazio?
ELETRICISTA – É… eu não contei nem 40 pessoas. Para um espaço tão grande… (BENEVENUTO, COLETTA, 2015, sp)
As palavras e os discursos da Artista que, em princípio podem ser associadas com elucubrações sobre o seu olhar diante do objeto obra de arte, “cadeira”, vão tomando ares de derrisão. “Isso não é uma cadeira”[5], o Eletricista não tem “propriedade intelectual” para vê-lo e, muito menos para apreender todo o discurso hermético e verborrágico que lhe é despejado:
ARTISTA – Você entende… Você é incapaz de diferenciar significado de significante, obra de objeto. Você não sabe o que é reprodução, mímesis, mediação simbólica. Arte não é matéria, arte é conceito e isso você nunca vai entender. E se você não consegue compreender isso, você nem deveria ter entrado nesse museu. Você jamais será um artista… Jamais. Artistas são pessoas diferenciadas, brilhantes, iluminadas, e você jamais será um. E se você não sair daqui agora, eu vou fazer um escândalo. Eu vou dizer que você queria roubar esta obra. Não, pior, vou dizer que você tentou me obrigar a sentar nesta obra para abusar sexualmente de mim em cima dela.
Ela se senta na obra e simula uma relação sexual com a cadeira, criando uma situação embaraçosa para todos os presentes até o limite do constrangimento.
ELETRICISTA – Senhora… Senhora… Senhora… (BENEVENUTO, COLETTA, 2015, sp)
Não posso deixar de destacar que o humor aqui busca reflexão e autocrítica: quantos de nós não nos prendemos a discursos construídos pelo Outro sem nenhum questionamento e saímos propagando, muitas vezes, opiniões equivocadas, sexistas, ingênuas, não fundamentadas e por aí vai… “A[O] artista está presente” já nos provocou e nos levou a muitas ponderações, com suas obras performáticas, Marina Abramovic[6]. O que significaria na nossa contemporaneidade “estar presente”? Em que sentido estamos e nos vemos presentes? Até que ponto se legitima e é legitimado o conhecimento? Quando ignora a reciprocidade de resposta do Outro? IGNORÂNCIA?!…
Dentro desta perspectiva, o riso do leitor e/ou da plateia vai sendo também ressignificando. Se, em princípio, durante a representação da peça, escutamos risadas tímidas que se tornam fortes até se converterem em gargalhadas da plateia; em seguida, escutamos risos esparsos, nervosos, incomodados… A metáfora da “ignorância” é decodificada.
Não posso deixar de retomar a importância do cenário, que é construído basicamente por cadeiras. Deparar-se com todos os tipos e formatos de “cadeiras” – novas, usadas, sem pés, semidestruídas – e poder observar a sua ressignificação no espaço cênico, de objeto a personagem; de signo a macrossigno: “sujeitos cadeira”, “identidades [em forma de] cadeiras, cadeiras memória, “cadeiras sociais”, “cadeiras da vida”. A “cadeira” potencializa as ações e as partituras dos atores, que, utilizando um figurino simples – jeans e camisa “casual” –, se integram ao cenário e demonstram a que vieram. Ambos os atores executam um ótimo trabalho em cena. Chamam-me a atenção o trabalho vocal e as partituras corporais, os momentos de entrada nas personagens “cadeira” e delas se distanciarem. Ítalo Laureano revela sua potência vocal na cena “Negro Amor”, momento em que canta a versão de Caetano Veloso e Péricles Cavalcanti de “It’s all over now, Baby Blue”, de Bob Dylan. Por sua vez, Rejane Faria emociona o público quando empresta a sua voz e talento interpretando um gospel – canção negro spiritual – norte-americano tradicional. O mais interessante é que esta música integra, no texto, o quadro “A fronteira”, momento em que os dois atores personificam duas personagens – um Homem Branco e uma Mulher Negra – que discutem sobre os seus “lugares no mundo”: “Ítalo deita todas as cadeiras no chão, como um grande mar de entulho (ou corpos). Ele se senta no fundo do palco lateralmente, Rejane se senta à frente, virada para o público.” O Homem Branco, por meio de um discurso interrogatório, demonstra à Mulher que Ela não cabe naquele “lugar”. As perguntas são excludentes, repletas de preconceitos e de juízo de valores conservadores, tudo para reafirmar que os espaços ali já estão delimitados, legitimados e têm donos. A dramaturgia assume um posicionamento étnico e de gênero quando os autores dão voz à personagem feminina, indicando, na rubrica do texto, que se trata de uma Mulher Negra.
MULHER NEGRA – Nós esperamos o pior.
Há séculos, nós sempre esperamos o pior.
Nós estamos à deriva.
Nós não podemos, não queremos esperar mais.
Nossos filhos estão mortos.
Nossos animais foram abatidos.
Nossas terras estão desertas.
Nossos recursos, nossos meios de sobrevivência. Não existe mais nada.
Mas ainda estamos vivos.
Nós ainda estamos vivos.
Nós sabemos de tanta coisa que vocês nem imaginam. Vocês ignoram.
Atrás de nós existem milênios.
A memória… A memória dói, mas ensina.
E eis-nos aqui de novo…
As coisas mudam, e estamos aqui outra vez.
Passivos como os espelhos, no tear da nossa existência.
O nosso amanhecer, a nossa perseverança é como a erva daninha que lentamente desponta na pedra.
A dor que mora em mim, é a que vejo no corpo dos outros.
Zeca, Ernesto, Calembera, Silva, Chimutengue, Dunduma, Zuzé, Tafari, Juana, Arlindo, Naguimba, os Tavares, os Muteias…
Existe um mar cheio de corpos.
Você tem medo de nós?
Vocês têm medo de nós?
Steal Away.
Steal Away.
Steal Away to Jesus.
Steal Away.
Steal Away home.
I ain’t got long to stay here.
My lord, he calls me.
He calls me by the thunder.
The trumpet sounds within my soul.
I ain’t got long to stay here. (BENEVENUTO, COLETTA, 2015, sp)
Memórias e identidades são recuperadas no discurso da personagem/atriz – Mulher Negra/Rejane Faria (atriz e negra), demonstrando a preocupação dos dramaturgos e do grupo com as questões sociopolíticas. Assim, mais uma vez, os presentes são convocados para colocar as suas experiências pessoais e coletivas em jogo. O “real” e o “ficcional” se entrecruzam, ou seja, a ficção invade e interage com o factual…
Ao final do texto/espetáculo o ator/personagem, Ítalo Laureano, indaga: “Foi difícil chegar até aqui?”
Um longo black out.
O espetáculo se encerra, mas a dramaturgia se propaga… Todos são convidados a deixarem as suas “cadeiras” para tomar os seus destinos: ir para casa ou para onde quer que seja. A ideia que fica é que cada um possa refletir sobre como o texto/espetáculo chegou para…
Como para mim, seguindo e corroborando os argumentos de Patrice Pavis, texto e montagem são nada mais que linguagens que integram o texto espetacular, daqui, de minha “cadeira”, só posso ratificar a qualidade do trabalho e convidar o leitor a chegar da forma mais profícua que lhe for conveniente – reflexiva, mas também prazerosa – a esta nova criação do Quatroloscinco – Teatro Comum…
[1] Coletivo formado por Assis Benevenuto, Ítalo Laureano, Marcos Coletta, Rejane Faria e Maria Mourão. Mais informações sobre o grupo estão disponível no site http://www.quatroloscinco.com/.
[2] Há que se destacar que as peças É só uma formalidade, Get out! e Humor já foram, anteriormente, editadas pelo grupo.
[3] No sentido de “presentação”, aqui entendido, na linguagem da performance, como um processo em que o mote criativo dos performers se dá por meio da manifestação de suas subjetividades em cena, em tempo real. Trata-se da construção de personas, e não de personagens, já que estes estão circunscritos no tempo-espaço da ficção.
[4] Proponho, aqui, o uso deste vocábulo “quadro” para fazer alusão à cena/ato representada[o].
[5] Não posso deixar de associar tudo isso com a série de pinturas do belga René Magritte (1898-1967) intitulada A Traição das Imagens (La Trahison des Images), fazendo menção a seu trabalho mais famoso, Isto não é um Cachimbo (Ceci n’est pas une Pipe), que causou tanta polêmica devido a um olhar de um aparente nonsense: vê-se um cachimbo e se afirma que o que ali se vê não se trata de um cachimbo.
[6] Uma das influências mais marcantes e polêmicas quando tratamos das artes performáticas. Vale a pena conferi o documentário da artista/perfomer disponível em https://www.youtube.com/watch?v=6FOfFW7AjLc (acessado em 11/12/15).

— por Luciana Romagnolli —
Crítica da peça “Ignorância”, do grupo Quatroloscinco Teatro do Comum (Belo Horizonte/MG).
Em “Ignorância”, o Quatroloscinco Teatro do Comum coloca em questão as falhas de uma humanidade que se concebe como racional, civilizada e evoluída. O objeto cadeira surge como síntese simbólica que permite uma série de analogias a respeito dos modos como nos apropriamos do mundo, apontando para um processo de desenvolvimento que tem sua faceta utilitária e democrática, mas também persegue privilégios e distinções que produzem uma hierarquização entre sujeitos, compondo uma elite econômica, intelectual e/ou cultural.
Fotos de Felipe Messias e Guto Muniz.
A cadeira nos proporciona desde o elevar de nossos traseiros do chão, distinguindo-nos dos animais irracionais, à ostentação de adornos em ouro ou design exclusivo a preços proibitivos, distinguindo-nos de outras classes de seres humanos e justificando a segregação por um sentido a-histórico de meritocracia. Além, é claro, da cadeira sem assento: herança duchampiana e magritteana de uma arte conceitual e autorreflexiva acondicionada em museus turísticos ou vazios, a indagar sobre a função da arte na sociedade contemporânea.
Um solo da atriz Rejane Faria inicia o espetáculo trazendo a imagem da cadeira e suas possíveis implicações num discurso modulado pela ironia como recurso crítico. O texto a todo tempo refere-se a um “você” (exemplo: “você fica ali, no escuro”), sujeito indeterminado que pode designar tanto a própria mulher que fala quanto o seu interlocutor – no primeiro caso, transformando o “eu” dela em “outro”. Eis um jogo linguístico que torna mais complexas as relações entre os sujeitos ficcionais e reais envolvidos na apresentação. Quando o grupo decide tratar da ignorância humana, sobre quem fala? Ignorante é sempre outro?
A meu ver, esta indagação trespassa o espetáculo, escrito e dirigido por Marcos Coletta e Assis Benevenuto, e torna-se mais nítida quando observamos as escolhas de registro de atuação feitas a cada cena. À ironia da primeira, segue-se o tom farsesco das representações de mães e pais na reunião escolar. Com rigor e dinâmica na execução, Rejane e Ítalo revezam-se nas cadeiras dando corpo a seis personagens envolvidos em uma discussão sobre o comportamento de um aluno de sete anos, na qual subjazem questões relativas a moralismo, religião, sexo, educação, família e alteridade. A cena é construída para que se ria dessas figuras, expostas no que têm de patético. Meu questionamento é se a opção por uma atuação que mais cita essas personagens do que de fato as representa, e com tratamento farsesco, as distancia dos atores e dos espectadores, de modo que as olhemos de cima. Seriam “o outro”, a quem se deve criticar, ou é possível a identificação que provoque a autocrítica?
Os contornos dessa escolha ficam mais delineados quando se contrastam ao registro de atuação na cena que alude à imigração. Nesta, Rejane interpreta com carga dramática e gravidade uma mulher refugiada. A ironia já não cabe, sentimos o drama dela e associamos algumas das frases ao crime ambiental na cidade de Mariana (o real atravessa os sentidos previstos na escrita). A identificação, isto é, a projeção do eu do espectador nos sentimentos da personagem, é possível novamente.
A cena-esfinge, a meu ver, é a que contrapõe dois supostos tipos de ignorância no interior de um museu, esse espaço de culto à arte. A ignorância no sentido mais cru e ingênuo, do homem comum, que não detém as informações sobre algo, é contraposta à ignorância envernizada de quem se arroga muito saber. Rejane e Ítalo agora representam uma artista conceitual e um prestador de serviços que se encontram na primeira ida dele a um museu. Me parece haver uma escolha dramatúrgica que desestabiliza essa contradição ao tornar mais empático e cômico o homem que desconhece quase completamente o mundo da arte, direcionando a crítica à arrogância teórica da mulher artista, tecendo, assim, julgamentos sobre os personagens na cena do museu. Essa oposição perde complexidade com o tratamento desigual, ou seja, com a tomada de posição sobre um dos lados, porque endossa um discurso de descrédito em relação ao saber, ao pensamento, que num contexto de empobrecimento educacional como o do nosso país pode recair em um elogio à ignorância. Ao menos foi a sensação deixada pela interação palco e plateia nas duas apresentações a que assisti.
De que estratégias a dramaturgia poderia dispor para que a crítica, nesta cena, recaísse sobre a arrogância da artista e não sobre o pensamento sobre arte? – se é que para o grupo essa distinção (que me parece essencial) faz sentido, é claro. Ao trabalhar com dois extremos, a cena tende também a subestimar o cidadão sem experiência de espectador como inábil para operações sensíveis e simbólicas. Creio que tanto o hermetismo quanto o subestimar do espectador são duas faces de um mesmo problema na relação da arte com o cidadão. Além disso, não há dúvida de que os ready-made de Duchamp inauguraram um território incerto e instável para a arte; meio século depois, ainda estamos com Ferreira Gullar questionando se seus desdobramentos são ou não arte? É preciso cuidado para, ao criticar formas vazias de discurso conceitual sobre arte, não rechaçar, junto, a própria reflexão sobre arte.
Tantas perguntas nesta crítica são, a meu modo, uma admissão de ignorância. Por vezes, é este o lugar em que a arte nos coloca, o de incerteza, o de desconforto com as conclusões previsíveis, o de indagação. Não se trata de um julgamento da obra em si, mas da problematização a partir de uma das possibilidades de relação que ela oferta a seus espectadores. A ignorância diz do incivilizado, do impensado e do violento em nós, por seu viés negativo. Comenta uma sociedade em que a idade das trevas não se dissocia tão facilmente da idade da luz. Porém, também é um estado socrático de recusa à presunção do saber, uma postura de descoberta perante um mundo que não se domina. Na potência dessa ambiguidade, disputam o gesto de apontar e o gesto de reconhecer. Ao espectador, cabe, mais do que a identificação e a reiteração do/com o que vê, um impulso à reflexão e a um posicionamento próprio.
*Espetáculo visto em duas ocasiões, no dia 29 de outubro de 2015, na Funarte-MG, e no dia 13 de novembro de 2015, no Teatro João Ceschiatti.

— por Julia Guimarães —
Crítica das missas patólicas do bufão Leo Bassi (Madri, Espanha)
Na última crítica que escrevi para o HdC, me perguntava sobre como analisar acontecimentos cênicos que estariam no meio do caminho entre uma prática artística e uma atividade social. A pergunta parece servir para uma série de criações contemporâneas que se propõem a “importar” dispositivos presentes na sociedade para o contexto teatral.
Operação visível na já citada performance-palestra da croata Vlatka Horvat ou nos espetáculos participativos do catalão Roger Bernat, é também ela que aparece nas entrelinhas do projeto mais recente do bufão italiano-espanhol Leo Bassi. Presença constante nos festivais cênicos pelo mundo (em Belo Horizonte, se apresentou no Festival Mundial de Circo em 2001 e no Galpão Cine Horto em 2002), Bassi criou, há três anos, uma ‘religião’ própria, o Patolicismo. Desde então, se dedica a celebrar casamentos e missas dominicais em sua Igreja Patólica, que ganha esse nome por substituir a adoração a Deus pelo louvor aos banalíssimos patinhos amarelos de borracha usados para decorar banheiras.
Situada em Lavapiés, emblemático bairro da cultura dissidente de Madri, a Igreja Patólica de Leo Bassi é herdeira dos valores iluministas, defensora do ateísmo e da dimensão sagrada do riso. Embora a teatralidade barroca que adorne a capela seja um ponto comum com o catolicismo, os “santos” presentes no altar não deixam dúvida quanto ao projeto político-artístico do espaço: seus ícones são pessoas que, na visão de Bassi, colaboraram para a humanidade, como Chaplin, Voltaire, Gandhi, Nietzsche, Mae West.
A crítica às igrejas, em especial à Católica, é elemento que acompanha a trajetória do bufão, expoente da sexta geração de uma família de palhaços. Por conta dela, Leo Bassi já foi alvo de polêmicas, agressões, boicotes e tentativa de um atentado terrorista por parte de religiosos fundamentalistas.
Sobre o assunto, já havia criado o espetáculo “A Revelação” (2005), no qual criticava religiões monoteístas. Contudo, o projeto da Igreja Patólica sinaliza um caminho em que os hibridismos de linguagem projetam novas potencialidades críticas.
Nesse contexto, gostaria de retomar a pergunta que abre o texto: como analisar um espetáculo que é também uma missa? De que maneira a importação desse dispositivo interfere na percepção do público e projeta uma dimensão crítica? São perguntas com as quais pretendo fazer dialogar minha própria experiência de ter frequentado duas missas dominicais.
Em primeiro lugar, há um fator que talvez distinga a atividade de outros trabalhos cênicos: o projeto de Leo Bassi pressupõe uma dinâmica de continuidade. Trata-se de um espaço aberto à visitação periódica, no qual – assim como uma missa – embora haja repetição do rito, há um novo assunto a cada semana. Até a data, foram realizadas 113 missas patólicas.
No formato explorado por Bassi, a primeira parte da missa dialoga com a trajetória dos homenageados e a segunda aborda temas atuais. Na missa realizada em 6/12, por exemplo, o feriado nacionalmente celebrado na Espanha dedicado à Imaculada Conceição (e também em Belo Horizonte) é desconstruído para atentar-nos aos valores presentes em suas entrelinhas: exaltação à “pureza” da mulher, o ato sexual como sacrifício e a condenação do prazer.
Em contraposição a esse modelo católico, Bassi homenageou, na mesma missa, a escritora francesa Amandine Aurore Lucile Dupin, que viveu a Paris do século XIX e assinava suas obras com pseudônimo masculino George Sand, como ficou conhecida. Considerada uma das percussoras do feminismo, gostava de usar trajes masculinos pouco habituais para a época e, segundo conta Bassi, colecionou amantes famosos, como Chopin, Liszt e Victor Hugo.
Nesse contexto, a possibilidade de frequentar semanalmente a ‘igreja’ parece funcionar tanto como ação direta, mas também como projeção simbólica. Se, de um lado, privilegia um devir comunitário de pessoas que se encontram em torno da exaltação do espírito crítico-cômico-humanista, por outro, se oferece como contraponto ao fortalecimento da intolerância e dos conservadorismos verificados nos últimos anos em escala mundial.
Do ponto de vista simbólico, a importação do dispositivo-missa dá visibilidade a uma operação simples, porém polêmica: se durante tantos séculos a reunião de pessoas em torno da transmissão cristã esteve presente como um dos principais pilares das sociedades ocidentais, por que não valer-se de estrutura semelhante para gerar a defesa de valores muitas vezes condenados/sufocados por essa mesma igreja?
Por outro lado, a proposta de Leo Bassi opera sob uma teatralidade discursiva, racionalista e ensaística que parece muito pertinente como estratégia artístico-ativista em um momento no qual a partilha de informações e reflexões em um contexto de presença parece ser resposta potente à urgência dos acontecimentos atuais.
Sobre esse aspecto, é curioso observar inclusive que o projeto artístico do bufão o desloca, de certa forma, da teatralidade observada em espetáculos anteriores, como os trabalhos aportados em Belo Horizonte. Neles, o caráter anárquico de Leo Bassi e a provocação sensorial do público, no intuito de ativar experiências como medo, crueldade e catarse, configuravam-se como aspecto dominante, assim como o privilégio da comicidade.
Já no projeto atual, o viés do humor parece transferir-se para o espaço em si da igreja, ou para a ideia mesma de uma celebração “patólica”, enquanto as palavras de Bassi operam em um sentido crítico mais sóbrio, o que novamente pode ser entendido como uma teatralidade que deseja afirmar-se numa lógica de ação mais direta. No limite, o projeto patólico acentua a liberdade radical do bufão, a quem é permitido tudo dizer e fazer.
Daí surgem outras perguntas: se, afinal, o objetivo das missas é fomentar esse espírito crítico-humanitário a um coletivo de espectadores que, possivelmente, já trazem consigo tal perspectiva, haveria então uma efetiva potencialidade política nesse formato? Ou ainda, de que maneira é possível aproveitar-se da estrutura da missa sem importar também o viés doutrinário?
É aí que parece entrar novamente a dimensão da experiência. Há uma transformação que diz respeito à performatividade do acontecimento ‘missa patólica’. Que está relacionada ao fato de existir um espaço aberto – ainda que pequeno e talvez com pouca visibilidade no contexto geral da cidade – onde se pode, a cada domingo, experienciar a reafirmação pública e presencial de determinados valores. Nesse sentido, a importação do dispositivo missa revela a potencialidade contida na ação de “escutar juntos”, em um sentido comunitário de reconhecimento mútuo.
Talvez seja esse o potencial político de operar a crítica a uma instituição através da importação de sua estrutura. E ainda que junto com o dispositivo surja também a relação de poder característica da igreja – ‘padre’ no plano alto, detentor único do discurso – Bassi explora alguns recursos que colaboram para desconstruir a perspectiva doutrinária.
Uma de suas primeiras afirmações ao iniciar as missas, por exemplo, é de que ficaria contente se as pessoas saíssem dali criticando o que acabaram de ouvir. Nesse sentido o humor, embora presente numa escala menor que em trabalhos anteriores, é outro mecanismo que colabora para subverter tais representações. Durante a missa, Bassi põe em prática a clássica premissa clownesca de cair no ridículo e perder a dignidade em público: na sua igreja, o ‘nome-do-pai’ transforma-se no gesto coletivo de imitar um pato e seu característico ‘quá-quá-quá’.
Além disso, ao que parece, a hibridez do formato também favorece uma desestabilização perceptiva muito fértil para estranharmos as estruturas que nos cercam, na missa e fora dela. Dessa forma, o dispositivo cênico opera politicamente ao colocar o público nesses espaços fronteiriços tão explorados pela arte contemporânea, que, no limite, tangenciam as reiteradas imbricações entre arte e vida.
Assim, o trabalho aponta para uma perspectiva da teatralidade como campo expandido. Pois tanto contribui para ampliar o horizonte da própria linguagem cênica quanto faz dialogar a noção de teatralidade com outras atividades da esfera social.